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JESUS DA GENTE: LEITURA BÍBLICA DECOLONIAL

Jesus of the People: a Decolonial Biblical Reading

RESUMO

A virada hermenêutica da teologia sugerida por Claude Geffré revigora interpretações e aplicações criativas da mensagem cristã para além dos espaços eclesiais. No Brasil, escolas de samba, frequentemente, levam para o seu desfile uma palavra contra-hegemônica inspirada na Bíblia. Por exemplo, o enredo “Verdade vos fará livre” da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira (2020) apresentou o “Jesus da gente” de forma decolonial. A leitura bíblica feita pela Mangueira rompe com os padrões culturais hegemônicos e serve de inspiração para teologias contextuais acolhendo outros sujeitos, outra gramática e outros lugares de anunciação – o que pode ser uma novidade para a Teologia. O propósito desse artigo consiste em refletir, de modo incipiente, sobre a possibilidade de uma leitura bíblica decolonial inculturada e libertadora. O diálogo entre o pensamento decolonial e a teologia hermenêutica de Geffré, no contexto do carnaval brasileiro, compõe o nosso caminho de reflexão.

PALAVRAS-CHAVE
Teologia hermenêutica; Decolonialidade; Leitura bíblica

ABSTRACT

The hermeneutical turn in theology proposed by Claude Geffré strengthens creative interpretations and applications of the Christian message beyond all ecclesial boundaries. In Brazil, samba schools often create counter-hegemonic narratives inspired by the Bible. In the 2020 carnival, for example, the Estação Primeira de Mangueira Samba School chose the theme “The Truth will make you free”, that showed “Jesus of the people” in a decolonial way. Such a biblical interpretation breaks away from hegemonic cultural patterns and serves as inspiration for contextual theologies that welcome other subjects, other grammars of representation, and other places of annunciation, what can be seen as a novelty in Theology. The purpose of this article is to reflect, in an incipient way, on reading the bible from an inculturated, liberating and decolonial perspective. The dialogue between Geffré’s hermeneutical theology and decolonial thought, in the context of the Brazilian carnival, will guide our reflection.

KEYWORDS
Hermeneutical theology; Decoloniality; Biblical reading

Introdução

O presente artigo está estruturado, basicamente, sobre os estudos provenientes da teologia hermenêutica e da decolonialidade. Sem explicitá-los de forma pormenorizada, eles fazem parte do referencial teórico que sustenta este artigo. No âmbito da teologia, a reflexão que se segue colhe os ganhos da fusão entre a hermenêutica e a teologia. “Teologia como interpretação atualizante da Palavra de Deus” (GEFFRÉ, 1989GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989., p. 29). Para além do exegeta-historiador, o hermeneuta-teólogo busca atualizar o sentido do evento Cristo para os dias de hoje. Nessa caminhada, a Palavra de Deus e a letra da Escritura são distintas. A própria Escritura já é interpretação da ação de Deus na história e manifestada nas diversas linguagens por ela suscitadas. A virada da teologia como um saber inerte para uma “situação hermenêutica” viabiliza novas possibilidades de existência tendo a prática como lugar teológico.

O diálogo da teologia com as ciências sociais críticas, especificamente os estudos decoloniais, provoca a inteligência da fé a um debate epistemológico. Diante da elasticidade das propostas decoloniais, optamos pelo viés político-acadêmico refletido a partir de situações concretas de colonização. A decolonialidade, “luta contra a lógica da colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos”, requer também uma virada, um giro epistêmico decolonial por meio do qual a vítima emerge como questionadora e agente de mudança social (MALDONADO-TORRES, 2020MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 2. ed. 3. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2020., p. 36-50). Temos aqui a possibilidade de novos lugares de enunciação e proclamação da Palavra de Deus.

O encontro entre esses estudos, no contexto das narrativas comparadas, desemboca em uma teologia prática decolonial tendo o enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira (2020): “A Verdade vos fará livre” como foco de aplicação. O “Jesus da gente” apresentado pela escola de samba é o evento de uma palavra que rompe com as instâncias hegemônicas e cria possibilidades de interpretação da mensagem do Cristo a partir de baixo, da margem, do reverso social. Não ousamos aqui lançar os fundamentos de uma teologia bíblica decolonial. Apenas acenamos a possibilidade de se considerar outras vozes na interpretação da mensagem cristã, que tem por lugar o não-lugar, provenientes de humanos considerados como não-humanos. De gente que se apropria da mensagem da salvação, mas não pertence aos lugares formais da religião estabelecida.

De imediato o leitor pode estranhar a relação entre o pensamento decolonial e um arcabouço teórico proveniente de um europeu, francês, como Claude Geffré. Não culpo o leitor por essa reação. Afinal de contas, os estudos decoloniais, na sua fase inicial, de fato, assumiram uma postura negacionista sobre o saber eurocêntrico. A superação dessa fase se faz necessária. Buscamos, então, tratar o tema da decolonialidade com e contra o saber eurocêntrico. Nas palavras de Walter Mignolo, “quando me refiro a decolonizar o conhecimento, então, eu faço isso com e contra Kant; dele se trata o pensamento crítico de fronteira, entendido como decolonização do conhecimento” (MIGNOLO, 2007MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina. La herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007., p. 80). Mesmo apresentando limites e contribuições, os estudos decoloniais estão situados na esteira da evolução do pensamento pós-colonial. Assume-se a crítica de hoje incluindo a anterior, absorvendo e superando.

Considerações introdutórias feitas, o itinerário do texto é marcado por informações sobre a popularidade da Bíblia no Brasil até a possibilidade de se pensar em uma leitura bíblica decolonial realçando a emergência de uma teologia contextual e decolonial marcada por intepretações polissêmicas e aplicações diversas.

1 A popularidade da Bíblia

A Bíblia Sagrada é fonte da teologia cristã. Compreendê-la corretamente é fundamental para o exercício de uma teologia adequada. Os Textos Sagrados, quando lidos e interpretados corretamente, são fontes inesgotáveis de fé e esperança. A Bíblia aparece como livro irradiante de vida nas Igrejas, nos espaços de estudos, nas casas, nas mãos de evangelizadores pelas ruas, nos presídios e em todo canto em que ela é acolhida com sinceridade. É um best seller por excelência. Um dos textos mais lidos no mundo e no Brasil não seria diferente. Para se ter uma ideia, a 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2020, realizada pelo Instituo Pró-Livro, em parceira com o IBOPE e a iniciativa privada, mostra que a Bíblia é o gênero literário mais lido pelo brasileiro seguido por contos (2º lugar) e literatura religiosa (3º lugar) (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2020INSTITUTO PRÓ-LIVRO. Retratos da leitura no Brasil (2019). Disponível em: <https://www.prolivro.org.br/pesquisas-retratos-da-leitura/as-pesquisas-2/>. Acesso em 22 de ago. 2022.
https://www.prolivro.org.br/pesquisas-re...
, p. 51-54).

Dificilmente encontramos alguém que não teve um contato com a Bíblia. De forma direta, por lê-la, ou indireta, por alguém que já citou ou falou sobre ela. Nas famílias mais religiosas, a Bíblia tem o seu espaço próprio. Está aberta sobre um móvel, em algum canto da casa, como um convite a ser lida. Além das residências familiares, a Bíblia também pode ser encontrada em outros lugares, privados e públicos, como quartos de hotel e celas de presídio infundindo palavras de esperança. Mesmo sendo um texto, materialmente acessível, o mesmo não pode ser dito sobre o seu conteúdo. Há uma dificuldade para entender o que a Bíblia diz. A resposta que o eunuco de Candace dá a Filipe, no diálogo bíblico, quando pergunta: “Compreendes o que vens lendo?”, e o eunuco responde: “Como poderei entender, se alguém não me explicar?”, continua ecoando no nosso tempo (At 8,30-31).

