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Duas faces da mesma moeda: um estudo de caso comparado das percepções discentes de duas universidades públicas (Portugal e Brasil) sobre a avaliação da qualidade do ensino superior

Two sides of the same coin: a comparative case study of students’ perceptions in two public universities (Portugal and Brazil) about higher education quality assessment

Dos caras de la misma moneda: un estudio de caso comparado de las percepciones de estudiantes de dos universidades públicas (Portugal y Brasil), sobre la evaluación de la calidad de la educación superior

RESUMO

A percepção dos estudantes sobre a avaliação da qualidade do ensino superior e dos aspectos envolvidos nesse processo é uma lacuna evidente na literatura. Por meio de um estudo comparado, analisamos a percepção discente de duas universidades públicas, uma de Portugal e uma do Brasil, sobre essas práticas avaliativas. Participaram do estudo 300 universitários (50% de Portugal; 50% do Brasil). Os resultados revelam que os estudantes de ambos os contextos conhecem os indicadores de qualidade avaliados e as instituições responsáveis pelo processo avaliativo em seus países (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior — A3ES em Portugal; Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior/ Ministério de Educação e Cultura — SINAES/MEC no Brasil). Por outro lado, 89,3% dos estudantes de Portugal e 86,7% dos estudantes do Brasil reportam que não possuem conhecimento sobre tal processo. Ademais, parte considerável dos participantes (75,3% portugueses, 59,3% brasileiros) reportam não haver participado desse processo, demonstrando as duas faces de uma mesma moeda. Discutem-se os resultados e algumas considerações são fornecidas.

Palavras-chave:
Percepções Discentes; Avaliação da Qualidade; Ensino Superior; Estudo de Caso Comparado

ABSTRACT

Students’ perceptions of quality assessment in higher education and aspects of the process are a glaring gap in the literature. Through a comparative study, we analysed the perception of students from two public universities, one in Portugal and one in Brazil, on these evaluative practices. The study involved 300 university students (50% from Portugal; 50% from Brazil). The results reveal that the students from both contexts know the evaluated quality indicators and the institutions responsible for the evaluation process in their countries (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior — A3ES in Portugal; Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior/ Ministério de Educação e Cultura — SINAES/MEC in Brazil). On the other hand, 89.3% of the students from Portugal and 86.7% of the students from Brazil report that they have no knowledge about this process. Moreover, a considerable part of the participants (75.3% Portuguese, 59.3% Brazilians) report not having participated in this process, showing the two sides of the same coin. The results are discussed, and some considerations are presented.

Keywords:
Student Perceptions; Quality Assessment; Higher Education; Comparative Case Study

RESUMEN

La percepción de los estudiantes sobre la evaluación de calidad de la enseñanza superior y los aspectos del proceso es una laguna evidente en la literatura. Mediante un estudio comparativo, analizamos la percepción de estudiantes de dos universidades públicas, una de Portugal y otra de Brasil, sobre estas prácticas evaluativas. Participaron del estudio 300 universitarios (50% de Portugal; 50% de Brasil). Los resultados revelan que los estudiantes de ambos contextos conocen los indicadores de calidad evaluados y las instituciones responsables del proceso de evaluación en sus países (A3ES en Portugal; SINAES/MEC en Brasil). Por otra parte, el 89,3% de los estudiantes de Portugal y el 86,7% de los estudiantes de Brasil reportan que no tienen conocimientos sobre dicho proceso. Además, parte considerable de los participantes (75,3% portugueses; 59,3% brasileños) reportan no haber participado en este proceso, revelando las dos caras de la misma moneda. Se discuten los resultados y se brindan algunas consideraciones.

Palabras clave:
Percepciones de los Estudiantes; Evaluación de la Calidad; Enseñanza Superior; Estudio de Caso Comparado

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Os sistemas brasileiro e português de educação superior, como em todos os demais países, sofreram grandes alterações nas últimas décadas diante de uma crescente massificação, privatização e diversificação no tocante aos seus objetivos, bem como outros aspectos, para atender às demandas específicas da globalização. "Ainda que até aos anos [19]80, as universidades públicas tenham dominado o sistema de ensino superior, nos anos 90 o setor privado da educação superior detinha já percentagens significativas de alunos" (Sarrico et al., 201326 SARRICO, Cláudia Sofia; ROSA, Maria João; TEIXEIRA, Pedro Nuno; MACHADO, Isabel; BISCAIA, Ricardo. A eficiência formativa e a empregabilidade no ensino superior. Lisboa: Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, 2013., p. 01). Esse movimento veio como resposta à educação superior que, por sua vez, passou a ser vista como forma de acesso a empregos com boa remuneração e prestígio.

