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A pesquisa sobre a produção do fracasso escolar: memórias de sua construção

Research on the production of school failure: memories of its construction

La investigación sobre la producción del fracaso escolar: memorias de su construcción

RESUMO

O presente artigo põe em foco a pesquisa que deu origem ao livro A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia, baseado em memórias das pesquisadoras. Tal obra é considerada um marco, pois tece incisivas críticas às práticas hegemônicas da Psicologia e da Educação e propõe rupturas teóricas e metodológicas radicais na pesquisa sobre a escola pública brasileira. O artigo partilha reflexões teórico-metodológicas que orientaram a realização de encontros-entrevistas com Maria Helena Souza Patto e as três pesquisadoras auxiliares do clássico livro. Retomada a trajetória pregressa das participantes, a costura de lembranças das pesquisadoras com reflexões registradas no livro referentes ao procedimento desenvolvido traz detalhamentos não ressaltados na publicação e que foram fundamentais para o estudo das práticas cotidianas.

Palavras-chave:
Fracasso Escolar; Pesquisa Qualitativa; Memória

ABSTRACT

The present article focuses on the research that originated the book The Production of School Failure: Stories of Submission and Rebellion, based on the memories of the researchers. This work is considered a landmark because it makes sharp criticisms of the hegemonic practices of Psychology and Education and proposes radical theoretical and methodological ruptures in research on Brazilian public education. The article shares theoretical and methodological reflections that guided the meetings and interviews with Maria Helena Souza Patto and the three auxiliary researchers of the classic book. Once the participants’ previous trajectory is retrieved, a sewing of the researchers’ memories with the reflections registered in the book regarding the procedure developed brings details that were not highlighted in the publication and that were fundamental for the study of daily practices.

Keywords:
School Failure; Qualitative Research; Memories

RESUMEN

El presente artículo enfoca la investigación que dio origen al libro La producción del fracaso escolar: historias de sumisión y rebeldía, a partir de las memorias de las investigadoras. Dicha obra es considerada un hito, ya que hace críticas incisivas a las prácticas hegemónicas de la Psicología y de la Educación, y propone rupturas teóricas y metodológicas radicales en la investigación sobre la escuela pública brasileña. El artículo comparte reflexiones teórico-metodológicas que orientaron la realización de encuentros-entrevistas con Maria Helena Souza Patto y las tres investigadoras auxiliares del libro clásico. Retomada la trayectoria anterior de las participantes, la costura de memorias de las investigadoras con reflexiones registradas en el libro referentes al procedimiento desarrollado trae detalles no destacados en la publicación y que fueron fundamentales para el estudio de las prácticas cotidianas.

Palabras clave:
Fracaso Escolar; Investigación Cualitativa; Memorias

INTRODUÇÃO

Há mais de 30 anos, a Psicologia Escolar e Educacional brasileira foi impactada pelo livro A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
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). Lançado em 1990, resultando da livre-docência de Maria Helena Souza Patto, defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) em 1987, o livro dá relevo à complexidade envolvida no fracasso escolar brasileiro, rompendo com leituras dominantes na Psicologia que marcaram a trajetória da própria autora.

Em resumo, o livro tem duas partes. A primeira volta-se à história das concepções sobre o fracasso escolar na Europa e Estados Unidos no século XIX e começo do século XX, pós-triunfo da revolução burguesa; a segunda põe em foco o caso brasileiro. Com base nos conceitos marxistas de ideologia e crítica, Patto desvela que a Psicologia tradicionalmente assumiu papel determinante na consolidação de uma concepção individualizante do fracasso escolar, privilegiando aspectos intrapsíquicos dos alunos, especialmente o desenvolvimento intelectual, motor e da personalidade. Dessa forma, questões complexas presentes no processo de escolarização em uma sociedade de classes, acirradas em um país com história de colonização, genocídio e escravização brutais, foram propositalmente desconsideradas. Patto retorna às chamadas teorias racistas e desnuda seu desenrolar em novas roupagens, culminando na teoria da carência cultural. Embora veja diferenças entre as explicações criadas pela Psicologia ao longo da história, a autora ressalta que, em comum, elas servem como justificação supostamente científica para as desigualdades sociais, vistas como resultado de diferenças individuais em uma sociedade e uma escola tomadas de forma abstrata e naturalizada.

É sobretudo na segunda parte do livro, voltada para a pesquisa de campo realizada em uma escola pública na periferia da cidade de São Paulo, que reside o foco deste artigo. Com um desenho inovador, a equipe, composta de três pesquisadoras auxiliares além dela, conviveu longamente com educadoras, crianças e familiares, por meio de observações da vida escolar, visitas domiciliares, entrevistas e análise documental. Tal pesquisa revela que o fracasso é produzido nas relações escolares, das decisões dos órgãos centrais ao chão institucional. A análise da vida cotidiana de uma escola pública de periferia convoca à compreensão dos dilemas e contradições que povoam escolas precarizadas, articulando-a com raízes profundas de opressão e preconceito.

Impactante do ponto de vista teórico e metodológico, o livro ganhou o prêmio do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP) de maior relevância na área, em 1995. Considerado clássico (Carvalho, 2011CARVALHO, José Sérgio F. de. A produção do fracasso escolar: a trajetória de um clássico. Psicologia USP, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 569-578, set. 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642011005000023. Acesso em: 09 dez. 2022.
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), ele consta da formação de psicólogas(os) e educadoras(es) no país, sendo o mais referenciado de Patto. Das várias edições e reimpressões, destacamos a quarta edição, revista e ampliada, lançada em 2015, na qual foi incluída a parte intitulada "25 anos depois", com um posfácio da própria autora sobre a construção da pesquisa, bem como um capítulo que sintetiza outra pesquisa que voltou às crianças acompanhadas em tal estudo, após duas décadas, para conversar sobre o passado escolar (Souza e Amaral, 2022SOUZA, Denise Trento Rebello de; AMARAL, Daniele Kohmoto. Quatro histórias de (re)provação escolar – Notas sobre o rumo das vidas de Ângela, Nailton, Augusto e Humberto. In: PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022. p. 618-644.). No presente artigo, adotamos o recém-lançado e-book com acesso gratuito (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
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).

Dando destaque à pesquisa de campo em que se baseia a tese defendida no livro, enfatizamos questões metodológicas que não foram ressaltadas na publicação. Para tanto, trilhamos os caminhos partilhados a seguir.

TRILHAS METODOLÓGICAS

Como parte de uma pesquisa de pós-doutorado que visa a analisar a obra de Maria Helena Souza Patto,1 1 Sua obra está reunida no Ambiente Virtual Maria Helena Souza Patto: www.mariahelenasouzapatto.site. realizamos encontros periódicos com a autora desde a construção do projeto, em 2020. Serviram de inspiração as orientações de Ecléa Bosi (2003)BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. sobre o trabalho de memória. Também nos tocamos com Oliveira e Machado (2021)OLIVEIRA, Richard de; MACHADO, Adriana Marcondes. Entrevista como Experiência, Loucura como Método: Composição de uma Ética do Encontro. Estudos e Pesquisas em Psicologia, [S. l.], v. 21, n. 2, p. 416-436, 2021. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revispsi/article/view/61049. Acesso em: 20 maio 2024.
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, para quem o encontro-entrevista deve provocar pensamento, ser exercício de composição, de tal modo que as interpretações não sejam exteriores, mas enlaçadas no próprio encontro.

Os diálogos com a autora foram intensos. O fato de termos parcerias anteriores, nas quais nutrimos amizade, contribuiu para seu aceite em participar. Maria Helena encontrou-se conosco sistematicamente por videochamadas, quando lemos e conversamos sobre sua obra.

O exercício de ler esse conjunto em ordem cronológica sinalizou publicações anteriores à Produção do fracasso escolar, nas quais ela tece reflexões teóricas e metodológicas implicadas na realização de pesquisas com crianças cujo conteúdo compõe sua gestação.

A produção do fracasso escolar foi pauta constante. Reler o livro em companhia ativou memórias da autora e despertou questões não detalhadas na obra sobre a ambiência da consagrada pesquisa, seu processo de construção e a rotina do trabalho de campo. Nossas conversas intensificaram o interesse em ouvir as pesquisadoras auxiliares, com quem também tínhamos contato prévio, a fim de trazer novos elementos sobre tal construção.

Assim, realizamos entrevistas com as três pesquisadoras auxiliares. Para alimentar os encontros, enviamos antecipadamente um roteiro com perguntas sobre a trajetória pregressa; a participação na pesquisa do ponto de vista da rotina e das reflexões suscitadas pela experiência; e os impactos na vida profissional. Realizados em maio de 2022, os encontros-entrevistas duraram em média duas horas cada um. No presente artigo, costuramos trechos dos depoimentos entre si e com excertos da obra clássica, dando vida a questões experienciadas na construção da pesquisa.