A leitura da Bíblia exige cautela. Caveat lector – acautele-se o leitor, exortava os Pais e Mães da Igreja. Leia, mas leia corretamente. Não só com exatidão, mas com retidão, isto é, uma disposição mental favorável e um coração correto (PETERSON, 2001PETERSON, Eugene. Caveat Lector. In: DYCK, Elmer. (Ed.). Ouvindo a Deus: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica. São Paulo: SHEDD, 2001., p. 9). Uma leitura correta da Bíblia pressupõe a capacidade de ligar texto e contexto no esforço de manter a integralidade dos escritos. Isso porque, “do ponto de vista de seu conteúdo, a Bíblia é um conjunto de escritos que são o produto e o testemunho da vida de um povo (Israel/AT) e de uma comunidade (cristianismo/NT) em diálogo com Deus” (ARENS, 2007ARENS, Eduardo. A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica. São Paulo: Paulus, 2007., p. 27). Leituras fragmentadas da Bíblia são problemáticas porque desembocam em ideias e práticas equivocadas.

Voltando aos números da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil. A média de livros lidos por ano pelo brasileiro não é nada animadora. Apenas 4,95 livros são lidos anualmente, sendo que um pouco mais da metade (2,55) é lido por inteiro (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2020INSTITUTO PRÓ-LIVRO. Retratos da leitura no Brasil (2019). Disponível em: <https://www.prolivro.org.br/pesquisas-retratos-da-leitura/as-pesquisas-2/>. Acesso em 22 de ago. 2022.
https://www.prolivro.org.br/pesquisas-re...
, p. 40). Ou seja, o brasileiro lê pouco e de forma fragmentada. As causas de uma leitura assim vão desde limitações econômicas, falta de recurso financeiro para a compra de livros, até as deficiências no âmbito da educação gerando o analfabetismo funcional – indivíduos reconhecem números e letras, mas não conseguem interpretar um texto. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) 2019, a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade foi estimada em 6,6%. São 11 milhões de analfabetos no Brasil (PNAD CONTÍNUA – IBGE, 2019PNAD Contínua — Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. IBGE. Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html>. Acesso em 22 de ago. 2022.
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
).

As implicações desse tipo de analfabetismo recaem sobre a leitura e interpretação da Bíblia. No Brasil, há um caso emblemático que virou matéria de um programa jornalístico. Um pastor que se envolveu em uma relação extraconjugal por conta da leitura equivocada da palavra “adúltera” no livro do profeta Oseias 3,1. Segunda a interpretação do pastor, a orientação de Deus para ele é: “Vai outra vez, ama uma mulher, amada de seu amigo e adultera [...]”.1 1 Confira a reportagem em: <https://www.youtube.com/watch?v=8fqDa8RPt0o>. Acesso em 5 de ago. 2022. O descuido com as regras da língua portuguesa, converteu “adúltera” em “adultera”. O resultado da leitura malfeita desencadeou na interpretação equivocada gerando a chacota sensacionalista em rede nacional. Mas o episódio bizarro esconde uma realidade perigosa: o dano provocado pelo erro de interpretação.

Em uma escala bem maior e mais significativa, episódios de desumanização, legitimados por leituras e interpretações equivocadas da Bíblia, mancham a história de sangue das vítimas. “Teologias” opressoras, geralmente, são o resultado do manejo inadequado dos textos bíblicos. Estes, quando retirados do seu contexto, são utilizados como instrumentos de tortura nas mãos dos intolerantes. Às vezes, o discurso religioso até parece ser uma palavra de vida, de esperança, mas, no fundo, é anúncio de morte, de sofrimento. O conhecimento da letra do texto não significa o entendimento correto da Palavra. Enquanto a rigidez da letra mata, a Palavra vivifica.

A falta de discernimento entre o que é a Bíblia e o que é a Palavra de Deus desemboca em muita confusão. O pior é quando essa indistinção conceitual se transforma em mecanismos hegemônicos para colonizar as culturas, os corpos e as subjetividades.

1.1 A “Palavra de Deus” como instrumento de colonização

A colonização das Américas é marcada pela cruz da evangelização cristã impositiva e pela espada da colonialidade do poder de nações hegemônicas. Essa estranha relação condenou e dizimou milhões de vidas. O empreendimento colonialista do Novo Mundo se baseava na conquista e na divisão da terra sobrando para os povos originários o jugo do trabalho serviçal. Os colonizadores contavam com o apoio de eclesiásticos e religiosos que evangelizavam os “infiéis”, “cuja subjugação e escravização começaram a ser exaltadas como condições prévias ideais para a sua eficaz evangelização” (JOSAPHAT, 2005JOSAPHAT, Carlos. Sentido de Deus e do outro. In: LAS CASAS, Frei Bartolomeu. Único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião: obras completas. v. 1. São Paulo: Paulus, 2005, p. 11., p. 11).

Os indígenas, pela força, tiveram de se submeter ao modelo cristão europeu-ibérico hegemônico e, assim, assumir e internalizar padrões de comportamento, mentalidades e visões religiosas estranhas aos seus costumes, valores e crenças. “No fim dos primeiros vinte anos de conquista [...] multiplicavam-se as paróquias e as casas religiosas; e já a partir de 1510, se estabeleciam vários bispados” (JOSAPHAT, 2005JOSAPHAT, Carlos. Sentido de Deus e do outro. In: LAS CASAS, Frei Bartolomeu. Único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião: obras completas. v. 1. São Paulo: Paulus, 2005, p. 11., p. 11). Após os primeiros anos de cristianização das Américas, o fardo do trabalho pesado imposto pelo colonizador, juntamente com as epidemias e as guerras, reduziram consideravelmente as populações nativas.

A vinculação da Igreja com o estado colonial procurava não só dominar politicamente e transformar culturalmente os povos conquistados, mas também os explorava economicamente sob o pretexto de que as práticas indígenas tinham um caráter demoníaco (MARZAL, 1989MARZAL, Manuel. Introdução geral. In: A religião quéchua sul-andina peruana. In: MARZAL, Manuel; ROBLES, Ricardo; MAURER, Eugenio. Et al. O rosto índio de Deus. São Paulo: Vozes, 1989., p. 11-33). Tal concepção estava fundamentada em uma interpretação da Bíblia que legitimava a exclusão de qualquer prática religiosa fora da tradição cristã. Passagens bíblicas como as de Lv 26,1; Nm 33,52; Dt 32,21; 1Cor 12,2; 2Cor 6,16; 1Ts 1,9 e tantas outras, que rejeitam o culto aos ídolos, eram interpretadas e aplicadas no combate às divindades do imaginário religioso dos indígenas. Eles eram considerados bestas, “sexualmente dimórficos ou ambíguos, sexualmente aberrantes e sem controle, capazes de qualquer tarefa e sofrimento, sem saberes, do lado do mal na dicotomia bem e mal, montados pelo diabo” (LUGONES, 2012LUGONES, María. “Colonialidad y género”. Revista Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 73-101, jul./dez. 2008., p. 130).