Nesse contexto de mudança, em todo o mundo, os sistemas educativos de educação superior voltaram sua preocupação à qualidade do ensino, considerando as crescentes taxas de reprovação e de abandono e objetivando, desse modo, replantear a dita realidade. Essa tendência, na Europa, foi acompanhada pela homogeneização dos sistemas de educação superior, tendo como marco a Declaração de Bolonha (União Europeia, 199933 UNIÃO EUROPEIA. Declaração de Bolonha. Bolonha: União Europeia, 1999. Disponível em: http://www.fam.ulusiada.pt/downloads/bolonha/Docs02_DeclaracaoBolonha.pdf. Acesso em: 25 mai. 2020.
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), que determinou a construção do Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES). Tal declaração possui objetivos bem definidos pautados na promoção da internacionalização das Instituições de Ensino Superior (IES), no fomento da mobilidade docente e discente e, por consequência, como incentivo da empregabilidade e do desenvolvimento econômico, social e humano. Com a concretização dos objetivos acima elencados, surge a promoção de propostas curriculares com referenciais delimitados sobre os critérios de organização aos diferentes níveis de regulação política, com competências gerais e comuns a todos os países da União Europeia (Pacheco e Vieira, 200623 PACHECO, José Augusto; VIEIRA, Ana Paula. Europeização do currículo: para uma análise das políticas educativas e curriculares. In: MOREIRA, António; PACHECO, José Augusto (orgs.). Globalização e educação: desafios para políticas e práticas. Porto: Porto Editora, 2006. p. 87-126.; Lira, Gonçalves e Marques, 201519 LIRA, Miguel; GONÇALVES, Miguel; MARQUES, Maria da Conceição da Costa. Instituições de ensino superior públicas em Portugal: sua administração sob as premissas da new public management e da crise econômica global. Revista Brasileira de Educação, v. 20, n. 60, p. 99-119, 2015. https://doi.org/10.1590/S1413-24782015206006
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), incluindo Portugal.

Especificamente no Brasil, a situação não foi diferente tendo em vista a mesma preocupação previamente citada. Ou seja, o Ministério de Educação e Cultura (MEC) tornou público o edital da Secretaria de Educação Superior — SESu/MEC n° 4/97 (Brasil, 1997a8 BRASIL. Edital SESu/MEC n° 4/97. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto; Secretaria de Educação Superior, 1997a.), convocando as IES a apresentarem propostas que atendessem às novas Diretrizes Curriculares dos cursos superiores. Tais propostas seriam elaboradas pelas Comissões de Especialistas da SESu/MEC com a colaboração das sociedades científicas, das ordens e associações profissionais, das associações de classe, do setor produtivo e outros setores envolvidos. Conforme se explica no respectivo edital, as Diretrizes Curriculares, de caráter exclusivamente vigente no território brasileiro, apresentam o objetivo de servir de referência às IES para a organização de seus programas nas diferentes áreas do conhecimento, com base na formação e habilitação de cada área específica, assim como nos objetivos e demandas da sociedade. Nesse sentido, segundo o Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior (CNE/CES) (Brasil, 1997b9 BRASIL. Parecer CNE/CES n° 776/97. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto; Conselho Nacional de Educação, 1997b.), as diretrizes curriculares constituem orientações para a elaboração dos currículos que devem ser, necessariamente, respeitados por todas as IES.

Diante dessas questões de partida, a avaliação da qualidade da educação superior ganha força com a implementação de mecanismos de controle visando à efetivação de sua prática (Felix, 201817 FELIX, Glades Tereza. Regulation and quality assurance in higher education: a category of historical analysis. Revista da Avaliação da Educação Superior, v. 23, n. 3, p. 776-794, 2018. https://doi.org/10.1590/S1414-40772018000300012
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), sendo institucionalizados órgãos de regulação da educação superior em Portugal e no Brasil para garantir e assegurar a sua respectiva qualidade. Esses órgãos avaliadores do sistema educativo superior têm buscado o desenvolvimento da qualidade do ensino por meio de iniciativas que avaliam o desempenho das IES, dos cursos de graduação e de pós-graduação stricto sensu, bem como dos docentes e discentes.

Em Portugal, a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) é uma fundação de direito privado, constituída por tempo indeterminado, dotada de personalidade jurídica, reconhecida como de utilidade pública e instituída pelo decreto-lei n. 369/2007 (Portugal, 200725 PORTUGAL. Decreto-lei n° 369, de 05 de novembro de 2007. Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Lisboa: Diário da República n.° 212/2007, Série I de 2007-11-05. Disponível em: <https://dre.pt/application/conteudo/629433. Acesso em: 20 nov. 2019.
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). A meta da A3ES centraliza-se na avaliação da qualidade da educação superior no que se refere às instituições, aos cursos e ao desempenho docente e discente. Ou seja, um processo de avaliação que leva em consideração aspectos como ensino, pesquisa, extensão, responsabilidade social, gestão da instituição, corpo docente, entre outros. Nesse contexto, a responsabilidade pela qualidade era de cada IES, que organizava seus procedimentos para promover e garantir a qualidade do ensino. Há poucos anos, o presidente da A3ES Alberto Amaral (Guerra, 202018 GUERRA, Maria das Graças Gonçalves Vieira. Avaliação da educação superior em Portugal: entrevista com Alberto Amaral. Revista Brasileira de Educação, v. 25, p. e250023, 2020. https://doi.org/10.1590/S1413-24782020250023
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, p. 03), que esteve no respectivo cargo de 2008 até dezembro de 2020, comentou em entrevista que, com o passar do tempo:

(…) foram adotados referenciais para os sistemas de garantia da qualidade, de forma a proporcionar orientações para auxiliar as instituições. Subjacente a esses referenciais, foi também desenvolvido um modelo de auditoria dos sistemas internos de garantia da qualidade [SIGQ] com vista à sua certificação.