O material por nós produzido foi dialogado com as participantes, que puderam tecer sugestões e comentários neste texto. A pesquisa foi aprovada na Plataforma Brasil (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética — CAAE: 53707621.3.0000.5531).

Durante os encontros-entrevistas, ganhou destaque a relação entre elementos da trajetória das pesquisadoras e a pesquisa. Nesse sentido, inicialmente, apresentamos aspectos da biografia intelectual de Maria Helena Patto que nutriram a elaboração da pesquisa. Em seguida, partilhamos o contexto em que as pesquisadoras auxiliares ingressaram na pesquisa, reflexões sobre a necessidade de mudanças metodológicas nas investigações sobre a produção do fracasso escolar e detalhamentos dos procedimentos realizados.

ENTRE PERGUNTAS E CAMINHOS, RUPTURAS E COMPROMISSOS

Nascida em uma pequena fazenda no interior de São Paulo, Maria Helena Souza Patto é mulher cisgênero, branca, de classe média. Hoje com 80 anos e aposentada desde 2011, iniciou a vida escolar na rede pública e concluiu-a na particular, sem intercorrências. Formou-se psicóloga na Universidade de São Paulo (USP) em 1965, tornando-se professora ali no ano seguinte, antes de iniciar o mestrado na mesma instituição, em 1967.

Embebida da formação dominante à época, sua dissertação, defendida em 1971 e publicada em 1973, toma por base as teorias ambientalistas estadunidenses, concepção que a convenceu por aparentemente superar o dominante reducionismo predeterminista. Tendo os programas de educação compensatória por objeto, Patto (1973)PATTO, Maria Helena Souza. Privação cultural e educação primária. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1973. passou um período nos Estados Unidos, para conhecê-los de perto.

A dissertação conclui ressaltando a necessidade de estudar as "características comportamentais da criança brasileira e as necessidades educacionais regionais, resultantes desta caracterização" (Patto, 1973PATTO, Maria Helena Souza. Privação cultural e educação primária. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1973., p. 103). Assim, nos anos 1970, Maria Helena participou de diversas pesquisas empíricas, em viés ambientalista, adotando por procedimento a observação cronometrada em laboratório ou no ambiente escolar e a aplicação de testes psicológicos, tendo por participantes crianças de diferentes níveis socioeconômicos da Grande São Paulo.

Em nossos encontros, Maria Helena insiste que não há postura crítica nesse período, ressaltando a ruptura teórica posterior:

Quando comecei, eu era ainda muito jovem, escrevi o que era possível naquele momento. Esse livrinho foi publicado em 1973. Pouco depois, eu já não usava mais ele. O caminho foi ficando estreito, até a hora que não tinha passagem. A ideia de privação é uma porta fechada. Depois do mestrado, fui estudar, porque vi que estava boiando, eu queria ir ao fundo. Li livros em outra direção, comecei a ver que precisava fazer a crítica à sociedade capitalista, à divisão de classes, que aparecia antes sob o falso argumento da capacidade.

Vivências pessoais e profissionais disruptivas tiveram suporte em leituras realizadas nos anos 1970, com destaque para Althusser (1974)ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença, 1974. e Bourdieu (1974)BOURDIEU, Pierr. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974., recém-traduzidos no Brasil (e cujo reprodutivismo será criticado por ela depois). Conversar sobre rupturas teóricas remeteu Maria Helena à infância, à influência de sua avó comunista e a situações do início da vida escolar. Estudando na mesma escola pública que meninas pobres recém-migradas do nordeste para São Paulo, chamou sua atenção, desde pequena, a diferença com que ela e suas colegas eram tratadas:

Elas foram matriculadas, mas quando chegaram na escola, já havia uma coisa prévia em relação a elas. Elas foram colocadas no fundo da sala, encostadas na parede, e eu na primeira fila. As professoras ignoravam a existência dessas meninas, não falavam com elas, tratavam como lixo. Uma coisa horrível. Uma violência sem grito, não se relacionar com elas… Elas não conseguiram aprender porque a professora nem olhava para elas. Desistiram da escola. Na verdade, foram expulsas, porque ninguém quis ensinar essas meninas. Eu nunca esqueci essa história! Doeu, eu gostava delas. A gente trocava muito. Acho que ali eu senti que precisava ficar atenta ao que não se fala, porque tudo que se falava era para botar esse pessoal para baixo.

Essa e outras vivências, desde quando menina, prepararam sua sensibilidade para a desigualdade social, olhar adensado em sua trajetória: "Anos depois, volto a essas histórias". Tão logo aprendeu a ver lacunas e contradições nas concepções ambientalistas, ao situar o compromisso político com a justificação das desigualdades sociais (Chaui, 1980CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.), ela teceu críticas a diversas teorias explicativas do fracasso escolar brasileiro, tarefa iniciada no doutorado (Patto, 2022bPATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2022b. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/924. Acesso em: 21 maio 2024.
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).2 2 Neste artigo, não abordamos tal pesquisa, pois ela segue outro caminho metodológico — ali, são aplicados questionários em psicólogas que atuam na rede pública de educação. De toda forma, recomendamos sua leitura, por ser o primeiro marco intelectual crítico da autora e por sua atualidade.

Maria Helena passou a adotar o materialismo histórico-dialético como referencial. No movimento de ruptura, mantiveram-se três aspectos desde o mestrado: o compromisso com a qualidade da escola pública; a compreensão de que é necessário se aproximar da realidade concreta; e a conclusão de que cabe construir um conhecimento "genuinamente" brasileiro para pensar o Brasil.

Buscando, em sua obra, reflexões críticas sobre o ato de pesquisar, situamos como mais antigo o artigo escrito com Copit, que analisa a produção de pesquisas com crianças realizadas entre 1968 e 1978 e localizadas na Biblioteca do IPUSP (Copit e Patto, 1979COPIT, Melany S.; PATTO, Maria Helena Souza. A criança pobre-objeto na pesquisa psicológica. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, p. 6-9, 1979. Disponível em: http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/article/view/1659. Acesso em: 09 dez. 2022.
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). Ao mesmo tempo que criticam tal conjunto, as autoras dão pistas de como pesquisar crianças concretas.

Indicando um denso processo de estudo teórico-metodológico antes da livre-docência, o mesmo anúncio é feito na coletânea Introdução à Psicologia Escolar (Patto, 1981PATTO, Maria Helena Souza (Org.). Introdução à Psicologia Escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1981.), sobre a qual Maria Helena fala: "esse livro aponta caminhos que depois serão aprofundados". Destacamos o capítulo "Da psicologia do ‘desprivilegiado’ à psicologia do oprimido", no qual Patto (1981PATTO, Maria Helena Souza (Org.). Introdução à Psicologia Escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1981., p. 224) escreve:

Uma das conclusões a que chegamos, diante do estado de coisas vigente no campo da pesquisa da criança oprimida, é de que não conhecemos a criança brasileira em suas características psicossociais e pedagógicas; aliás, nem poderíamos, já que, sobretudo, as estudamos mal. Colecionamos afirmações, muitas vezes preconceituosas, sobre o que ela não sabe fazer e não conhece; ignoramos o que ela sabe e conhece, suas capacidades e habilidades, que devem ser muitas, pois, afinal, a mantém viva num contexto social que lhe é extremamente adverso. Exigimos, além disso, que ela deixe na porta da escola suas vivências, sob pena de ser considerada inapta.

A fim de romper com a produção de desconhecimento, defende a revisão profunda das formas de pesquisar crianças pobres, suas famílias e escolas, marcando que não há estratégias boas ou ruins em si, sendo decisiva a visão de mundo que as orienta. Contrapondo os "habituais interrogatórios, geradores de falsas noções e falsas impressões sobre o oprimido, sua visão de mundo, suas habilidades verbais e intelectuais, seus valores e seu estilo de vida", Patto valoriza a entrevista, ainda pouco utilizada na Psicologia. Em lugar das "técnicas e os contextos de observação do comportamento da criança oprimida" em seu contorno dominante ("a observação cronometrada e rigidamente categorizada, de pedaços estanques de sua atividade no mundo", realizada sobretudo em "contextos artificiais e inibidores, como a sala de aula e o laboratório"), propõe a observação "orientada antropologicamente", privilegiando "o ambiente real de vida do ‘marginalizado’, numa situação de pesquisa em que ele possa, mais livre e espontaneamente, se mostrar em sua complexidade" (Patto, 1981PATTO, Maria Helena Souza (Org.). Introdução à Psicologia Escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1981., p. 224).

Com esse engajamento, Maria Helena costurou o projeto de sua pesquisa de maior repercussão. Enquanto deu sequência ao estudo no campo crítico e selecionou uma escola, compôs uma equipe de pesquisadoras, à época alunas de graduação, apresentadas a seguir, em ordem de ingresso na faculdade.

AS PESQUISADORAS AUXILIARES3 3 Todas são mulheres cisgênero brancas.