A manifestação da pretensão europeia ao domínio universal fez da colonização ou imperialismo um instrumento de poder constituinte. Raça, gênero e trabalho foram as três ideias principais de classificação que constituíram a formação do capitalismo mundial moderno/colonial a partir do século XVI. E é exatamente nessas três instâncias que as relações de exploração/dominação/conflito estão ordenadas (QUIJANO, 2014QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CLACSO. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: CLACSO, 2014., p. 285). Daí em diante, graças ao desenvolvimento da tecnociência, às conquistas militares, ao comércio e à propagação da fé cristã, a Europa passou a exercer sobre outros povos uma autoridade despótica (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1Edições, 2018., p. 105). Essa imposição encontrou no anúncio da “Palavra de Deus” um aliado no processo de colonização. Mas é preciso dizer também, que, por outro lado, apesar do contexto desfavorável, a Palavra de Deus foi muito bem proclamada por alguns religiosos, ao ponto do colonizado perceber o substrato de fé libertadora na religião cristã. No seu núcleo mais profundo, há uma vocação para a liberdade ainda que o corpo esteja algemado.2 2 Para Alberto Maggi, “a escravidão não é tanto condição quanto convicção; não é uma situação, mas atitude. A verdadeira escravidão não é aquela da qual não é possível libertar-se; não é a dos corpos, mas do coração; não é aquela das correntes, mas das convicções” (MAGGI, 2013, p. 66).

O paradigma eurocêntrico no processo traditivo e interpretativo das passagens bíblicas associado à indistinção entre Bíblia e Palavra de Deus acabou por gerar uma teologia bíblica hegemônica, exclusivista e colonizadora. Para Luiz Dietrich:

Foi um texto escrito apresentado como “Palavra de Deus” que legitimou e guiou as reformas e as políticas expansionistas de Josias, e é dessa raiz que brotam as concepções que apoiam o uso da Bíblia ao longo da história para legitimar dominações colonialistas e imperiais. E ainda hoje fundamenta ataques a outras religiões e culturas

(DIETRICH, 2018DIETRICH, Luiz José. “A descolonização da Bíblia, da ‘Palavra de Deus’: O desafio primeiro e urgente para uma teologia descolonial”. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Porto Alegre, n. 1, p. 19-37, jan./jun. 2018., p. 74).

Ao afirmar que a “Bíblia é a Palavra de Deus” é preciso dizer também que o termo “Bíblia”, enquanto coletânea de livros, realça o processo redacional dos textos levando em consideração o fato de que ela “é, com efeito, o produto de uma história, que é, naturalmente, a história de sua escrita” (GILBERT, 2000GILBERT, Pierre. Como foi escrita a Bíblia? In: HERMANS, Michel; SAUVAGE, Pierre (Orgs.). Bíblia e história: escritura, interpretação e ação no tempo. São Paulo: Loyola, 2018., p. 14) com todas as suas ambiguidades. Já a Palavra de Deus vai além da Bíblia lida e tradicionada na e pela comunidade eclesial. A Bíblia é o acolhimento da Revelação por mulheres e homens situados historicamente e limitados pelas particularidades históricas. Já a Palavra de Deus envolve uma amplitude mais profunda: “é o princípio da automanifestação divina no próprio fundamento do ser [...]; é a manifestação da vida divina na história da revelação” (TILLICH, 2005TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5. ed. rev. São Leopoldo: Sinodal, 2005., p. 169).

A apropriação indevida da Bíblia, como Palavra de Deus, pelo padrão colonialista (homem, branco, heterossexual, europeu e cristão) reduziu a compreensão dos seus textos ao mundo do colonizador e impediu, em algumas situações, a sua apropriação pelos marginalizados. A leitura bíblica hegemônica acaba por gerar uma teologia também hegemônica marcada pela linguagem única, impositiva, que desqualifica qualquer esforço de atualização dos textos bíblicos porque não passa pelo crivo das instâncias de dominação (CUNHA, 2017CUNHA, Carlos. Provocações decoloniais à teologia cristã. São Paulo: Terceira Via, 2017., p. 153-154). Enquanto houver situações de subalternização, “a descolonização da teologia a serviço dos outros e dos pobres é um processo profético permanente, sempre em tensão com o grau de institucionalização da própria teologia” (SUESS, 2014SUESS, Paulo. Débitos e créditos da teologia latino-americana para com os povos indígenas. Vozes do Sul. Revista Teológica da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo, v. 37, n. 4, p. 53, 2014., p. 53).

Leituras bíblicas colonialistas continuam em ação em alguns espaços. Elas são provenientes de latitudes entregues às políticas hegemônicas inspiradas em um fundamentalismo religioso. Nesses ambientes, a Bíblia perde a sua característica teândrica, Palavra de Deus em palavras humanas. O que resta é a ideia de que os textos bíblicos foram ditados por Deus e cabe ao ser humano a simples tarefa de registrar fielmente as palavras divinas. Com essa mentalidade, a Bíblia é lida literalmente e aplicada com rigor na vida do fiel. Não há motivos para interpretá-la impossibilitando releituras. Os efeitos são desastrosos. Em nome de uma ideia sobre a Bíblia, o fundamentalista religioso que emerge desse cenário retira a passagem bíblica do seu contexto para legitimar pretextos de intolerância e violência. Infelizmente, a leitura bíblica fundamentalista está na base de alguns governos fomentando posturas negacionistas.3 3 Para se ter uma ideia da dimensão do impacto da influência do fundamentalismo religioso nos governos, confira o artigo: CUNHA, Magali Nascimento. “Pelo governo de Deus”: a inserção de novos movimentos fundamentalistas estadunidenses na arena política do Brasil durante o governo Trump. In: Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Campinas, v. 23, 2021.

1.2 Decolonizando a leitura bíblica

A Bíblia ocupa um lugar de destaque na teologia cristã. A leitura e a interpretação dos seus textos são fundamentais para uma teologia genuinamente cristã. A história da hermenêutica bíblica mostra os desafios e o zelo na compreensão do processo redacional das Escrituras. As ciências bíblicas em diálogo com os estudos provenientes da arqueologia, filologia, paleografia, crítica literária, história e outros possibilitam um entendimento mais apurado da formação dos textos sagrados. O trabalho da pesquisa bíblica é inconcluso. Há muitas hipóteses a serem provadas e confirmadas no trabalho árduo da exegese.

Nesse intercâmbio de saberes sobre a verdade da Bíblia, as ciências sociais surgem como importante parceiro. As teologias da libertação, por exemplo, utilizam das ciências sociais como mediações para a libertação dos empobrecidos. A mediação cria a “ponte teórica entre a realidade humana histórica e o conhecimento propriamente teológico, proporcionando a este uma elaboração científica da realidade humana histórica” (LIBANIO, 1987LIBANIO, João Batista. Teologia da libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987., p. 178). A aproximação dessa área do conhecimento, no entanto, não é de forma acrítica e epistemologicamente irresponsável. “O uso das ciências sociais com o objetivo de melhor reconhecer a realidade social exige um enorme respeito por seu campo de ação próprio e pela autonomia legítima da política” (GUTIÉRREZ, 2000GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação: perspectivas. São Paulo: Loyola, 2000., p. 193).

Para uma teologia decolonial, o diálogo com as ciências sociais se faz necessário. Foi dentro dessa especialização, mas não restrita a ela, que o pensamento decolonial se construiu. O caminho se deu primeiro na tarefa de decolonizar a própria área.

Considero que o grande desafio para as ciências sociais consiste em aprender a nomear a totalidade sem cair no essencialismo e no universalismo dos metarrelatos. Isto conduz à difícil tarefa de repensar a tradição da teoria crítica [...] à luz da teorização pós-moderna, mas, ao mesmo tempo, de repensar esta última à luz da primeira [...] A tarefa de uma teoria crítica da sociedade é, então, tornar visíveis os novos mecanismos de produção das diferenças em tempos de globalização. Para o caso latino-americano, o desafio maior reside numa decolonização das ciências sociais [...]