No Brasil, precisamente em julho de 1993, a Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação e do Desporto criou a Comissão Nacional de Avaliação das Universidades Brasileiras, dando os primeiros passos na condução política do processo de avaliação institucional.

A avaliação institucional das Universidades é um tema em discussão no Brasil, há alguns anos. Reconhecida como uma necessidade por todos os setores envolvidos com a vida universitária (dirigentes, docentes, discentes, sindicatos e governo), encontrava, entretanto, uma grande resistência por parte das Instituições de Ensino Superior. No plano do discurso, a avaliação era uma questão consensual. Não obstante, a sua operacionalização esbarrava nos temores da comunidade universitária de que este processo pudesse ser utilizado pelo Governo para desencadear mecanismos de premiação ou punição, com implicações na alocação dos recursos financeiros. Isto se aplica, principalmente, às Universidades Federais. Cabe destacar que este não é o único fator de resistência à avaliação. Mas sem nenhuma dúvida, tanto na esfera do discurso como da prática, este era o argumento substantivo e capaz de mobilizar vários setores, evitando que o processo fosse implementado. Embora iniciativas isoladas já estivessem em curso, era fundamental tornar a avaliação um processo nacional e irreversível. (Brasil, 19946 BRASIL. Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras (PAIUB). Brasília: SESu/MEC, 1994., p. 5)

Já em dezembro de 1993, o Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras (PAIUB) foi instituído pelo MEC e estabelecia, especificamente, três fases consideradas como centrais para o processo de avaliação a ser desenvolvido por cada IES, nomeadamente, a avaliação interna, a avaliação externa e a reavaliação. Além disso, o PAIBU possuía um conjunto de princípios básicos como globalidade, comparabilidade, respeito à identidade institucional, não premiação ou punição, adesão voluntária, bem como legitimidade e continuidade. No entanto, o PAIUB ficou vigente até 1995, quando a lei n. 9.131/95 (Brasil, 1995) instituiu o Exame Nacional de Cursos (ENC), o qual até 2002 foi o principal instrumento de avaliação da educação superior no Brasil.

Em 2003, o Ministério da Educação nomeou uma comissão de especialistas em avaliação para propor um novo modelo de avaliação da educação superior, o que resultou, em 2004, na implantação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES). Este foi criado pelo MEC por meio da lei n. 10.861, de 14 de abril de 2004 (Brasil, 20047 BRASIL. Lei n° 9.131, de 24 de novembro de 1995. Altera dispositivos da Lei n° 4.024, de 20 de dezembro de 1961, e dá outras providências. Brasília: Diário da União, 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9131.htm. Acesso em: 05 ago. 2021.
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), e teve em conta, tal como o sistema português de garantia da qualidade da educação superior, os seguintes aspectos: o ensino, a pesquisa, a extensão, a responsabilidade social, a gestão da instituição e o corpo docente, entre outros aspetos, na avaliação das instituições e dos cursos.

Conforme argumenta Verhine (2010)34 VERHINE, Robert Evan. O novo alfabeto do SINAES: reflexões sobre o IDD, CPC e IGC. In: DALBEN, Ângela; DINIZ, Júlio; LEAL, Leiva; SANTOS, Lucíola. Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 632-650., torna-se absolutamente necessário um sistema de avaliação na Educação Superior. Entretanto, pelo fato de ser tão abrangente e complexo, por vezes, os seus procedimentos "(…) interrompem a construção desse processo participativo e promovem o retorno a posturas, axiomas e enfoques próprios do paradigma técnico-burocrático" (Dias Sobrinho, 200815 DIAS SOBRINHO, José. Avaliação da Educação Superior: avanços e riscos. São Paulo: EccoS – Revista Científica, v. 10, p. 67-94, 2008. https://doi.org/10.5585/eccos.v10i0.1353
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, p. 820).

Nesse contexto, os Sistemas de Avaliação da Qualidade da Educação Superior, em todos os países, entre os quais Portugal e Brasil, devem se preocupar não só com o que a sociedade valoriza nas competências e habilidades dos graduados. Sua preocupação também deve estar centralizada em como os discentes se sentem quanto a suas experiências enquanto universitários, "(…) uma vez que as instituições de ensino possuem por responsabilidade a formação integral do ser humano, sem descuidar de sua formação profissional" (Marinho e Poffo, 201620 MARINHO, Sidnei Vieira; POFFO, Gabriella Depiné. Diagnóstico da qualidade em uma IES: a percepção da comunidade acadêmica. Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior, v. 21, n. 2, p. 455-477, 2016. https://doi.org/10.1590/S1414-40772016000200008
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, p. 456).