Sandra Maria Sawaya é professora aposentada da Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Vinda de uma família com boa condição socioeconômica que sofreu uma crise financeira, Sandra relata que essa experiência a levou a ter um "contato com a realidade": ela fez o ensino fundamental em uma famosa escola particular feminina e o ensino médio na rede pública. Em suas palavras, "enquanto eu estava sem aula de literatura, um amigo lia Dostoiévski". Na escola pública, apesar da precariedade, vivenciou a intensa vida cultural e a garra dos colegas para ingressar à universidade, o que vários conseguiram. Por outro lado, mesmo com uma formação excelente, nem todas as colegas da escola privada optaram por cursar a universidade. Estimulada pela família, a universidade e o mundo do trabalho foram sua prioridade. Sandra entrou no IPUSP em 1979.

Ianni Regia Scarcelli é professora do IPUSP. Nascida na periferia da cidade de São Paulo, sua família pertence à classe trabalhadora. Ianni viveu toda a escolarização na rede pública, onde chegou a ouvir de professores que "era surreal pensar em entrar na faculdade, ainda mais na USP". Ela fez cursinho, pois não passou no vestibular na primeira tentativa, ingressando no IPUSP em 1980. Sendo a primeira da família a entrar na faculdade, fez a graduação em meio a dificuldades financeiras. Aliando formação e sobrevivência, vendeu bolos na faculdade e trabalhou no Departamento Científico do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, da Faculdade de Medicina da USP. Receber bolsa para participar da pesquisa, ainda que dividida com uma colega, ajudou em sua permanência.

Denise Trento Rebello de Souza é professora aposentada da FEUSP. Nascida em Santos, é filha de um petroleiro que sonhava em ter os filhos formados. Como "ele tinha pressa", Denise entrou na escola antes de completar sete anos, o que só ocorreria no segundo semestre. Por isso, ela fez o antigo primário em escola particular, mudando para a escola pública no ginásio. "No último ano do ensino médio, estudei em escola privada, porque construí a ideia de entrar na USP". Autodefinida como "determinada", estudou intensamente e ingressou no IPUSP em 1981, sendo a "primeira geração a chegar à universidade". Seu pai pôde garantir todas as condições para sua formação: "eu só estudei, nunca precisei trabalhar".

Ingressando em anos diferentes e com histórias escolares distintas, as três comungam no fato de que o caminho até a pesquisa dialoga com o interesse por questões sociais, nutrido nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB). Todas contam como conheceram Maria Helena. A primeira foi Sandra:

Desde o primeiro ano de faculdade passei a participar das CEB, que estavam vinculadas aos movimentos populares de luta por moradia, educação e creche. Lembro que, nas férias, fui morar em uma Paróquia na periferia da zona Leste, cuidei da creche. No segundo ano de faculdade, cursei a matéria da Ecléa Bosi, me encantei pela temática e pelo campo da pesquisa, tendo sido monitora dela. Depois fui estagiária no Instituto de Pesquisas Tecnológicas, compus um estudo das condições de moradia das populações pobres em São Paulo, minha primeira experiência em trabalho de campo. Na sequência, fiz o curso da Maria Helena Patto, que havia sido orientanda da Ecléa. O estágio nas escolas públicas e a intensa convivência com as famílias, as crianças e a escola me fizeram me identificar cada vez mais com a área, com o referencial teórico e com o trabalho dela. No ano seguinte, 1982, fui monitora da disciplina. Ela já estava desenhando o projeto da pesquisa que deu origem à Produção do Fracasso Escolar, comecei a participar como auxiliar, a convite dela. Em 1983, ela foi convidada a compor o quadro de pesquisadores da Fundação Carlos Chagas4 4 Entre 1983 e 1989, Maria Helena Souza Patto foi pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC). e eu a acompanhei, dando continuidade à pesquisa. Permaneci na pesquisa até me formar. Me afastei por três meses, porque fui para a Inglaterra, depois voltei.

A entrada de Ianni na pesquisa dialoga com seu (des)encontro com a Psicologia:

Como sempre fui boa aluna na escola, alguns professores me comparavam a estudantes considerados "fracos" e eu me sentia péssima. Contudo, quando entrei na USP, comecei a me comparar aos meus colegas e achar que eu não sabia nada. Tenho impressão de que essa sensação atinge ingressantes por ações afirmativas. É um choque, um ambiente muito diferente do que era acessível até então.

Particularmente, tive uma decepção muito grande com o curso, não identificava nele um sentido às necessidades da periferia. Mas me encantei com a USP, pois ela me deu acesso a muitas coisas, um novo mundo se abriu: fui cantar no CORALUSP; entrei no movimento estudantil. Tive informações e pude participar, mesmo que timidamente, da luta que ocorria no país. A ditadura vinha esmorecendo, as violências no IP e na USP eram recentes.5 5 Vários foram os assassinatos e desaparecimentos políticos de universitários à época. Destacamos três estudantes da USP brutalmente assassinados: Iara Iavelberg e Aurora Furtado, estudantes de Psicologia; e Alexandre Vannucchi Leme, estudante de Geologia. Para conhecer essas e outras histórias, acessar: https://memoriasdaditadura.org.br/. Essas experiências mudaram minhas expectativas em relação à universidade e ficou claro que eu deveria me voltar para minha comunidade e para o trabalho junto às periferias. No meu bairro havia movimentos importantes em torno da saúde e ações nas CEBs. Paulo Freire tinha voltado recentemente do exílio e veio a possibilidade de fazermos grupos de cultura, de alfabetização de adultos. Além de todo apoio, ele nos convidou a fazer sua disciplina na PUC, Alternativas em Educação Popular. O horário coincidia com o do meu curso, mas priorizei ser aluna de Paulo Freire! Foi um grande respiro, cheguei a pensar em mudar para a Educação. Aí conheci Maria Helena.

Muitos estudantes falavam dela. Assisti à defesa de doutorado dela em 1981. Auditório lotado e um momento importante. No ano seguinte, fiz uma disciplina ministrada por ela. No primeiro dia de aula, percebi que havia me encontrado, que estava no curso certo. Fiquei admirada com as aulas e com sua clareza ao pensar as diferentes dimensões envolvidas na vida. Foi um impacto e um alento. Quando terminou o semestre, fiquei triste de pensar que perderia esse contato. Eu praticamente não falava em aula, nem sei como consegui o telefone dela (risos), liguei com receio e insegura: "Maria Helena, você não vai me conhecer porque eu era quietinha na aula, me chamo Ianni". Ela falou: "Scarcelli" (risos), "você estava muito presente, era uma aluna atenta". Aí, marcamos uma conversa, e ela falou: "Estou organizando uma pesquisa, se você quiser, pode ter a função de auxiliar". Levei um susto! Me questionei se daria conta. Nossa! Uma pesquisa!

Com poucas oportunidades na universidade à época, Ianni e Sandra dividiram uma bolsa para serem auxiliares da pesquisa. Ianni lembra a importância de tal valor para sua formação e ressalta que quase não havia possibilidades de bolsa e nenhuma política de permanência. Também não havia seleção: "foi a gente quem a procurou".

Denise achegou-se mais adiante na pesquisa. Sua entrada também dialoga com sua história pregressa:

Entrei na psicologia por consequência de um início de militância que eu tinha, jovenzinha, nas CEB. Era um momento de abertura política e a gente desejava fazer alguma coisa. Eu pendia para serviço social, sociologia, medicina… Acabei escolhendo psicologia, mas eu era do grupo da exceção, a regra era querer clínica. As primeiras disciplinas decepcionaram, aquela chatice de início… No terceiro ano, Maria Helena foi minha professora de psicologia escolar, foi a disciplina que, nossa! A Maria Helena é a Maria Helena, né? Aquela luz que entra na vida da gente. Na minha foi assim. Trouxe um mundo, falei: "é isso que eu quero". 1983 foi especial para mim! Eu conheci simultaneamente a Maria Helena e o Paulo Freire, uma maravilha! Quando acabou a disciplina, eu queria fazer alguma coisa e não tinha iniciação científica, não tinha nada. Falei: vou bater na porta dela e falar que estou disponível para o que quer que seja. Ela falou: "estou fazendo um projeto na FCC". Por coincidência, a Sandra ia pra Europa, tinha uma vaga de auxiliar de pesquisa. Foi assim que comecei a trabalhar com ela. Ficamos eu e a Ianni na pesquisa, e quando a Sandra retornou, ficamos as três.

Com esta equipe, deu-se início à pesquisa propriamente dita, apresentada a seguir.