(CASTRO-GÓMEZ, 2005CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas (Colección Sur Sur). Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 86).

Acolher as teorias sociais decoloniais e deixar a teologia ser provocada por elas possibilita dar à inteligência da fé novos horizontes de reflexão. As críticas sociais feitas à modernidade/colonialidade4 4 Para os estudos decoloniais, a “modernidade”, aparentemente positiva, esconde uma face oculta: a colonialidade. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad-racionalidad. In: PALERMO, Zulma; QUINTERO, Pablo (Coord.). Aníbal Quijano: textos de fundación. Buenos Aires: Editorial: Ediciones del Signo, 2016. p. 64. abrem espaço para novos lugares de enunciação marcados pela decolonialidade de sociedades que saíram de experiências de violência, servidão e dominação impostas pela colonização. A produção teórica decolonial possibilita outro olhar no campo teológico sensível às causas de grupos sociais marginalizados e silenciados. Isso não significa que a decolonialidade se apresenta como chave teológica capaz de solucionar os desafios socioteológicos. O pensamento decolonial, como qualquer área do conhecimento, também possui limitações.

O teologizar em uma perspectiva decolonial pede uma leitura da Bíblia a partir de uma interpretação consciente dos mecanismos de dominação sobre as massas colonizadas. A identificação das narrativas bíblicas com a decolonialidade apresenta ângulos de reflexão interessantes porque a própria Bíblia “é a história de um povo que foi humilhado e oprimido durante séculos, e continua sendo. É a história de um Deus que não aceita essa opressão [...] a história de suas esperanças e frustrações, a história de sua tenacidade e perseverança” (COMBLIN, 1985COMBLIN, José. Introdução geral ao Comentário Bíblico: leitura da bíblia na perspectiva dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1985., p. 8).

O processo de inculturação do cristianismo no sul global e a busca por teologias contextuais, muitas vezes, mas nem sempre, anseiam pela ruptura hegemônica dos modelos de leitura bíblica provenientes dos centros colonizadores, mediados e controlados por um corpo burocrático de religiosos e intelectuais. Teologias autóctones, elaboradas em contextos periféricos, tendem a uma leitura da Bíblia em que os marginalizados assumam o protagonismo como sujeitos interpretantes e participem da produção de significados teológicos (CUNHA, 2017CUNHA, Carlos. Provocações decoloniais à teologia cristã. São Paulo: Terceira Via, 2017., p. 153).

O crítico literário e poeta Paulo Leminski, no livro “Jesus A.C.”, afirma:

Mal-aventurados os que se rendem às verdades absolutas sobre Jesus [...]. Entender suas parábolas é mergulhar num emaranhado de significados que se multiplicam como os peixes do milagre evangélico. Peixes, símbolo de subversão da ordem vigente. Ler Jesus é caminhar sobre as águas incertas, que vêm com força e quebram em ondas de interpretações [...]

(LEMINSKI, 1984LEMINSKI, Paulo. Jesus A.C. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.).

A crítica de Leminski aponta para uma limitação provocada pelas “verdades sobre Jesus” absolutizadas pela cristandade. Uma espécie de “cristologia” que serviu de instrumento de colonização na integração do cristianismo ao Império Romano de Constantino (VI d.C.), na cristandade imperial e colonial do século XV até o nosso tempo com o evangelho da ideologia da prosperidade. Essas “verdades sobre Jesus” ocultam a essência do “cristianismo messiânico” (DUSSEL, 2013DUSSEL, Enrique. Descolonização epistemológica da teologia. Concilium. Revista Internacional de Teologia, n. 350. Petrópolis, p. 19-30, 2013., p. 19-30) ou do “cristianismo da libertação” (LÖWY, 2016LÖWY, Michael. O que é cristianismo da libertação? Religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perceu Abramo: Expressão Popular, 2016., p. 74-92), quer dizer, para uma leitura bíblica, especificamente o evento Cristo, que seja decolonial. Necessário se faz superar as leituras modernas/coloniais para uma chave de interpretação “transmoderna”, capaz de libertar as vítimas da modernidade e reconhecer as alteridades silenciadas (DUSSEL, 2016DUSSEL, Enrique. Transmodernidade e interculturalidade: interpretação a partir da filosofia da libertação. Revista Sociedade e Estado, Brasília, n. 1, p. 51-73, jan./abr. 2016., p. 63). Na transmodernidade, a transteologia emerge frente às teologias hegemônicas “invertendo a cristandade para retornar a um cristianismo messiânico profundamente renovado” (DUSSEL, 2013DUSSEL, Enrique. Descolonização epistemológica da teologia. Concilium. Revista Internacional de Teologia, n. 350. Petrópolis, p. 19-30, 2013., p. 30), aberto ao outro, inconcluso e criativo.

O reconhecimento e a viabilização da leitura bíblica feita a partir das minorias e as suas teologias contextuais são aportes interessantes para pensar a decolonização da teologia bíblica a partir de espaços marginais. Esses lugares podem contribuir para o processo de ruptura com hermenêuticas exógenas e patriarcais consideradas clássicas e universais por instâncias dominadoras. A prática de leituras bíblicas feitas pelas vítimas da sociedade questionam os modelos de dominação e propiciam ângulos de apreciação da Bíblia que não foram percebidos ou foram negados. É o caso, por exemplo, das hermenêuticas feministas (FIORENZA, 1992FIORENZA, Elisabeth Schüssler. As origens cristãs a partir da mulher. Uma nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992.), queer (ALTHAUS-REID, 2005ALTHAUS-REID; Marcella. La teología indecente: perversiones teológicas en sexo, género y política. Barcelona: Bellaterra, 2005.) e tantas outras provenientes das margens.5 5 Destaco aqui o trabalho feito pelo Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) em que um dos seus objetivos é “descobrir, com a ajuda da Bíblia, a Palavra de Deus na vida do povo, a fim de se chegar a uma nova consciência de cidadania, contribuindo para criar uma sociedade mais digna, justa e sustentável”. Acesso em 8 de ago. 2022: <https://www.cebi.org.br>.

Mais do que uma leitura diacrônica, histórico-crítica, preocupada com o mundo do autor, a leitura bíblica decolonial se movimenta de forma sincrônica, focada na realidade concreta do mundo do leitor. Não que ela negue os ganhos da hermenêutica crítica, mas a interpretação da Bíblia feita pelos subalternizados prioriza o tipo de leitura capaz de mobilizar o leitor/intérprete para ações de libertação e transformação. Nesse sentido, a leitura bíblica é decolonial porque ela identifica “a presença sociopolítica opressiva no texto e na história de sua interpretação na ideologia dominante” e, ao mesmo tempo, resgata “a mensagem libertadora do texto e da história das interpretações do texto por leitores oprimidos” (CASTELLI et al, 2000CASTELLI, Elizabeth A. et al. (Orgs.). A Bíblia pós-moderna: Bíblia e cultura coletiva. São Paulo: Loyola, 2000., p. 284).

2 Jesus da gente: leitura bíblica decolonial

2.1 Teologia hermenêutica

Para Claude Geffré, teologia e hermenêutica se fundem emergindo assim “um novo paradigma, um novo modelo, uma nova maneira de fazer teologia” (GEFFRÉ, 2004GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004., p. 29). Compreender teologia como hermenêutica é tomar a sério a historicidade da verdade, inclusive da verdade revelada, e o ser humano, como sujeito interpretante. Por isso “a revelação, enquanto Palavra de Deus numa palavra humana ou vestígio de Deus na história”, não se limita aos métodos científicos da exegese. “A fé, em seu aspecto cognitivo, é sempre conhecimento interpretativo marcado pelas condições históricas de uma época” (GEFFRÉ, 1989GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989., p. 18).