Apesar do que é proposto por Marinho e Poffo (2016)20 MARINHO, Sidnei Vieira; POFFO, Gabriella Depiné. Diagnóstico da qualidade em uma IES: a percepção da comunidade acadêmica. Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior, v. 21, n. 2, p. 455-477, 2016. https://doi.org/10.1590/S1414-40772016000200008
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, pelo que se verifica na realidade, sabemos que as experiências dos estudantes são colocadas, muitas vezes, em segundo plano nos processos da avaliação interna, seja dito processo realizado pelas próprias IES, como também na ordem de importância da avaliação externa, realizada pelas comissões de avaliadores da A3ES (Portugal) e do MEC (Brasil). Ou seja, em ambos os contextos, o sistema de avaliação focaliza-se nos processos de gestão nas instituições, como alternativa às áreas tradicionais de padrões acadêmicos, credenciamento e desempenho dos indicadores de qualidade de ensino, pesquisa e extensão. Entretanto, a voz dos discentes, atores principais de todo processo, continua tendo pouca relevância.

Por outra parte, sabe-se que as IES prestam contas da utilização dos recursos que recebem de instituições governamentais de fomento ao desenvolvimento científico, como também dos resultados alcançados. Como bem apontam Amaral e Magalhães (20002 AMARAL, Alberto; MAGALHÃES, António. O conceito de stakeholder e o novo paradigma do ensino superior. Revista Portuguesa de Educação, v. 13, n. 2, p. 7-28, 2000. ISSN: 0871-9187, p. 13), trata-se de uma forma de "(…) taylorizar (quer dizer, tornar eficientes e eficazes) as instituições de ensino superior". Os autores (Amaral e Magalhães, 20002 AMARAL, Alberto; MAGALHÃES, António. O conceito de stakeholder e o novo paradigma do ensino superior. Revista Portuguesa de Educação, v. 13, n. 2, p. 7-28, 2000. ISSN: 0871-9187, p. 13) exemplificam dizendo que esses "(…) mecanismos são os que induzem a competição entre instituições (por alunos, por investimentos, por fundos para investigação etc.) como forma de as tornar mais eficientes". Com isso, o interesse pela qualidade do ensino parece ser um movimento de competitividade entre as IES por meio da valorização dos serviços prestados, como referido por Silva (200027 SILVA, Tomaz Tadeu da. Teorias do currículo. Porto: Porto Editora, 2000., p. 149-150):

Embora seja evidente que somos cada vez mais governados por mecanismos sutis de poder, tais como analisados por Foucault, também é evidente que continuamos a ser governados, de forma talvez menos sutil, por relações e estruturas de poder baseadas na propriedade de recursos econômicos e culturais.

Pelo exposto, a qualidade do ensino superior constitui uma problemática que tem motivado vários investigadores no mundo a pesquisarem sobre a referida temática. Algumas dessas investigações apresentam uma perspectiva que associa o sucesso escolar dos discentes ao rendimento acadêmico das universidades diante da necessidade de disponibilizar aos "clientes", atores educacionais, indicadores relativos à qualidade do ensino. Nesse sentido, nos países onde o ensino superior público é pago, como é o caso de Portugal e diferente do Brasil, segundo Clare Chua (2004)11 CHUA, Clare. Perception of Quality in Higher Education. In: PROCEEDINGS OF THE AUSTRALIAN UNIVERSITIES QUALITY FORUM, 2004, Melbourne. Anais […] Melbourne: AUQA Occasional Publication, 2004. p. 1-7. Disponível em: https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.125.3578&rep=rep1&type=pdf. Acesso em: 21 jul. 2021.
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, os estudantes e as famílias que pagam os seus estudos são considerados como clientes, e a avaliação da qualidade do ensino superior deveria levar em consideração as percepções dos diferentes grupos de clientes. A título de exemplo, no estudo realizado por Cid et al. (2006), com o objetivo de analisar a percepção estudantil sobre a qualidade do ensino superior público de Portugal, os resultados revelam a satisfação dos estudantes no que se refere às percepções do ensino e do desempenho docente.

Contrariamente, no estudo levado a cabo por Walter et al. (2011)35 WALTER, Silvana Anita; NETO, Pedro José Steiner; PRADO, Paulo Henrique Muller; TONTINI, Gérson. Percepção da qualidade de ensino em uma instituição pública de ensino superior: um estudo multimétodos. Revista Portuguesa e Brasileira de Gestão, v. 10, n. 3, p. 48-59, 2011. com o objetivo de analisar a percepção dos estudantes de uma universidade pública federal no Brasil sobre a qualidade do ensino, os resultados revelam que a percepção dos estudantes é fundamental à formação da imagem da IES. Em acréscimo, os autores referem que o estudo oferece importantes indicativos que podem subsidiar os gestores das IES no sentido de promover ações que ampliem a percepção da qualidade de ensino de forma a satisfazer os interesses da maioria de seus "stakeholders", retendo-os na IES e trazendo vantagens para esta" (Walter et al., 201135 WALTER, Silvana Anita; NETO, Pedro José Steiner; PRADO, Paulo Henrique Muller; TONTINI, Gérson. Percepção da qualidade de ensino em uma instituição pública de ensino superior: um estudo multimétodos. Revista Portuguesa e Brasileira de Gestão, v. 10, n. 3, p. 48-59, 2011., p. 58).