OS FUNDAMENTOS E A FORMAÇÃO: DO TEXTO AOS BASTIDORES DA PESQUISA

Antes mesmo da segunda parte do livro, sobre a pesquisa empírica, Patto ressalta, ao analisar um conjunto de pesquisas educacionais da época, incluindo as que produziam avanços, que, "ao contrário do que se costuma afirmar, há muito o que fazer na área" (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
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, p. 221). Sua análise destaca o ecletismo e a incoerência entre teoria e método, do que decorrem discursos fraturados, nos quais a crítica ao sistema educacional convive com explicações reducionistas e individualizantes com relação à produção do fracasso escolar. Nesse cenário, ela conclui como urgente que se realize "uma discussão metodológica, ampla e profunda", visando à "superação de ‘verdades’ e de simplificações que podem estar continuamente atuando contra os interesses das classes sociais a que se referem" (p. 223). Essa discussão atravessa todo o livro.

De início, Patto anuncia o objetivo de "contribuir para a compreensão do fracasso escolar enquanto processo psicossocial complexo" (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
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, p. 36, grifo nosso). Sua intenção é tensionar o "psicologismo", que toma "a dimensão psíquica como algo que antecede o social e a ele se sobrepõe", ressaltando, ao contrário, "a determinação histórico-social da ação humana", o que não significa traçar uma relação determinista entre situações e pessoas singulares e o contexto mais amplo. Como afirma, trata-se de um estudo "sobre educadores que atuam numa escola situada num bairro periférico onde habitam crianças e adultos num certo sentido únicos, mas que nem por isso deixam de ser porta-vozes dos que vivem em condições sociais de exploração e opressão" (p. 38).

O debate metodológico é adensado no capítulo "A teoria e a pesquisa". Análises quantitativas contribuem para retratar o todo, mas as estatísticas apagam nuances das vidas singulares, de onde nasce a necessidade de pesquisas qualitativas que se aproximem das situações concretas invisibilizadas pelo olhar de sobrevoo. Patto sabe que é ingênuo supor que, só por ser qualitativa, a pesquisa vá, em si, superar o tradicional olhar ao processo de escolarização em uma sociedade de classes. A superação do modo positivista de pesquisar é mais complexa do que uma troca superficial de procedimentos. Como escreve Patto (2022, p. 251):

A adesão aos métodos da antropologia cultural tem sido um dos recursos mais frequentes nessa tentativa de afinar a pesquisa em educação com as proposições do materialismo dialético. No entanto, o apelo a esses métodos não realiza necessariamente uma relação orgânica entre a teoria e a pesquisa; para que isso ocorra, é preciso que as observações e entrevistas sejam feitas e interpretadas no marco de uma concepção de realidade social que leve em conta a sua historicidade.

No bojo do materialismo histórico-dialético, a pesquisa adota a sociologia da vida cotidiana, da filósofa húngara Agnes Heller, por possibilitar um olhar para a vida escolar que "vai além da mera descrição da rotina das práticas sociais, em geral, e das relações interpessoais, em particular" (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/po...
, p. 252). Após tecer uma densa síntese do pensamento de Heller (1970)HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970., Patto destaca o interesse em entender o cotidiano escolar em relação com seu contexto social mais amplo. Conforme ela escreve:

Embora a cotidianidade seja permanentemente remetida ao global, sua análise impede que a realidade pesquisada seja reduzida a categorias gerais como Estado, cultura, modo de produção etc. Assim sendo, por intermédio do estudo da cotidianidade também se realiza a ascensão do abstrato ao concreto e a referência à realidade social deixa de ser feita no singular para se fazer no plural; do ângulo da análise do social centrada na vida cotidiana, inexiste a sociedade industrial capitalista, homogênea no tempo e no espaço, assim como deixa de ter sentido falar em abstrações como a escola pública elementar de periferia, a família brasileira, a criança carente, o professor primário etc. Seus denominadores comuns decorrentes do fato de serem realidades situadas no mesmo tempo e no mesmo espaço, embora fundamentais à sua compreensão, podem não dar conta, como instrumentos únicos de análise, de suas especificidades. (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
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, p. 254)

Patto menciona, no livro, que conheceu a sociologia de Heller em uma disciplina de José de Souza Martins. Simultaneamente, Justa Ezpeleta e Elsie Rockwell (1986)EZPELETA, Justa; ROCKWELL, Elsie. Pesquisa participante. São Paulo: Cortez, 1986. fizeram o mesmo movimento de pesquisar o cotidiano escolar mexicano baseadas em Heller. No Posfácio, escrito 25 anos depois de lançado o livro, Patto (2022, p. 654) partilha:

A metodologia de pesquisa da vida escolar proposta desde o final da década de 1970 pelas pesquisadoras mexicanas Justa Ezpeleta e Elsie Rockwell — cujos escritos foram publicados no Brasil em 1986 — foi um dos pilares da pesquisa que realizei, embora eu tenha tomado conhecimento de seus textos quando a pesquisa de campo já havia sido encerrada e os resultados estavam sendo analisados. Baseadas elas também na filosofia da vida cotidiana de Agnes Heller e na crítica do método etnográfico, incorporei-as na fase final da redação de A produção do fracasso escolar.

Em comum, todas buscam a trama miúda da vida escolar. Nessa costura, "aspectos aparentemente informes passam a fazer parte do conhecimento e são agrupados, não arbitrariamente, mas segundo os conceitos e uma teoria determinados" (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/po...
, p. 252). A escolha de "pensar a vida cotidiana de uma forma não-cotidiana" traz implicações. Escreve Patto (2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/po...
, p. 252):

Neste projeto de valorização do desvalorizado pela filosofia e de reunião do que as ciências parcelares fragmentaram, uma atitude é fundamental: a de distanciamento e estranhamento do que é conhecido, familiar, "natural", o que permite a recuperação, pelo pensamento reflexivo, de fatos conhecidos mas mal entendidos, familiares mas desconsiderados ou apreciados ideologicamente.

Um último aspecto: Patto (2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/po...
, p. 256) enfatiza que, se toda descrição já é uma interpretação, há "lugar para a subjetividade do pesquisador". Desta forma, passa a importar a qualidade da relação construída com as pessoas participantes, bem como o registro criterioso de "sentimentos, associações de ideias, imagens e impressões" de todas — participantes e pesquisadoras.

A pesquisa de campo feita para A produção do fracasso escolar afinou-se com tal diapasão. Nas entrevistas, as pesquisadoras lembraram seus bastidores, incluindo aspectos não registrados no livro que ajudam a conhecer como se constituiu seu processo.

A formação das pesquisadoras deu continuidade à disciplina da graduação que despertou o desejo de trabalhar com Patto. Sandra marca que "ela tinha uma erudição impressionante, circulava pela história, filosofia"; e destaca o estudo de Heller, lembrando que "naquele tempo só tinha o Sociologia da vida cotidiana em italiano". Segundo Ianni:

Maria Helena disse que a pesquisa seria feita na escola, andando pelo bairro, fazendo a caracterização dele e escrevendo diários de campo. Antes disso acontecer ela propôs que estudássemos alguns autores. Passamos a fazer encontros, não me lembro a periodicidade. Ela trazia Pichon-Rivière, Basaglia, Laing, Cooper. E Heller que foi fundamental. Tudo o que estudamos foi referência para a pesquisa e para nossas vidas.

Embora tenham estudado para fundamentar a pesquisa, Sandra lembra:

Naquele tempo, não tinha grupo de pesquisa como hoje, com leitura sistematizada… O desenho era outro: "vamos olhar para o campo, para as coisas que a gente tem, e vamos começar a pensar, buscar bibliografia e analisar". Era a busca permanente de interpretar o que a gente via. Então, Maria Helena trouxe uma novidade em Psicologia: "nós não vamos pegar um autor e aplicar na realidade". Uma inovação foi essa inversão. Não fomos confirmar hipóteses, fomos olhar o que aparecia numa realidade complexa como a escola. É certo que havia algumas ideias do que encontraríamos, mas a novidade estava justamente em reconstruir… Processo de construção foi um conceito fundamental no trabalho.

Maria Helena nos deixou livres, entre aspas, no seguinte sentido: não existia um roteiro predefinido, não éramos auxiliares de pesquisa aplicando questionário. A proposta foi se colocando de forma cada vez mais clara: ela queria entender o processo de construção da "melhor" e da "pior" sala de aula, segundo as professoras, as crianças, a instituição etc. As situações ali vividas, processos que aconteciam sem que eles se dessem conta. Que pensamentos, relações, práticas se estabeleceram ali? Essa tessitura, essa trama, como diz a Elsie Rockwell, a partir da qual a vida cotidiana da instituição, a vida de cada um de nós vai sendo tecida, e escapa a qualquer visão prévia.

Denise vai na mesma direção:

Maria Helena dava muita autonomia para nós, nos deixava à vontade. Ela deu poucas diretrizes: é um estudo de longa duração. E muita autonomia. Eu já era uma aluna de quarto ano, né? Ela deu o mínimo para nos sentirmos seguras para ir, leituras… E a gente conversava com ela. Talvez esse jeito tenha ajudado cada uma a desenvolver seu próprio modo de conduzir o trabalho.