A “virada hermenêutica” proposta por Geffré se dá quando o conceito de interpretação muda do epistemológico para o ontológico. O objetivo do conceito epistemológico de interpretação é fazer uma exegese do texto, tentando buscar, com maior precisão possível, informações sobre o mundo do autor e o que ele quis dizer no texto. O caminho proposto consiste em examinar as etapas do processo redacional do texto. Já no conceito ontológico, a interpretação tem um valor subjetivo. Não a objetividade da leitura precisa sobre o texto, mas o seu objetivo recai na consideração dos princípios e valores do próprio leitor. Para o intérprete, o “mundo do texto” se situa num ângulo “adiante” do próprio texto (leitor), aberto a novas compreensões e não num ângulo por trás dele (autor). Enquanto a exegese tradicional procura identificar o sentido do texto, pesquisando o que há “por trás”, a teologia hermenêutica soma a compreensão do sentido que está “adiante” do texto. Por isso jamais se deve buscar uma compreensão única do texto. Por ser algo de caráter extremamente subjetivo, nem mesmo o autor poderia prever quantos tipos diferentes de interpretação seu texto poderia ter (GEFFRÉ, 2004GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004., p. 31-80).

A leitura do texto bíblico pode ser libertadora à medida que rompe com a obrigatoriedade da reprodução de sentido para se tornar “pré-texto com uma pluralidade de leituras e com comunicação com outros”. O próprio evento Cristo, como evento fundador, possibilita uma “escritura plural e comunitária” (GEFFRÉ, 1989GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989., p. 37). No exercício da interpretação, desloca-se o foco da atenção para o mundo do leitor e o impacto do texto bíblico como fonte de significado para a sua vida. Nessa atividade, não se desconsidera o mundo do texto (autor), mas as informações extraídas daí têm sentido quando tocam a existência do leitor. Em outras palavras, a análise estrutural completa o método histórico-crítico. “Não existe necessariamente incompatibilidade absoluta entre estes dois métodos” (GEFFRÉ, 1989GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989., p. 41). Leituras diacrônicas e sincrônicas da Bíblia se complementam.

A passagem da teologia como mera exegese de textos para uma teologia hermenêutica em busca de sentido, deu um novo alento à interculturalidade da fé. Teologia é hermenêutica no esforço por atualizar o sentido da Palavra para hoje. A “interpretação da significação atual do acontecimento Jesus Cristo a partir das diversas linguagens da fé suscitadas por ele, sem que nenhuma delas possa ser absolutizada, nem mesmo a do Novo Testamento” (GEFFRÉ, 1989GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989., p. 18) passa a ser uma opção para as teologias contextuais interessadas no compromisso de solidariedade com os subalternizados.

2.2 Teologias contextuais

A brevíssima exposição da teologia hermenêutica de Geffré serve de suporte teórico/prático para apresentar a importância das teologias contextuais e a sua leitura bíblica decolonial. Por exemplo, James Cone, o precursor da Teologia Negra, afirma que “teologia” diz respeito a um “estudo racional do ser de Deus no mundo, à luz da situação existencial da comunidade oprimida, relacionando as forças da libertação com a essência do evangelho, que é Jesus Cristo” (CONE, 1973CONE, James. Teología negra de la liberación. Buenos Aires: Ed. Carlos Lohlé. 1973., p. 15). O lugar socioepistêmico do conceito de Cone situa muito bem o propósito das teologias contextuais: a) reflexão sobre a ação de Deus no mundo, portanto uma teologia intramundana; b) a revelação divina iluminada pela situação existencial; c) a opção preferencial pelos empobrecidos, marginalizados e subalternizados como chave de compreensão dos mecanismos de opressão; d) a força libertadora como elemento constitutivo da boa nova de Jesus Cristo.

A teologia elaborada por Cone é hermenêutica por causa da metodologia pela qual a inteligência da fé é interpretada: à luz “daquele a quem a ordem social existente não reconhece como tal: o pobre, o explorado, o que é sistemática e legalmente despojado de seu ser de homem”. Ela também é contextual porque o “não-homem” provoca o nosso mundo e chama “à transformação revolucionária das próprias bases de uma sociedade desumanizante” (GUTIERREZ, 1974GUTIÉRREZ, Gustavo. Práxis de libertação. Teologia e anúncio. Concilium, Petrópolis, v. 6, n. 96, p. 735-752, 1974., p. 745). A contextualização da fé iluminada pela situação de vida da vítima escancara a limitação de uma teologia que só pensa Deus, mas é incapaz de praticá-lo, historicizá-lo (TAMAYO, 2017TAMAYO, Juan José. Teologías del sur: el giro descolonizador. Madrid: Trotta, 2017., p. 181).

Além de hermenêutica e contextual, teologias podem ser decoloniais quando propõem uma ruptura epistemológica a partir de outros saberes, que não são institucionalizados. Diferente de uma teologia predominantemente acadêmica, preocupada com a cientificidade do discurso teológico, a teologia decolonial, sem negar o trabalho acadêmico, reflete para além da universidade buscando ver outros sujeitos e lugares. Ela é subversiva porque surge do colonizado; “construída sempre desde o reverso da história da dominação” (MENDONZA-ÁLVAREZ, 2020MENDOZA-ÁLVAREZ, Carlos. A ressurreição como antecipação messiânica: luto, memória e esperança a partir dos sobreviventes. Petrópolis: Vozes, 2020., p. 89). E mais:

“[...] Não parte do transcendente, nem do divino, mas surge do vulnerável das subjetividades negadas. Emerge da negatividade da história como um grito de indignação e rebeldia vivido pelas subjetivações vulneradas [...] é já, por si mesma, uma insurreição epistemológica que traz consigo uma nova leitura da história, ‘de baixo e desde o seu reverso’”

(MENDONZA-ÁLVAREZ, 2020MENDOZA-ÁLVAREZ, Carlos. A ressurreição como antecipação messiânica: luto, memória e esperança a partir dos sobreviventes. Petrópolis: Vozes, 2020., p. 69-70).

A leitura bíblica atrelada a uma teologia hermenêutica, contextual e decolonial serve de inspiração para movimentos sociais contra hegemônicos que lutam contra a injustiça e a opressão (SANTOS, 2014SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014., p. 51).

2.3 “A Verdade vos fará livre”

O enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira (2020): “A Verdade vos fará livre” é um exemplo de uma leitura bíblica que interpreta, a seu modo, o evento Cristo de dentro de uma teologia contextual e em perspectiva decolonial. A apropriação da narrativa bíblica está em um espaço não eclesial, fora da academia, não é assinada por especialistas, mas marcada por um sentido existencial. Reproduzo, na íntegra, o enredo da escola de samba:

Nasceu pobre e sua pele nunca foi tão branca quanto sugere sua imagem mais popular. Sem posses e mais retinto do que lhe foi apresentado, andou ao lado daqueles que a sociedade virou as costas oferecendo-lhes sua face mais amorosa e desprovida de intolerância. Sábio, separou o joio do trigo, semeou terrenos férteis e jamais deixou uma ovelha sequer para trás.

Exaltou os humildes e condenou o acúmulo de riqueza. Insurgiu-se contra o comércio da fé e desafiou a hipocrisia dos líderes religiosos de seu tempo. Questionou o poder do império romano e condenou a opressão. Seu comportamento pacifista e suas ideias revolucionárias inflamaram o discurso dos algozes que passaram a excitar o estado a decretar sua sentença. O fim todos sabemos: Foi torturado, padeceu e morreu.