Tal como argumentam Chuvica e Silva (201612 CHUVICA, Lívio Wander Kelen.; SILVA, Graça Miranda. Percepção dos alunos sobre a qualidade dos serviços no ensino superior: aplicação dos modelos SERVPERF e HEdPERF na FEUJES. In: GESTÃO DA QUALIDADE DE SERVIÇOS NO ENSINO SUPERIOR, 2016, Araraquara. Anais […] Araraquara: Centro Universitário de Araraquara, 2016. p. 3-17 Disponível em: https://www.aforges.org/wp-content/uploads/2016/11/25-Livio-Wander-Chuvica_Percepcao-dos-alunos.pdf. Acesso em: 03 ago. 2021.
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, p. 1), "(…) as instituições do ensino superior (IES) reconhecem cada vez mais a necessidade de medir a qualidade do serviço que prestam, de modo a poderem alterar os seus serviços/produtos face ao feedback obtido e assim enfrentarem a concorrência". Sob essa lógica, no estudo realizado pelos autores com o objetivo de compreender a percepção dos discentes de uma universidade de Angola sobre a qualidade dos serviços educacionais prestados pela referida IES, foi possível verificar que os estudantes reportam maior qualidade dos cursos da universidade em que o estudo foi desenvolvido, quando comparado com outras IES. Além disso, indicam maior satisfação com a qualidade geral da IES, bem como a superação das expectativas dos próprios estudantes com relação à qualidade institucional.

Com base nas evidências apresentadas sobre as distintas percepções dos estudantes no que se refere à qualidade do ensino superior, podemos verificar os desafios impostos de "reafirmação" das IES do mundo, entre elas as portuguesas e as brasileiras, perante um massacrante sistema de competitividade. Esses desafios, por sua vez, podem representar uma preocupação por parte das IES com a política educativa de "financeirização", se assim podemos chamar, da mercantilização do ensino superior, em que a voz discente entra na cena como a voz do "cliente", o qual é ouvido para apresentar "vantagens" às IES, como verificado por Walter et al. (2011)35 WALTER, Silvana Anita; NETO, Pedro José Steiner; PRADO, Paulo Henrique Muller; TONTINI, Gérson. Percepção da qualidade de ensino em uma instituição pública de ensino superior: um estudo multimétodos. Revista Portuguesa e Brasileira de Gestão, v. 10, n. 3, p. 48-59, 2011.. Deste modo, e de acordo com o exposto por Baudrillard (20064 BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2006., p. 207):

Assim como as necessidades, os sentimentos, a cultura, o saber, todas as forças próprias do homem acham-se integradas como mercadoria na ordem de produção e se materializam em forças produtivas para serem vendidas, hoje em dia todos os desejos, os projetos, as exigências, todas as paixões e relações abstratizam-se (e se materializam em signos e em objetos para serem compradas e consumidas).

A respeito das políticas educativas, D'Hainaut (198016 D'HAINAUT, Louis. Educação – dos fins aos objetivos. Coimbra: Livraria Almedina, 1980., p. 42) argumenta que elas devem ser "(…) para designar as linhas de força ou as tendências que sustentam as ações educativas". São elas um conjunto de políticas, ideologias e intencionalidades norteadas para uma finalidade atrelada a um mundo capitalista globalizado em que a educação é vista como investimento, onde se registra a presença do Banco Mundial na definição das políticas educacionais. Estas são determinadas pelas políticas transnacionais, as chamadas políticas viajantes, demonstrando a prevalência da lógica financeira transnacional para o crescimento econômico.

Em vista do anterior, no atual contexto mundial de hierarquização do mundo acadêmico e de gestão de negócio da educação superior, o trabalho acadêmico anda à sombra do poder do empreendedorismo e da dinâmica organizacional da IES-empresa como indicador de produtividade. Adicionalmente, é um meio para se alcançar visibilidade no mercado, otimizando, dessa forma, a prestação de contas.

Dá-se assim uma verdadeira inversão de valores. Uma nova ordem de garantia de qualidade da educação superior que é manipulada por uma cultura de massas em que a competitividade e o lucro, num mundo globalizado, acumulam capital, recriando a cultura. Nessa nova ordem, o saber, enquanto objeto, segue um código hierárquico, sendo regido pelas significações das diferenças codificadas (Baudrillard, 19953 BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica da economia política do signo. São Paulo: Martins Fontes, 1995.), tal como a mercadoria.