A formação das pesquisadoras acompanhou todo o processo. Sem nomear de supervisão ou orientação, todas se referem a encontros com Maria Helena, individuais e em grupo, destacando sua disponibilidade:

SANDRA: Eu tive um contato intenso com a Maria Helena, a gente convivia muito, tinha conversas sistemáticas sobre o que víamos, o que percebíamos. Ela contava o que estava acontecendo, trocávamos ideias. Tinha momentos em que líamos juntas o caderno de campo. Isso foi absolutamente formativo. Nós estávamos sempre discutindo o trabalho, as questões do campo. Foram momentos preciosos.

IANNI: Foi a base de minha formação trabalhar com ela. Tínhamos apoio, e eu me sentia acolhida e contente. Com ela aprendi a pensar e construir modos de fazer psicologia.

DENISE: Às vezes a gente se reunia, mas era mais individual. Sempre que eu quis, tive encontros com a Maria Helena, ela era muito acessível. Fazíamos reuniões, eu contava o que estava acontecendo, ela trazia alguma coisa para eu ler.

As três auxiliares tinham a FCC como espaço de encontro com Maria Helena. Lá se envolveram em outras pesquisas sob sua orientação. Para todas, A produção do fracasso escolar foi um marco.

A PESQUISA DE CAMPO

Durante os anos de 1983 e 1985, primeiro Sandra e Ianni, a quem se somou Denise, frequentaram um bairro da periferia da cidade de São Paulo, circulando por vários contextos e se dirigindo sistematicamente a uma escola pública de primeiro grau e às casas de quatro crianças multirrepetentes que nela estudavam, a fim de observar a dinâmica, conviver e conversar formal e informalmente com diversas pessoas envolvidas na vida escolar. Maria Helena foi responsável por selecionar a escola, tecer os acordos para a pesquisa, realizar encontros e reuniões pontuais, além de algumas entrevistas. Ela é sintética ao contar: "fomos observar uma escola da periferia, ver como as crianças eram tratadas. Também fomos nas casas das crianças, conversamos com as mães". As pesquisadoras também contam sobre suas participações:

SANDRA: Tive várias inserções no campo. Além da sala de aula e do estudo de caso, fiz muitas entrevistas, com as mães, com a coordenadora pedagógica, com a diretora. E com a professora, para que ela contasse de cada criança. Maria Helena também fez entrevistas.

IANNI: Eu trabalhei em todas as fases. Ajudei na caracterização do bairro, fui conhecer o bairro, descrever as casas e ruas, pesquisar material na administração regional. Fiz entrevistas com as mães, acompanhei uma sala de aula, fiz dois estudos de caso. Por tudo isso, circulei muito pela vizinhança.

DENISE: Maria Helena fez o contato inicial e o grosso do campo fomos nós. Sandra e Ianni tinham feito o acompanhamento das salas em 1983. Em 1984, fizemos os estudos de caso. Em 1985, fiz uma recuperação da história do bairro, contato com a administração regional e a associação dos moradores. Fiz o primeiro rascunho da história da Ângela.

Sandra relembra que, tal como publicado no livro, a escola foi escolhida por ser considerada uma das melhores da região pela Secretaria da Educação:

A intenção era justamente conhecer o que estava sendo chamado de boa escola. E era uma escola que, na verdade, tinha muitas precariedades. Bairro de periferia, uma região muito pobre, não havia asfalto, era terra batida, muito simples, do ponto de vista de serviços, transporte e tal. Na escola, Maria Helena queria pesquisar duas salas de aula: as que eram vistas pela escola como a melhor e a com maior dificuldade. Ela me pediu para ficar com a sala dos ditos bons alunos. E Ianni foi para a sala dos alunos com dificuldade.

A orientação teórico-metodológica era que as observações rompessem o formato positivista, atado por crivos e cronômetro. Escreve Patto (2022, p. 37):

o conhecimento das vicissitudes da escolarização dos filhos de uma parcela das classes trabalhadoras que se comprime na periferia de um grande centro urbano-industrial não pode dispensar a análise da instituição escolar: olhos e ouvidos atentos à rede complexa de relações intersubjetivas que se dão entre os participantes diretos do processo escolar foram ferramenta de apreensão da vida na escola, enquanto parte integrante da vida na sociedade concreta que a inclui.

As pesquisadoras estiveram em sala de aula durante o ano letivo de 1983, quase diariamente, revelando grande envolvimento com a pesquisa. Sandra morava relativamente perto da escola, o que facilitava a ida de ônibus. Já Ianni morava "no oposto da cidade, era uma viagem para chegar lá". Sobre essa experiência, elas dizem:

IANNI: Como eu vinha de escola pública de periferia, não estranhei. Já sabia que existia sala dos "melhores" e dos "piores", não era uma realidade muito distante para mim. Mas com essa experiência pude ressignificar o vivido, ver a importância de muitas coisas que ficam na invisibilidade, enxergar como elas estão ligadas e se expressam em várias dimensões. Lembro que Maria Helena nos ajudava a perceber isso. Chamou minha atenção na pesquisa que a professora com mais característica de classe média estava com a melhor sala e a professora pobre, negra, na pior.

SANDRA: A gente começou a ir a campo no segundo ou terceiro dia de aula, se não me engano. Foi interessante que eu cheguei e a professora já mapeou para mim: "eu sei quem vai passar de ano, quem não vai". Eu ia praticamente todos os dias, durante todo o ano. Imagina isso! Você conhece todo mundo. Você se afeiçoa às crianças e elas se afeiçoam a você.

As observações em sala de aula contribuíram para compreender a complexidade envolvida na construção da vida diária escolar produtora de fracasso. A pesquisa também objetivava conhecer algumas crianças em suas especificidades e concretude. Definidas como "grandes ausentes" na pesquisa educacional, Patto (2022, p. 36) critica:

Nas publicações sobre evasão e repetência, as crianças são invariavelmente reduzidas a números frios e impessoais que acabam por insensibilizar a todos para o drama humano que esses números escondem, acostumando-nos à existência de um contingente crônico de repetentes e excluídos na rede pública de ensino fundamental. Inexiste, na pesquisa educacional brasileira, o discurso das crianças que frequentam esta rede, invariavelmente substituído por um discurso preconceituoso ou por pareceres "científicos" questionáveis sobre elas.

Do exercício de romper com essa forma dominante de pesquisar vêm as perguntas: "quem são essas crianças? Como vivem na escola e fora dela? Como vivem a escola e como participam do processo que resulta na impossibilidade de se escolarizarem?" (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/po...
, p. 37). Para respondê-las, Maria Helena pediu que a escola indicasse quatro crianças com histórico de fracasso para conhecê-las a fundo, chegando em Ângela, Augusto, Humberto e Nailton. Diz Sandra: "como se tratava de conhecer alunos com maior dificuldade, foi quase decorrência todas serem da sala dos chamados maus alunos".

Para conhecê-las, a pesquisa incluiu uma estratégia potente: visitas domiciliares. A experiência de conviver com crianças marcadas pela desigualdade em seu território de pertença era nova na Psicologia. O uso do verbo "conviver" não é cacoete. As pesquisadoras relatam terem frequentado as casas das crianças mais de uma vez por semana, durante três a quatro meses. Ianni, que desenvolveu os estudos de caso em relação a Nailton e Humberto, recorda:

Foi uma experiência de muito aprendizado! Maria Helena sempre trouxe a crítica à ciência positivista, a questão da relação de pesquisador e pesquisado. Não se tratava de ser observador. Interessava pensar o lugar e o sentido do que acontecia. Com o Nailton, eu ia na casa dele, a gente ia para a rua, brincava, e eu ia conhecendo como as coisas aconteciam. Com o Humberto foi um pouco mais difícil. Não tive acesso livre a ele, convivemos pouco. A mãe dele era simpática, sempre me recebeu bem, mas ela era muito fechada, não se identificava com as pessoas do bairro, eles viviam meio isolados em casa. E na escola, ele foi confinado em uma sala que lembra a estrutura dos manicômios. Triste.

Sandra também enfrentou desafios para ser aceita na casa de Augusto:

As visitas à casa do Augusto foram evidenciando uma relação muito difícil com a escola, que se refletia na família e na desconfiança em relação a mim. As recorrentes chamadas para que a mãe comparecesse à escola, as visitas da Ronda Escolar à sua casa marcaram sua vida muito cedo, indisponibilizando ele e a família a qualquer contato que tivesse vínculo com a escola. De forma ambígua, ao mesmo tempo em que Augusto tinha o afeto da professora, era vítima de humilhações reiteradas. Apelidado de Cascão, porque não tomava banho, ele foi submetido a um banho de esguicho pela professora na escola, na frente de outras crianças.