Séculos depois, sua trajetória ainda anda na boca dos homens e em seu nome, para o mal dito “de bem” – e com rígido contorno de moralidade — muito já foi realizado de forma estanque ao sentido mais completo do AMOR por ele difundido. O amor incondicional, irrestrito e ágape.

Por isso, quando preso à cruz, ele não pode ser apresentado como um. Ser um, exclui os demais. Preso à cruz, ele é a extensão de tantos, inclusive daqueles que a escolha pelo modelo “oficial” quis esconder. Sendo assim, sua imagem humana não pode ser apenas branca e masculina. Na cruz, ele é homem e é também mulher. Ele é o corpo indígena nu que a igreja viu tanto pecado e nenhuma humanidade. Ele é a ialorixá que professa a fé apedrejada e vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo do menor que você teme no momento em que ele lhe estende a mão nas calçadas. Na cruz, ele é também a pele preta de cabelo crespo. Queiram ou não queiram, o corpo andrógino que te causa estranheza, também é a extensão de seu corpo.

Sem anunciar o inferno, ele prometeu que voltaria. Acredito que, se ele voltasse à terra por uma encosta que toca o céu — para nascer da mesma forma: pobre e mais retinto, criado por pai e mãe humilde, para viver ao lado dos oprimidos e dar-lhes acolhimento — ele desceria pela parte mais íngreme de uma favela qualquer dessa cidade. Talvez na Vila Miséria*, região mais alta e habitada do Morro de Mangueira. Ali, uma estrela iluminaria a sala sem emboço onde ele nasceria menino outra vez. Então, ele cresceria entre os becos da Travessa Saião Lobato*, correria junto das crianças da Candelária*, espalharia suas palavras no Chalé* e no “Pindura” Saia*. Impediria que atirassem pedras contra os que vivem nas quebradas e nos becos do Buraco Quente*. Estaria do lado dos sem eira e nem beira estranhando ver sua imagem erguida para a foto postal tão distante, dando as costas para aqueles onde seu abraço é tão necessário.

Se sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres que nascem em comunidades, chegaria aos 33 anos para morrer da mesma forma. Teria a morte incentivada pelas velhas ideias que ainda habitam os homens. O amor irrestrito ainda assusta. A diferença jamais foi entendida. Estender a mão ao oprimido ainda causa estranheza. Seria torturado com base nas mesmas ideias.

Morto, ressuscitaria mais uma vez e, por ter voltado em Mangueira, saudaríamos a possibilidade de vermos seu sorriso amoroso novamente com o que aqui fazemos de melhor. Louvaríamos sua presença afetuosa com samba e batucada. Vestiríamos todos nossa roupa mais cara. Aquela de paetês e purpurina. De cetim com joias falsas. Desfilaríamos diante dele e, em seu louvor, instauraríamos a lei que rege nossos três dias de folia. Sem pecado, irmanados e em pleno estado de graça.

Explicaríamos nessa ocasião que a cruz pesada que carregamos como fardo ao longo do ano nos é tirada das costas no carnaval. Por ter vencido a morte e sem ter o peso de sua cruz nas costas, ele sorri para a baiana que desce para se apresentar. Ele acena com a mão direita para a passista que amarra a sandália, enquanto a mão esquerda dá a benção para o ritmista que rompe o silencio com a levada de seu tamborim.

Fitando o céu, ele parece ver algo ou alguém acima da linha do horizonte. Sorri, como se pego em meio a brincadeira e se soubesse humano também. Entendendo que ali ele é rebento e que todos, sem exceção, são seu rebanho; ciente de que o pecado, por vezes, é invenção para garantir medo e servidão, ele pede para que toda essa gente que brinca anuncie enquanto canta sorrindo: A VERDADE VOS FARÁ LIVRE.

(Vila Miséria* Travessa Saião Lobato* Candelária* Chalé* Pindura Saia* Buraco Quente* — Todos os nomes referem-se a localidades ocupadas pela comunidade do Morro da Mangueira).

Como se pode perceber, temos aqui uma leitura do ministério de Jesus Cristo marcada por elementos próprios do contexto do intérprete. Ela é proveniente de um lugar que, para alguns, não seria o espaço ideal. O texto de “A Verdade vos fará livre” foi capaz de explorar a reserva de sentido presente na linguagem religiosa e, ao mesmo tempo, desvinculado do espaço eclesial. Com outras categorias, o enredo da escola de samba se apropria do discurso polissêmico da fé cristã e o contextualiza. Preserva-se a força do sentido proposto pela narrativa bíblica, mas a coloca em outro contexto, com outra moldura: o carnaval brasileiro.

Interessante observar as motivações originais do carnaval. Desde a Idade Média, o carnaval demonstra o seu potencial subversivo. A seu modo próprio, “a festa que o povo oferece a si mesmo” é ocasião propícia para manifestações de cunho político. O povo, de forma simbólica, destrona todas as hierarquias instituídas, desde entre o sagrado e o profano até entre o poder do dominador e os dominados. Uma espécie de “golpe de Estado simbólico que termina quase sempre com a eleição de um rei, substituto temporário da autoridade oficial”. A fronteira entre a dimensão lúdica e a dimensão política do carnaval é frágil. Em muitas ocasiões, a festa se transformou em revolta e com muitas mortes. Em alguns lugares, por exemplo, ele foi proibido ao ponto de se punir com pena de morte aqueles que se atrevessem a fantasiar. Mas, mesmo com toda proibição, jamais conseguiram aprisionar o espírito subversivo da festividade (EMPOLI, 2020EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2020., p. 11-13).

Do período medieval para os tempos atuais, os carnavais são outros. No Brasil, por mais que se tenha diversas manifestações carnavalescas e interesses econômicos, a raiz crítica, popular e subversiva se mantém em alguns casos. Por exemplo, no enredo da Mangueira, ao propor uma interpretação da vida e dos feitos de Jesus Cristo à luz da realidade da favela6 6 O termo aqui não tem uma conotação pejorativa. Mais do que um “aglomerado subnormal” – termo técnico utilizado pelo IBGE –, “favela, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros” são espaços marginalizados, na periferia dos centros urbanos, dotados de uma cultura estigmatizada e silenciada. Graças aos movimentos de empoderamento das últimas décadas, a cultura da favela vem ganhando vez e voz e, aos poucos, preconceitos vão sendo superados. , a escola de samba leva para a Sapucaí, a grande avenida, o grito existencial das vítimas da sociedade. O Cristo da Mangueira é o jovem negro7 7 “O Anuário Brasileiro de Segurança Pública detectou que a maior parte das vítimas de mortes violentas é formada por homens, negros e jovens no Brasil. Segundo o relatório, 5.855 adolescentes entre 12 e 19 anos foram vítimas de óbitos violentos. Também houve registro de 170 assassinatos de crianças de até quatro anos. No total, 54,3% dos mortos estavam no grupo de idade até 29 anos. A análise por sexo aponta que os homens representaram 91,3% das vítimas de assassinato em 2020. Por sua vez, os negros correspondem a 76,2% das pessoas vítimas de homicídio”. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/07/amp/4937942-maior-vitima-e-masculina.html>. Acesso em 9 de ago. 2022. , de cabelo platinado e tatuado, cercado também na sua maioria por pessoas negras, muitas mulheres, todos da periferia, que publicamente “cantam” as suas dores. É evidente que tal manifestação sofre resistência das instâncias religiosas fundamentalistas pelo apego acrítico ao tradicionalismo. Com o pretexto de perderem a hegemonia sobre o outro, grupos assim apelam para a violência física e intelectual com o propósito de perpetuar a colonização8 8 A Mangueira recebeu muitas críticas dos grupos fundamentalistas sobre o seu enredo. Destaco uma matéria que reflete esta realidade: “A polêmica em torno do Jesus negro da Mangueira”. Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/categorias/596471-a-polemica-em-torno-do-jesus-negro-da-mangueira>. Acesso em 9 de ago. 2022. No carnaval brasileiro de 2023, algumas escolas de samba utilizaram temas bíblicos nos seus desfiles e o discurso de ódio e a oposição das alas fundamentalistas continuaram. Disponível em: <https://www.uol.com.br/carnaval/noticias/redacao/2023/02/22/carro-alegorico-que-viralizou-com-demonio-representa-passagem-biblica.htm>. Acesso em 16 de mar. 2023. .