Conforme argumenta Dias Sobrinho (2008)15 DIAS SOBRINHO, José. Avaliação da Educação Superior: avanços e riscos. São Paulo: EccoS – Revista Científica, v. 10, p. 67-94, 2008. https://doi.org/10.5585/eccos.v10i0.1353
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, a qualidade que se menciona no ensino superior é uma constatação da grande influência do mercado, da indústria e da gestão sobre a educação. Tal como explicitado pelo autor (Dias Sobrinho, 200815 DIAS SOBRINHO, José. Avaliação da Educação Superior: avanços e riscos. São Paulo: EccoS – Revista Científica, v. 10, p. 67-94, 2008. https://doi.org/10.5585/eccos.v10i0.1353
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), ainda que orientadas pela lógica da mercantilização, as instituições educativas, independentemente do seu nível de ensino, devem cumprir o seu papel educativo. Isso implica formar cidadãos com elevadas competências éticas e científicas de modo a contribuir para o desenvolvimento social e humano por meio das atividades que desenvolve e, desse modo, compreender os significados da sua missão, cujo foco deve estar centrado nas sociedades, nos indivíduos e, sobretudo, na aprendizagem. Ou seja, é imprescindível ir além de um processo de inventariado de produtos e qualidade dos serviços, criação de banco de dados, bem como a classificação dos alunos segundo o desempenho que estes apresentam por meio de instrumentos, os quais supostamente medem a sua aprendizagem.

Diante do exposto, considerando-se as importantes contribuições favorecidas pela investigação sobre a percepção da qualidade do ensino superior, tal como ressaltado no estudo de Clare Chua (2004)11 CHUA, Clare. Perception of Quality in Higher Education. In: PROCEEDINGS OF THE AUSTRALIAN UNIVERSITIES QUALITY FORUM, 2004, Melbourne. Anais […] Melbourne: AUQA Occasional Publication, 2004. p. 1-7. Disponível em: https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.125.3578&rep=rep1&type=pdf. Acesso em: 21 jul. 2021.
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e Walter et al. (2011)35 WALTER, Silvana Anita; NETO, Pedro José Steiner; PRADO, Paulo Henrique Muller; TONTINI, Gérson. Percepção da qualidade de ensino em uma instituição pública de ensino superior: um estudo multimétodos. Revista Portuguesa e Brasileira de Gestão, v. 10, n. 3, p. 48-59, 2011., constata-se uma lacuna investigativa que ainda carece de atenção diante das aproximações e distanciamentos existentes entre o ensino superior de Portugal e do Brasil. Ou seja, é fundamental dar voz aos estudantes para compreender a percepção que eles possuem sobre a qualidade do ensino superior e a realidade por eles experienciada.

Em face do anteriormente exposto, o presente estudo teve o objetivo de compreender a percepção dos discentes de duas universidades públicas, uma de Portugal e uma do Brasil, no que se refere às práticas avaliativas de qualidade da educação superior da A3ES em Portugal e do SINAES/MEC no Brasil, levando-se em consideração as possíveis implicações que elas possuem na formação dos estudantes.

METODOLOGIA

Esta investigação possui metodologia quantitativa, com um desenho de estudo de caso de caráter comparativo, uma vez que situa historicamente o problema investigado (Bartlett e Vavrus, 20175 BARTLETT, Lesley; VAVRUS, Frances. Estudos de caso comparado. Educação & Realidade, v. 42, n. 3, p. 899-920, 2017.). Além disso, o procedimento de coleta de dados foi do tipo transversal, considerando a aplicação de um instrumento de medida em determinado momento do tempo (Wang e Cheng, 202036 WANG, Xiaofeng; CHENG, Zhenshun. Cross-sectional studies: strengths, weaknesses, and recommendations. Chest, v. 158, n. 1, p. S65-S71, 2020. https://doi.org/10.1016/j.chest.2020.03.012
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).

Em vista do anterior, o presente estudo descreve e analisa de forma intensiva e holística uma problemática delimitada (Merriam, 199821 MERRIAM, Sharan Ballard. Qualitative research and case study applications in education. San Francisco: Jossey-Bass, 1998.), neste caso, a percepção discente de duas universidades de contextos diferentes sobre a qualidade do Ensino Superior. A opção por este tipo de metodologia e desenho justifica-se por ele possibilitar importantes insights teóricos que podem ser transferidos a outros contextos (Bartlett e Vavrus, 20175 BARTLETT, Lesley; VAVRUS, Frances. Estudos de caso comparado. Educação & Realidade, v. 42, n. 3, p. 899-920, 2017.).

PARTICIPANTES

Participaram do estudo 300 estudantes universitários (sendo 50% de uma universidade pública de uma região autônoma de Portugal e 50% de uma universidade pública do sudeste do Brasil), tratando-se de uma amostra não probabilística e de conveniência (Wang e Cheng, 202036 WANG, Xiaofeng; CHENG, Zhenshun. Cross-sectional studies: strengths, weaknesses, and recommendations. Chest, v. 158, n. 1, p. S65-S71, 2020. https://doi.org/10.1016/j.chest.2020.03.012
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). Segundo informações emitidas por cada uma das instituições em que o estudo foi desenvolvido, a universidade de Portugal possui o total de 3.503 alunos matriculados nos cursos de graduação, ao passo que a universidade pública do Brasil apresenta um quantitativo muito mais elevado e que representa o total de 34.652 alunos matriculados nos distintos cursos de graduação.