Na primeira vez que fui à casa dele, houve desconfiança. A mãe olhou pela fresta do portão e não me recebeu. Eu insisti e na segunda vez ela me recebeu. Augusto, logo que soube da minha presença, fugiu para o telhado e começou a jogar vidro lá de cima. Era época da Ronda Escolar, "vai saber se é a polícia" e eu falava: "Augusto, desce". Eu tinha levado materiais para as crianças, assim que ele viu os irmãos desenhando e pintando, as revistinhas, ele desceu e começamos a conversar. Aos poucos, ele encontrou em mim uma interlocutora, que fazia a ponte entre a vida na escola e em casa, tentando ressignificar o lugar dele. Tivemos momentos bonitos, em que ele manifestou o afeto pela professora, o desejo de continuar na escola, de contar a versão dele sobre os fatos e injustiças sofridas e as tentativas de fugir de estigmatizações. Assim, relatou que estava trabalhando, apesar da pouca idade, só oito anos, talvez para fazer frente aos comentários da mãe que, reproduzindo o discurso da escola, dizia que só teria jeito se ele fosse parar na FEBEM [Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor]. A convivência com eles revelou que a situação de Augusto era o resultado dramático de uma criança cuja escola não percebeu a relação ambígua que estabelecia com ele e sua família. O trabalho trouxe à tona uma relação marcada por preconceitos, desconhecimentos, mas também afetos pouco declarados e um pedido de ajuda. Infelizmente, não conseguimos dar continuidade a esse pedido. Transferido de escola, nós perdemos o contato.

Tal como Ianni na casa de Nailton, Denise encontrou portas abertas desde a primeira ida à casa de Ângela. Seu longo depoimento relata como foi a convivência não apenas com Ângela, mas sobretudo com a mãe dela:

A primeira vez que eu fui à casa da Ângela, estava todo mundo pronto. Eles já sabiam que viria alguém da escola e era eu. Chamou minha atenção que a família em nenhum momento cogitou a possibilidade de não me receber, de poder dizer "não quero você aqui". E é invasivo, né? Você entra na casa da pessoa e fica lá horas. Sempre fui absolutamente bem recebida.

O estudo de caso foi muito forte. O contato com essa família foi marcante. Pela minha origem, eu convivi com pobreza, não com miséria, era outro estrato. Fiquei muito afetada, nunca esqueci. As lições de vida que eu aprendi com essa família foram grandes.

Cícera, mãe da Ângela, era uma mulher muito especial. Em termos de faixa etária, eu não era muito mais nova do que ela, porque eu tinha 21 anos, Ângela tinha 9 para 10. E Cícera, se tinha 30, era muito. Havia um universo que nos separava, a diferença era brutal, e isso foi ficando… não era dito, mas era óbvio, e forte. Aquela pessoa muito próxima a mim, em termos de geração, mas com um destino completamente outro. Ela tinha clareza disso. Era analfabeta e sedenta por aprender a ler e escrever. Vivia falando que não saía de casa porque não conseguia ler os ônibus. Então, pela ignorância, ela ficava impossibilitada de circular na cidade. Morreu sem realizar esse desejo. Quando ela estava começando, o marido morreu. Cícera sofreu muitos maus tratos da vida. É uma história dramática. Ainda assim ela criava estratégias. O mundo entrava na casa dela pelo rádio e pela televisão. Vendeu tudo que tinha para comprar a casa. Como ela não sabia registrar, fazia cálculo mental. São muitas experiências.

A força do vínculo estabelecido entre as pesquisadoras e as crianças revela-se na pesquisa de mestrado de Amaral (2010)AMARAL, Daniele Kohmoto. Histórias de (re)provação escolar: vinte e cinco anos depois. 2010. 170 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., orientada por Denise, a qual volta às quatro histórias após duas décadas. Ângela e Nailton, que foram encontrados, lembravam em detalhes a experiência vivida na pesquisa quando crianças. Augusto não foi encontrado, e pelo histórico não surpreenderia ele ser mais um caso de violência letal, muitas vezes operada pela máquina do Estado. Ninguém no bairro lembrava da família de Humberto.

Queremos ressaltar a delicadeza com que a presença das crianças e das famílias é compreendida na pesquisa. Entre a aceitação e a "recusa" em participar, a resistência de alguns foi analisada à luz da história da família com a escola, com a qual as pesquisadoras eram identificadas. O receio de que o encontro seria para ouvir queixas comunica sobre o contorno dominante na relação escola-família. O convívio prolongado e sincero produziu movimento, a cisma cedeu ao desejo de conversa. Assim, foi possível ouvir depoimentos sensíveis sobre histórias difíceis que retratam a dura desigualdade que atinge as famílias há gerações. Escreve Patto sobre a convivência com as mães (2022, p. 439):

Em muitos casos, a desconfiança inicial dá lugar a uma fala fluente na qual o passado é trazido à tona e revivido com emoção. Para as que têm suas vidas marcadas por acontecimentos trágicos, por uma carga de trabalho que não deixa mais do que poucas horas de sono ou pela solidão, a oportunidade de falarem sobre si mesmas, de contarem suas histórias, de colocarem em palavras suas mágoas e esperanças e sobretudo de serem ouvidas é recebida como uma bênção.

Patto (2022) destaca que as mães foram ouvidas em contextos e locais distintos, produzindo diferentes qualidades de depoimento. As conversas informais no ambiente familiar são qualitativamente mais densas do que as entrevistas gravadas na escola. Conforme se amplia a confiança nas pesquisadoras, a tendência de reproduzir as versões oficiais sobre seus filhos (são preguiçosos, nervosos ou não têm boa cabeça para o estudo) vai sendo substituída por contradições recheadas de detalhes vivos e complexos.

A pesquisa também se valeu de entrevistas gravadas, realizadas por todas as pesquisadoras. Denise ressalta o impacto de ouvir a professora de Ângela no segundo ano da pesquisa:

No final de 1984, entrevistei a professora da Ângela, só aí a conheci. Essa experiência me marcou muito. Diferente daquela representação homogênea, ela me mostrou o quanto eu desconhecia sobre o universo das professoras. A gente viveu uma época que culpava as professoras, não via direito o que estava acontecendo, então, às vezes, sentia raiva. O efeito ideológico correndo solto… E, diferente da professora de 1983, eu vi uma pessoa solidária e sensível às necessidades das crianças. Ela me contou que, como era nova na escola, teve que pegar a turma dos repetentes. Nos primeiros dias, quiseram contar quem eram os alunos, aí ela: "obrigada, mas não quero saber, quero conhecê-los por mim mesma". Isso foi essencial! No final do ano, quase todos foram aprovados, depois de anos repetindo. Essa professora conseguiu vê-los de outra forma e rompeu aquele círculo vicioso. Acho que com ela me tornei mais sensível às necessidades e contradições no trabalho docente. Ela foi uma das primeiras professoras que me mostrou que esse grupo é heterogêneo e precisa ser descrito de forma cuidadosa.

Em um trabalho de campo intenso e intensivo, assumiram relevância tanto o convívio com as pessoas como a forma de registro do que estavam vivendo. Sandra fala que "teve gravação, mas o diário de campo era nosso instrumento por excelência. A gente registrava tudo no caderno". Patto escreve pouco sobre tal dispositivo no livro, afirmando que, "através da reflexão sobre os registros dos diários de campo, se recolocava permanentemente a tarefa de apreender o significado do observado" (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/po...
, p. 256). Nas entrevistas, as pesquisadoras lembraram de seus diários:

SANDRA: Essa experiência marcou muito, acho que a gente está perdendo isso de ir registrando o que aparece, situações concretas que vão acontecendo ali. O que a professora pôs na lousa, a cara das crianças… A gravação é limitada, a performance escapa, como diz Bourdieu. Então, o diário de campo permitia registrar tudo aquilo que é da ordem do imponderável. Nossos diários foram preciosos. Fazia o desenho da sala, onde estava cada criança, saiu de lá para cá, esse movimento.

IANNI: Dava um medinho, achava que meu diário não ia servir, imaginava que tinha de ter mais coisa, "é isso mesmo?". Mas é isso, o conflito e a robustez. Anotava tudo o que acontecia, escrevia o que observava e as coisas que me vinham, que me tocavam, deu um diário de campo precioso… Maria Helena devolveu um. Um caderninho espiral, a minha letra bonitinha, nem reconheço mais…

DENISE: Qual era a orientação? Você vai conhecer a família, a criança, conversar com eles, tentar entender as razões dela ir mal na escola, o que ela faz, no que ela se envolve, o que ela gosta, do que ela quer conversar. E registra. Então, eu fazia isso: prestava atenção em tudo, voltava para casa e escrevia, escrevia, escrevia. Fazia uma narrativa do que tinha vivido, do que as pessoas tinham me falado, tentando ser o mais fiel possível ao que aconteceu.

O trabalho de campo foi marcado pelo cuidado nas relações estabelecidas com as pessoas participantes e no registro dos acontecimentos. Patto ressalta, desde o início do livro, o desafio de interpretar o vivido mirando a complexidade envolvida na produção do fracasso escolar.