2.4 O Jesus da gente: perspectiva decolonial

O “evangelho do ‘Jesus da gente’” anunciado pela Mangueira emerge da “ferida colonial”, quer dizer, de uma consequência do racismo estrutural difundido pelo “discurso hegemônico que põe em questão a humanidade daqueles que não pertencem ao mesmo lócus de enunciação e a mesma geopolítica de conhecimento” (MIGNOLO, 2007MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina. La herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007., p. 34). Desse espaço fronteiriço, negado pelo colonizador, insurge um posicionamento de transgressão contínua viabilizando construções alternativas. Não basta reverter o colonial e passar a um momento não-colonial (“descolonial”), mas acentuar uma postura e atitude de subversão incessante (“decolonial”) (WALSH, 2009WALSH, Catherine. Interculturalidad, Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales de nuestra época. Universidad Andina Simón Bolivar. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2009., p. 14-15).

A decolonialidade provoca ações de sujeitos emergentes com novos níveis de consciência. Nesse contexto, a criatividade teológica se manifesta por meio de outros sujeitos e de outros lugares de enunciação. A leitura bíblica que daí advém vai para além da interpretação monolítica e dá lugar a “hermenêutica diatópica”: “um exercício de interpretação transformadora, orientada para a prática social e política, entre os topoi dos direitos humanos e os topoi da revelação e libertação das teologias política progressistas” (SANTOS, 2014SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014., p. 113).

A leitura bíblica decolonial tem como tarefa primeira se colocar no “entre-lugares”, que “dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação” (BHABHA, 2013BHABHA, Homi. O local da cultura. 2.ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2013., p. 20). Ao se colocar no lugar fronteiriço, o sujeito interpretante faz o difícil exercício de reler os temas religiosos despindo-os das amarras totalitárias. O objetivo é fazer com que o “Deus lá de cima”, distante, dê lugar ao “Deus próximo e profundo” que acolhe o horizonte de significados das vítimas. A adequação e releitura dos símbolos religiosos, além de manter o sentido para o tempo atual, remete a uma dimensão que transcende toda realidade condicionada, tornando possível a experiência da dimensão da profundidade, a experiência do próprio Cristo enquanto vítima das forças opressoras do seu tempo (TILLICH, 2005TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5. ed. rev. São Leopoldo: Sinodal, 2005., p. 305).

A possibilidade de reler passagens bíblicas a partir da margem, como local geográfico e epistemológico, contribui para que se transcenda o pensamento teológico hegemônico, reconhecendo e revelando outras leituras. O pensamento decolonial recorre às narrativas silenciadas por políticas de dominação, mas que nas últimas décadas vêm ganhando espaço devido aos movimentos de empoderamento das minorias (negras, indígenas, gays, feministas e outras). Se a hermenêutica bíblica busca ser decolonial, ela precisa estar aberta à compreensão do mundo epistemologicamente diverso na promoção da “ecologia de saberes” (SANTOS, 2014SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014., p. 107).

A segunda tarefa para uma leitura bíblica decolonial requer o “giro decolonial” capaz de acolher e reconhecer o “diferente”, pôr em evidência uma visão negligenciada sobre a realidade e, ao mesmo tempo, revelar “os limites de uma ideologia imperial que se apresenta como a verdadeira e única interpretação” (MIGNOLO, 2007MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina. La herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007., p. 57). Nessa tensão entre o lugar de fala do marginalizado e o discurso impositivo do colonizador, leituras bíblicas, que não são neutras, podem servir tanto a um quanto ao outro. Elas fundamentam atos libertadores presentes no substrato da tradição judaico-cristã, mas, também, retiradas do seu contexto, podem reforçar pretextos para práticas de violência. Enquanto a primeira leitura é legítima, a segunda não. Isso porque a “Bíblia é a leitura da fé dos eventos paradigmáticos da história salvífica, a leitura paradigmática de uma história de salvação que ainda não terminou” (CROATTO, 1986CROATTO, Severino. Hermenêutica bíblica: para uma teoria da leitura como produção de significado. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulinas, 1986., p. 66).

Outra tarefa importante para a leitura bíblica decolonial, em relação às anteriores, consiste na valorização das “epistemologias do sul”. Uma categoria metafórica, com desafios epistêmicos, capaz de denunciar os danos provocados pelo pensamento hegemônico e dar notoriedade à “pluralidade de conhecimentos heterogêneos em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua autonomia” (SANTOS; MENESES, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010., p. 53). Essa “justiça epistemológica”, para além da academia, realiza-se nos coletivos populares e sociais dotados de saberes experimentados no dia a dia construídos “sempre desde o reverso da história de dominação” (MENDOZA-ÁLVAREZ, 2020MENDOZA-ÁLVAREZ, Carlos. A ressurreição como antecipação messiânica: luto, memória e esperança a partir dos sobreviventes. Petrópolis: Vozes, 2020., p. 89). Não que a academia e a pesquisa não tenham o seu valor e lugar, mas não são os exegetas os únicos protagonistas da leitura bíblica decolonial. Ela provém também da prática de fé, da luta de resistência e da organização dos empobrecidos. “A comunidade popular é a fonte da nova leitura bíblica. Isso faz com que ela não seja propriamente nova e nem mesmo seja uma releitura. De fato, é outra leitura. É a leitura dos empobrecidos” (SCHWANTES, 1986SCHWANTES, Milton. Teologia bíblica junto ao povo. Revista Estudos de Religião, v. 1, n. 3, p. 43-56, março, 1986., p. 48).

A novidade de uma (re)leitura bíblica decolonial é que ela se fundamenta em outras estruturas cognitivas. As vítimas da sociedade são os agentes da interpretação fazendo da aplicação dos textos bíblicos instrumentos de prática libertadora. A ponte hermenêutica entre o grupo interpretante e o mundo da Bíblia traz as marcas das lutas e das dores de gente em busca de reconhecimento existencial, social, político e outros. Não são os simpatizantes das causas de empoderamento dos marginalizados os intérpretes mais importantes dos Textos Sagrados, mas sim os negros, as mulheres, os indígenas, a comunidade homoafetiva, as populações das favelas.

Nesse processo hermenêutico, as vítimas sintonizam o conteúdo dos textos bíblicos de forma direta, propositiva, sem perder tempo com especulações desnecessárias. Ao sintonizar o Cristo dos evangelhos, com o “Jesus da gente” da Mangueira, a comunidade marginalizada, eclesial ou não, identifica-se com o Jesus pobre e perseguido, marginalizado e crucificado. Clareia-se o conflito social, mas, principalmente, reforça a esperança de luta na certeza de redenção do Ressuscitado. “O mais importante não é a libertação, mas a liberdade. Aquela é um processo para esta, que é o lugar ontológico em que o homem pode realizar-se” (CROATTO, 1981CROATTO, Severino. Êxodo: uma hermenêutica da liberdade. São Paulo: Paulinas, 1981., p. 20).