Da totalidade dos participantes, 43,7% do sexo masculino e 56,3% do sexo feminino, com idades distribuídas entre < 20 anos (51,7%), 21 – 23 anos (36,7%), 24 – 26 anos (7,7%) e > 26 anos (4,0%), das áreas de conhecimento de saúde (33,3%), humanas (33,3%) e exatas (33,3%) e estudantes do 1° ano (42,0%), 2° ano (26,3%), 3° ano (22,0%), 4° ano (6,3%) e 5° ano (3,3%). A caracterização dos participantes por país é apresentada na Tabela 1.

Tabela 1
Caracterização dos participantes por país.

INSTRUMENTO DE RECOLHA DE DADOS

Utilizamos o Questionário da Percepção Discente sobre a Qualidade do Ensino Superior (QPDQES), com uma versão para o contexto de uma universidade pública portuguesa e outra para uma universidade pública brasileira. O instrumento foi desenvolvido por Soares (2021)29 SOARES, Rogéria Pereira Fernandes. SINAES/MEC e A3ES – Estudo comparado dos contextos institucionais e políticos de avaliação e regulação do sistema de qualidade da educação superior no Brasil e em Portugal - Sentidos e identidades dos dois lados de uma mesma moeda. 2021. 330 f. Tese (Doutoramento em Currículo e Inovação Pedagógica) – Departamento de Ciências da Educação, Universidade da Madeira, Madeira, Portugal, 2021., com o objetivo de analisar e comparar a percepção dos estudantes, dos citados contextos, sobre os fatores relacionados com a qualidade do referido ensino.

A construção do instrumento teve em consideração os indicadores que surgiram da análise de entrevistas prévias realizadas presencialmente com a direção da European Association for Quality Assurance in Higher Education — ENQA (Bélgica), com discentes e docentes da Université Paris VII (França), com discentes e docentes da University of Westminster (Inglaterra) e com diretores e docentes de cursos de universidades portuguesas e brasileiras de áreas distintas do conhecimento (humanas, saúde e exatas) sobre a avaliação externa e interna da qualidade do ensino superior. Na sua construção, também se levou em consideração a experiência da investigadora em algumas visitas in loco realizadas com comissões de avaliadores do MEC e a participação no curso de formação de alunos avaliadores da A3ES, apresentando o instrumento uma validade ecológica.

O QPDQES é composto de três partes específicas: a primeira possui perguntas de caracterização dos participantes. A segunda parte é composta do total de 21 itens que avaliam a percepção dos estudantes sobre os indicadores de qualidade do ensino superior dos processos de avaliação realizados pela A3ES e pelo MEC, considerando suas particularidades de acordo com os contextos (exemplo de item: "Um corpo docente que assegure a lecionação do ciclo de estudos que seja próprio, academicamente qualificado e especializado na área ou áreas de formação fundamentais do ciclo"; "Uma IES que tenha participação, através dos seus docentes, em investigações de reconhecido mérito nacional e internacional"; "Os resultados da avaliação externa de qualidade do ensino superior são divulgados nos rankings das IES de forma clara, para a sociedade entender quais os pontos fortes e fracos de cada IES"). Nesse sentido, os itens possuem caráter descritivo, com quatro alternativas de respostas organizados em escala tipo Likert, sendo: 1 (Discordo totalmente), 2 (Discordo parcialmente), 3 (Concordo parcialmente) e 4 (Concordo totalmente). Por fim, a terceira parte do instrumento é composta de quatro perguntas com opções de respostas dicotômicas (sim e não) sobre o conhecimento e a participação discente nos processos de avaliação externa e interna da qualidade do ensino superior.

Buscando avaliar a confiabilidade do instrumento, recorremos à análise do Alfa de Cronbach dos itens que avaliam a percepção dos estudantes sobre os indicadores de qualidade do ensino superior. É importante destacar que a confiabilidade se refere à exatidão e à coerência das informações recolhidas, o que é essencial para realizar uma investigação com nível de rigor aceitável. Para sua interpretação e para garantir a confiabilidade de um instrumento, os valores de alfa devem ser superiores a 0,7, conforme indicado pela literatura psicométrica (exemplo: Sürücü e Maslakçi, 202032 SURUCU, Lutfi; MASLAKCI, Ahmet. Validity and reliability in quantitative research. Business and Management Studies: An International Journal, v. 8, p. 2694-2726, 2020. https://doi.org/10.15295/bmij.v8i3.1540
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). Pelo exposto, neste procedimento se levou em consideração tanto a amostra total como cada uma das subamostras das universidades em estudo.

Considerando a amostra total, o instrumento apresentou um α = 0,78. Além disso, o instrumento também apresentou bons valores de confiabilidade ao considerar cada um dos contextos (α = 0,82 para a universidade de Portugal; α = 0,74 para universidade do Brasil), demonstrando que o instrumento apresenta boa confiabilidade.