O DESAFIO DE COMPREENDER O QUE SE VÊ

A análise da pesquisa de campo buscou fugir de reduções estatísticas ou da verificação de categorias predeterminadas. Segundo escreve no livro, as respostas

foram sendo paulatinamente construídas a partir da convivência com a vida diária de uma escola e de quatro famílias de quatro crianças multirrepetentes tomadas como campos de observação a serem indagados sem qualquer esquema rígido de investigação, o que não significa que se tenha feito um trabalho marcado pela casualidade. Uma prolongada permanência no campo visou à construção progressiva de uma interpretação razoavelmente integrada da realidade em questão. (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/po...
, p. 255)

Exercendo a autocrítica, no final da Introdução, Patto (2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/po...
, p. 40) afirma que tal pesquisa "é um retrato sem retoque de nossa condição inevitavelmente lacunar como trabalhadores intelectuais datados". A autocrítica segue no capítulo metodológico (p. 254-255):

Quando começamos a frequentar uma escola pública de primeiro grau situada num bairro periférico da cidade de São Paulo, tendo em vista contribuir para a elucidação do fenômeno do fracasso escolar, tão frequente nesse tipo de escola, levávamos como bagagem teórica uma visão geral materialista histórica das sociedades industriais capitalistas ainda bastante impregnada de sua versão althusseriana. É certo que possuíamos também o desejo de examinar a vida na escola a partir das possibilidades oferecidas pela sociologia da vida cotidiana com a qual tínhamos entrado em contato pouco antes. No entanto, não havíamos nos apropriado ainda de detalhes dessa teoria, o que foi acontecendo no decorrer da pesquisa de campo. O contato com a realidade complexa e muitas vezes indecifrável da unidade escolar evidenciou que a constituição do quadro de referência teórico não é tão simples e não se dá num momento totalmente acabado e anterior à pesquisa propriamente dita. A realidade pesquisada muitas vezes solicitou um adensamento teórico e a procura de outros autores, se quiséssemos significar ou ressignificar situações com que nos defrontamos.

Sandra sintetiza: "A construção de nosso olhar crítico foi um processo que veio pela convivência no campo, pela conversa com a Maria Helena e pela leitura de textos". Ela reflete sobre o que estava em jogo:

Dizer que o que se passava ali era simples preconceito da professora ou autoritarismo na relação com as crianças era a primeira camada do real, que encobria uma dinâmica bastante complexa. A gente foi apurando nosso olhar, no sentido de ver o que é opaco. Tratava-se de entender os processos de produção da "melhor" e da "pior" sala. A reconstrução desse processo só foi possível porque a gente estava lá todos os dias, buscando entender o que via. Foi ficando evidente, também para elas, que, seja dos "maus", seja dos "bons" alunos, a realidade das professoras não era distante, as dificuldades eram comuns. Porque a professora da melhor sala era, também, vítima de um projeto. Ela vinha de fora da escola e tinha sido convidada para construir a melhor sala. Eu costumava brincar com a Maria Helena: ela tem uma espada apontada na cabeça, ter que construir a melhor sala, com as ferramentas que tiver, puder e alcançar. A professora repetia o mesmo ditado inúmeras vezes, porque isso garantia a boa nota das crianças e assegurava o lugar de boa professora. Ela sofria em relação a isso.

A interlocução entre os registros da pesquisa de campo e a teoria resulta de um trabalho complexo e desafiador. A intenção era não perder de vista que, em territórios complexos, qualquer tentativa de enquadramento em um padrão ou perfil estático embaça as nuances e as forças em confronto. Citando novamente o livro (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/po...
, p. 294):

A concepção segundo a qual a administração burocrática de uma estrutura hierárquica de poder resulta numa cadeia estática e perfeita de vínculos de submissão ganha força a partir do que se registra num primeiro momento de contato com a instituição. Uma convivência mais longa permite, no entanto, captar as contradições e identificar insatisfações e tensões que, quase nunca explicitadas e muito menos resolvidas, permanentemente latejam no corpo da escola. Ouvir essa pulsação requer tempo e ouvidos atentos. A visão dominante de mundo, a estrutura de poder e a burocracia encarregam-se de abafá-la, superpondo ao protesto — sempre presente, mas sem tempo nem força para ser claramente formulado — uma versão mais aceitável sobre a vida na escola, porque mais compatível com a ordem instituída.

Nessa construção, pouco interessam olhares estanques, sendo a busca justamente pelo movimento em que se apresentem possibilidades de ruptura.

A análise mais acurada do material construído na pesquisa e a redação final do texto ficou a cargo de Patto, que absorveu as trocas com as pesquisadoras e os registros de campo. A participação das auxiliares nessa etapa, embora menos sistemática, foi marcante. Sandra ressalta ter aprendido a "evidenciar processos que tinha identificado e interpretar, olhar de novo, entender". Na perspectiva de pensar, e não aplicar conceitos, Sandra pontua:

Em Bleger e Pichon-Rivière, há uma leitura psicanalítica misturada com uma leitura social muito refinada, em que se fala de adoecimento psíquico. Tudo bem, podíamos dizer "a mãe do Augusto é depressiva", mas não daria para reduzir a uma questão clínica. Eram vidas marcadas por situações limite.

O exercício de compreender as situações vividas em campo revela-se em capítulos detalhados. Do mais geral ao mais específico, Patto (2022) inicia com uma síntese quantitativa e organizacional da rede municipal de ensino de São Paulo, para então situar a escola participante nesse conjunto. Feito isso, há a caracterização do bairro e da escola, para então partilhar situações vividas em vários contextos da pesquisa: a perspectiva da equipe escolar, o mundo da sala de aula, a fala das mães e as histórias das quatro crianças.

O último capítulo é organizado em quatro tópicos cujos títulos sintetizam a pesquisa (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
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): "1. As explicações do fracasso escolar baseadas nas teorias do déficit e da diferença cultural precisam ser revistas a partir do conhecimento dos mecanismos escolares produtores de dificuldades de aprendizagem" (p. 540); "2. O fracasso da escola pública elementar é o resultado inevitável de um sistema educacional congenitamente gerador de obstáculos à realização de seus objetivos" (p. 545); "3. O fracasso da escola elementar é administrado por um discurso científico que, escudado em sua competência, naturaliza esse fracasso aos olhos de todos os envolvidos no processo" (p. 549); e "4. A convivência de mecanismos de neutralização dos conflitos com manifestações de insatisfação e rebeldia faz da escola um lugar propício à passagem ao compromisso humano-genérico" (p. 553).

A última anotação dá sentido ao subtítulo do livro: histórias de submissão e rebeldia. Implicada com a dialética, uma importante contribuição trazida em tal obra é a atenção não apenas aos movimentos de adesão, mas às rupturas. No livro, a denúncia de teorias e práticas da Psicologia e da Educação que se somam com a opressão ladeia o anúncio de sua superação. É assim que Patto repara:

A rebeldia pulsa no corpo da escola e a contradição é uma constante nos discursos de todos os envolvidos no processo educativo; mais que isto, sob uma aparente impessoalidade, pode-se captar a ação constante da subjetividade. A burocracia não tem o poder de eliminar o sujeito; pode, no máximo, amordaçá-lo. Palco simultâneo da subordinação e da insubordinação, da voz silenciada pelas mensagens ideológicas e da voz consciente das arbitrariedades e injustiças, lugar de antagonismo, enfim, a escola existe como lugar de contradições, que longe de serem disfunções indesejáveis das relações humanas numa sociedade patrimonialista, são a matéria-prima da transformação possível do estado de coisas vigente. (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
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, p. 554)

Para alimentar tal transformação, Patto aposta no trabalho grupal, desde que não vise a "tentar ‘polir arestas’ e melhorar o funcionamento de uma instituição através de técnicas de ‘relações humanas’ conciliadoras", senão o contrário: tal trabalho "deve criar condições para que a revolta e a insatisfação latentes sejam nomeadas, compreendidas em sua dimensão histórica e, dessa forma, possam redimensionar as relações de força aí existentes" (Patto, 2022aPATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932. Acesso em: 09 dez. 2022.
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, p. 559). Aí reside outra força do livro: ele valoriza a contestação, contrapondo-se ao ajustamento objetivado pela Psicologia e pela Educação hegemônicas, que tendem a aprisionar o mal-estar como problema individual a ser controlado, desconsiderando seu caráter político. Como Maria Helena brincou em nosso encontro: "da submissão a gente fala mal, da rebeldia a gente gosta".