Considerações finais

O tema da decolonialidade suscita tensão. Por se tratar de uma temática conceitualmente nova em alguns espaços, ela cria dissonâncias cognitivas provocadas, em alguns casos, por mero desconhecimento. Outras vezes não. A resistência se dá pela manutenção do poder hegemônico por instâncias dominadoras, seculares e religiosas. Não é uma tarefa fácil desinstalar do poder agentes que insistem em desqualificar a diversidade epistêmica do mundo culturalmente diverso. A desqualificação epistêmica acaba por se converter em negação ontológica. A ideia do não-lugar e do não-humano são instrumentos políticos para legitimar um só lugar, uma só condição humana e um discurso monolítico impositivo e violento. Esse tipo de fala não tem espaço em ambientes dialógicos de hoje.

O tema da decolonialidade, mesmo com as suas limitações, é um ganho para a teologia. O diálogo crítico e maduro entre a teologia cristã e os estudos decoloniais pode abrir frentes de análise de conjuntura e práticas sociais libertadoras. Buscamos, minimamente, fazer essa tarefa a partir do encontro entre as narrativas oriundas de uma escola de samba, a teologia hermenêutica e o contexto brasileiro. Das narrativas carnavalescas nos apoiamos no enredo “Jesus da Gente” da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira (2020); no âmbito da teologia hermenêutica, em linhas gerais, nos apoiamos no trabalho de Claude Geffré e, do contexto brasileiro, focamos a realidade da favela. A linha de costura entre esses temas ficou a cargo dos estudos decoloniais marcados, constitutivamente, pelos movimentos pós-colonialistas, estudos subalternos e grupos modernidade/colonialidade/decolonialidade.

O contexto social e o referente teórico das áreas citadas compõem o cenário da nossa proposta: a teologia bíblica é desafiada a se decolonizar. Abrir espaço para outras leituras da Bíblia e a partir de outros intérpretes parece ser uma riqueza para uma teologia contextual e segura da sua tarefa pública. Sem negar os avanços dos estudos bíblicos, o momento, de movimentos de inclusão em algumas latitudes, é oportuno para verificar o alcance polissêmico da Palavra de Deus. Os textos bíblicos podem e devem ser interpretados pelas vítimas da sociedade no reverso da história.

O “evangelho ‘Jesus da gente’”, do enredo da Mangueira, desinstala a teologia bíblica dos lugares acomodados e provoca um fazer teologal disposto a acolher leituras e interpretações feitas a partir de outros ambientes. A voz que emerge do lugar da vítima da sociedade evoca a esperança de manter, frente às leituras bíblicas opressoras, a vocação libertadora e humanizadora da Palavra de Deus.

O nosso artigo é inconcluso e incipiente, diante dos estudos bíblicos em perspectiva decolonial. Acolhemos o modo de fazer ciência na contemporaneidade. Diferente da modernidade racionalista em que o científico é aquilo sujeito ao processo de verificação, via experimentação, a ciência de hoje “aceita a pluralidade dos jogos linguísticos, dos diversos saberes, das diferentes maneiras de conduzir o próprio método, de pautar seu rigor teórico e de fazer parte de uma comunidade científica como expressão moderna de ciência” (LIBANIO; MURAD, 2001LIBANIO, João Batista; MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2001., p. 88).

Se a teologia sofria resistência em ter a sua cidadania científica reconhecida no contexto da ciência constatável, da verdade comprovada, hoje ela transita melhor nos espaços científicos por merecimento de causa. A teologia com a sua especificidade deve contribuir na busca por sentido do humano e da criação. A leitura bíblica decolonial que se inscreve nesse artigo, mesmo limitada, também dá a sua contribuição para os estudos bíblicos dispostos a dar voz às vítimas da nossa sociedade.

  • 1
    Confira a reportagem em: <https://www.youtube.com/watch?v=8fqDa8RPt0o>. Acesso em 5 de ago. 2022.
  • 2
    Para Alberto Maggi, “a escravidão não é tanto condição quanto convicção; não é uma situação, mas atitude. A verdadeira escravidão não é aquela da qual não é possível libertar-se; não é a dos corpos, mas do coração; não é aquela das correntes, mas das convicções” (MAGGI, 2013MAGGI, Alberto. A loucura de Deus: o Cristo de João. São Paulo: Paulus, 2013., p. 66).
  • 3
    Para se ter uma ideia da dimensão do impacto da influência do fundamentalismo religioso nos governos, confira o artigo: CUNHA, Magali Nascimento. “Pelo governo de Deus”: a inserção de novos movimentos fundamentalistas estadunidenses na arena política do Brasil durante o governo Trump. In: Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Campinas, v. 23, 2021.
  • 4
    Para os estudos decoloniais, a “modernidade”, aparentemente positiva, esconde uma face oculta: a colonialidade. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad-racionalidad. In: PALERMO, Zulma; QUINTERO, Pablo (Coord.). Aníbal Quijano: textos de fundación. Buenos Aires: Editorial: Ediciones del Signo, 2016QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad-racionalidad. In: PALERMO, Zulma; QUINTERO, Pablo (Coord.). Aníbal Quijano: textos de fundación. Buenos Aires: Editorial: Ediciones del Signo, 2016.. p. 64.
  • 5
    Destaco aqui o trabalho feito pelo Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) em que um dos seus objetivos é “descobrir, com a ajuda da Bíblia, a Palavra de Deus na vida do povo, a fim de se chegar a uma nova consciência de cidadania, contribuindo para criar uma sociedade mais digna, justa e sustentável”. Acesso em 8 de ago. 2022: <https://www.cebi.org.br>.
  • 6
    O termo aqui não tem uma conotação pejorativa. Mais do que um “aglomerado subnormal” – termo técnico utilizado pelo IBGE –, “favela, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros” são espaços marginalizados, na periferia dos centros urbanos, dotados de uma cultura estigmatizada e silenciada. Graças aos movimentos de empoderamento das últimas décadas, a cultura da favela vem ganhando vez e voz e, aos poucos, preconceitos vão sendo superados.
  • 7
    “O Anuário Brasileiro de Segurança Pública detectou que a maior parte das vítimas de mortes violentas é formada por homens, negros e jovens no Brasil. Segundo o relatório, 5.855 adolescentes entre 12 e 19 anos foram vítimas de óbitos violentos. Também houve registro de 170 assassinatos de crianças de até quatro anos. No total, 54,3% dos mortos estavam no grupo de idade até 29 anos. A análise por sexo aponta que os homens representaram 91,3% das vítimas de assassinato em 2020. Por sua vez, os negros correspondem a 76,2% das pessoas vítimas de homicídio”. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/07/amp/4937942-maior-vitima-e-masculina.html>. Acesso em 9 de ago. 2022.
  • 8
    A Mangueira recebeu muitas críticas dos grupos fundamentalistas sobre o seu enredo. Destaco uma matéria que reflete esta realidade: “A polêmica em torno do Jesus negro da Mangueira”. Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/categorias/596471-a-polemica-em-torno-do-jesus-negro-da-mangueira>. Acesso em 9 de ago. 2022. No carnaval brasileiro de 2023, algumas escolas de samba utilizaram temas bíblicos nos seus desfiles e o discurso de ódio e a oposição das alas fundamentalistas continuaram. Disponível em: <https://www.uol.com.br/carnaval/noticias/redacao/2023/02/22/carro-alegorico-que-viralizou-com-demonio-representa-passagem-biblica.htm>. Acesso em 16 de mar. 2023.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2022
  • Aceito
    24 Maio 2024
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