A PESQUISA E A VIDA

No artigo, apresentamos elementos da construção da pesquisa de campo que deu base ao livro A produção do fracasso escolar e que não haviam sido publicados. Por meio das entrevistas, foi possível aprofundar questões relativas ao preparo teórico-metodológico: a construção e rotina da pesquisa, as formas de registro e o processo de análise do material. Tais reflexões contribuem para compreender as exigências em estudos sobre as relações e práticas cotidianas que se produzem no chão escolar. O detalhamento da construção em seu miúdo revelou a necessidade de intensa presença das pesquisadoras quando se trata de produzir aliança e pensamentos comuns que reparem na vida que pulsa, luta e insiste em acontecer. Isso exigiu tempo, conversa e registro em uma pesquisa que grita por rebeldia.

***

Iniciamos este artigo afirmando o impacto de A produção do fracasso escolar nas áreas da Educação e da Psicologia. Terminaremos com as pesquisadoras narrando algumas reverberações, incluindo os efeitos em suas vidas profissionais.

Sandra, Ianni e Denise disseram que, desde a época da pesquisa, já dimensionavam os impactos que ela traria. Denise ressalta que o livro foi muito esperado e logo se tornou um marco. Sandra e Ianni concordam:

SANDRA: Você pergunta se a gente tinha dimensão dos impactos da pesquisa. Tínhamos. Pelo seguinte: ninguém havia feito isso antes, dessa maneira. Ninguém tinha mergulhado em uma escola e convivido durante três anos. A ida dela para a FCC já indicava que se tratava de algo muito novo, era evidente. Ela gozava de uma respeitabilidade incrível, tendo em vista a erudição, a circulação por campos de conhecimento que vieram de fato ampliar a visão para além dessa Psicologia restrita, permitiu a leitura de uma realidade cuja complexidade exige ferramentas intelectuais e uma crítica refinada. É preciso conhecer a história da educação no Brasil, os interesses políticos, os compromissos, a história do Brasil, a história da produção das periferias, da escola nas periferias, da escola pública brasileira, para entender esses processos.

IANNI: Se a gente tinha dimensão do que poderia ser? Sinceramente, eu tinha. Eu acreditava realmente que o que fazíamos com orientação da Maria Helena era muito importante. Tinham outras pesquisas relevantes acontecendo, mas eu achava muito inovador o modo dela pesquisar, a possibilidade de conhecer o bairro, o que ocorria nas salas de aula, na vida das famílias, numa convivência enriquecedora para todos nós. Por tudo isso, pela dimensão do trabalho, eu acreditava que ele ia voltar para a vida das pessoas.

De fato, A produção do fracasso escolar tornou-se livro consagrado, sendo muito referenciado. Citado, mas não necessariamente lido, Sandra e Denise entendem que ele nem sempre foi compreendido em sua complexidade:

SANDRA: Às vezes eu tenho a impressão de que há uma incompreensão do trabalho dela. Essa coisa perversa do momento contemporâneo, de tornar obsoleto aquilo que a gente ainda nem entendeu bem, não tem clareza de alguns ângulos. Infelizmente, tem uma leitura muito fácil do trabalho da Maria Helena, como se a intenção fosse mostrar a baixa qualidade da escola pública e a precariedade da formação docente.

DENISE: Eu acho que tem uma incompreensão desse livro, uma compreensão parcial. Ele é pouco lido de verdade, o livro como um todo. As pessoas conhecem, leem partes, mas quem estudou o livro? As pessoas falam mais da pesquisa, e certa leitura que se tem dela, dos estudos de caso, uma divulgação mais rasa, com conclusões superficiais. E põem na boca da Maria Helena palavras que não são dela. Se atribui a ela uma culpabilização da escola e das professoras que ela não faz.

As pesquisadoras reiteraram a importância dessa pesquisa em suas vidas. Sandra acentua que a experiência foi fundamental em sua formação. O convívio com Maria Helena estendeu-se para outras pesquisas, incluindo a orientação de mestrado e doutorado. Decisiva em sua formação, como ela diz, "não poderia deixar de trazer a Maria Helena nos meus cursos". Denise também fala:

Essa pesquisa me marcou demais. As repercussões foram definidoras da minha trajetória como pesquisadora da escola. Sem dúvida, este encontro com a Maria Helena não foi um encontro qualquer, foi "o" encontro na minha formação, um divisor de águas. Ao olhar pelo retrovisor, não tenho dúvidas de que tudo começou ali.

Sandra e Denise seguiram na área educacional, formando professores. Ianni não se desligou de Maria Helena, mas seus caminhos seguiram pelo campo da saúde/saúde mental e das políticas públicas:

Pouco depois de formada, fiz residência em Saúde Coletiva no Departamento de Medicina Preventiva. Tudo o que eu aprendi com Maria Helena foi junto. Esteve presente nessa formação e depois como psicóloga na Unidade Básica de Saúde (UBS). Eu já tinha estudado com ela os antipsiquiatras e referências críticas que estão na base do movimento antimanicomial.

Na residência comecei a ler as queixas ou sintomas das crianças contextualizados também no que se produz na escola. Na UBS, grande parte da demanda era de crianças em idade escolar. Comecei a fazer contato com a escola para saber mais sobre elas. Geralmente pediam testes para definir se elas necessitavam de classe especial, como foi o caso do Humberto. Comecei a indagar sobre o que levava as crianças aos ambulatórios de saúde mental ou às clínicas infantis, como aquela para a qual foi conduzido Nailton. Esse olhar, naquele momento em que se organizava o movimento de luta antimanicomial, foi precioso e trouxe possibilidades para identificar as demandas em uma perspectiva que não era mais vista como específica da saúde ou da educação. Percebia também que as classes especiais eram emblemáticas do que são os hospícios. Posteriormente constatei que muitas pessoas internadas por dezenas de anos em hospitais psiquiátricos referiam problemas ou dificuldades com a escola ligados ao que as levaram à internação.

Quando Luiza Erundina se tornou prefeita de São Paulo, possibilitou ações e políticas de saúde mental que desmontaram algumas dessas estruturas, como clínicas para onde eram encaminhadas crianças como Nailton e Humberto. Nessa implantação, tiveram grandes seminários de saúde mental, eu falava: "tem que chamar a Maria Helena, ela é antimanicomial". Ela foi, era 1989, quando começou a construção da rede substitutiva de saúde mental.

Ianni explica que A produção do fracasso escolar se espraiou em outras áreas do conhecimento, intensificando sua força. Passados 40 anos do trabalho de campo, a pesquisa que deu base ao livro segue atual, e seus ensinamentos continuam reverberando. Este artigo e o acesso gratuito ao livro de Patto fazem parte dessas reverberações.

  • 1
    Sua obra está reunida no Ambiente Virtual Maria Helena Souza Patto: www.mariahelenasouzapatto.site.
  • 2
    Neste artigo, não abordamos tal pesquisa, pois ela segue outro caminho metodológico — ali, são aplicados questionários em psicólogas que atuam na rede pública de educação. De toda forma, recomendamos sua leitura, por ser o primeiro marco intelectual crítico da autora e por sua atualidade.
  • 3
    Todas são mulheres cisgênero brancas.
  • 4
    Entre 1983 e 1989, Maria Helena Souza Patto foi pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC).
  • 5
    Vários foram os assassinatos e desaparecimentos políticos de universitários à época. Destacamos três estudantes da USP brutalmente assassinados: Iara Iavelberg e Aurora Furtado, estudantes de Psicologia; e Alexandre Vannucchi Leme, estudante de Geologia. Para conhecer essas e outras histórias, acessar: https://memoriasdaditadura.org.br/.
  • Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

REFERÊNCIAS

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  • AMARAL, Daniele Kohmoto. Histórias de (re)provação escolar: vinte e cinco anos depois. 2010. 170 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
  • BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
  • BOURDIEU, Pierr. A economia das trocas simbólicas São Paulo: Perspectiva, 1974.
  • CARVALHO, José Sérgio F. de. A produção do fracasso escolar: a trajetória de um clássico. Psicologia USP, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 569-578, set. 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642011005000023 Acesso em: 09 dez. 2022.
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  • OLIVEIRA, Richard de; MACHADO, Adriana Marcondes. Entrevista como Experiência, Loucura como Método: Composição de uma Ética do Encontro. Estudos e Pesquisas em Psicologia, [S. l.], v. 21, n. 2, p. 416-436, 2021. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revispsi/article/view/61049 Acesso em: 20 maio 2024.
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  • PATTO, Maria Helena Souza. Privação cultural e educação primária Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1973.
  • PATTO, Maria Helena Souza (Org.). Introdução à Psicologia Escolar São Paulo: T. A. Queiroz, 1981.
  • PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022a. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/932 Acesso em: 09 dez. 2022.
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  • PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2022b. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/924 Acesso em: 21 maio 2024.
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  • SOUZA, Denise Trento Rebello de; AMARAL, Daniele Kohmoto. Quatro histórias de (re)provação escolar – Notas sobre o rumo das vidas de Ângela, Nailton, Augusto e Humberto. In: PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2022. p. 618-644.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2023
  • Aceito
    15 Jun 2023
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