PROCEDIMENTO E ASPECTOS ÉTICOS DA INVESTIGAÇÃO

Após o contato com as universidades públicas, uma portuguesa e uma brasileira, bem como a obtenção das respectivas autorizações para a realização deste estudo, entramos em contato com os discentes de áreas distintas do saber, nomeadamente humanas, saúde e exatas, para proceder com a aplicação do QPDQES. O instrumento foi aplicado de forma presencial, com a entrega do questionário físico depois da exposição oral dos objetivos da investigação, a forma de preenchimento do instrumento e os procedimentos éticos envolvidos no que diz respeito ao anonimato dos participantes e à confidencialidade dos dados. A resposta dos participantes foi obtida de forma individual e ocorreu em salas de aula das duas universidades.

ANÁLISES DOS DADOS

Para analisar os dados, recorremos ao software IBM Statistical Package for the Social Sciences — IBMSPSS, versão 25.0. Utilizamos, inicialmente, uma análise descritiva das respostas dos participantes, considerando os itens do instrumento. Na sequência, buscando analisar a existência de diferenças significativas entre os participantes de cada contexto, recorreu-se a uma estatística inferencial por meio do teste t de Student para amostras independentes. A justificativa para o uso desse tipo de técnica paramétrica levou em consideração o tamanho da amostra e as variáveis estudadas (Pestana e Gageiro, 200324 PESTANA, Maria Helena; GAGEIRO, João Nunes. Análise de dados para as ciências sociais: a complementaridade do SPSS. Lisboa: Sílabo, 2003. https://doi.org/10.13140/2.1.2491.7284
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).

RESULTADOS

RESULTADOS DA ANÁLISE DESCRITIVA

Relativamente à percepção discente, dos dois contextos em estudo, sobre o que vem a ser qualidade do ensino superior (ver Tabela 2), verifica-se que uma maior porcentagem dos participantes concorda totalmente com as variáveis estudadas, relativamente aos fatores que determinam a qualidade do ensino superior. Por exemplo, no item "um corpo docente que assegure a lecionação do ciclo de estudos que seja próprio, academicamente qualificado e especializado na área ou áreas de formação fundamentais do ciclo", 73,3% dos estudantes de cada um dos contextos investigados afirmam que concordam totalmente. Nesse mesmo sentido, 58,7% dizem concordar totalmente no que diz respeito ao item "uma Instituição de Ensino Superior (IES) que desenvolva atividade reconhecida de formação".

Tabela 2
Resultados da análise descritiva por país.

Por outra parte, a análise permite-nos identificar que, com relação ao item "uma IES que tenha participação em publicações e/ou produções científicas relevantes", 52,7% dos estudantes da universidade portuguesa referem concordar parcialmente, ao passo que 58,0% dos estudantes da universidade brasileira referem concordar totalmente. Nesse mesmo sentido, com respeito à "internacionalização", 46,0% dos estudantes do contexto de Portugal concordam parcialmente, ao passo que 48,7% dos estudantes do contexto do Brasil concordam totalmente. Isso atesta que a internacionalização das universidades é um aspecto importante no que diz respeito à qualidade do ensino superior. Adicionalmente, 52,7% dos participantes de Portugal concordam parcialmente com o fato de a IES "promover reflexão interna coletiva sobre a IES e suas atividades", ao passo que 61,3% dos participantes do Brasil concordam totalmente. Por outra parte, 56,7% dos discentes do contexto português e 39,3% dos discentes do contexto brasileiro concordam parcialmente que a estrutura curricular resultante das orientações da avaliação externa garante a qualidade da educação superior.

Relativamente à escolha pela universidade ter por base a divulgação do ranking das IES, os estudantes de ambos os contextos afirmam que discordam totalmente (58,0% dos estudantes de Portugal e 46,0% dos estudantes do Brasil). Já no que diz respeito ao fato de que "estabelecer metas comuns para todas as IES garante a qualidade do ensino e da aprendizagem", 30,7% dos estudantes da universidade portuguesa concordam totalmente, ao passo que os estudantes da universidade brasileira concordam parcialmente (38,0%).

Relativamente ao fato de que "a garantia da qualidade do ensino superior leva em consideração as necessidades e expectativas dos estudantes", resultados levemente divergentes foram observados quanto ao nível de concordância. Ou seja, 55,3% dos estudantes da universidade de Portugal afirmam concordar parcialmente, ao passo que 46,0% dos estudantes da universidade do Brasil afirmam discordar totalmente.

Num sentido oposto, 44,7% dos discentes do contexto português afirmam que concordam parcialmente com o fato de que "os resultados da avaliação externa de qualidade do ensino superior são divulgados nos rankings das IES de forma clara, para a sociedade entender quais os pontos fortes e fracos de cada IES", ao passo que entre os discentes do contexto brasileiro a maior porcentagem dos participantes (44,0%) reporta discordar totalmente. Nesse sentido, os resultados permitem verificar que existe uma aproximação e, ao mesmo tempo, um distanciamento na percepção dos estudantes das duas universidades públicas (portuguesa e brasileira) sobre o que vem a ser qualidade do ensino superior.

RESULTADOS DA ANÁLISE COMPARATIVA

A Tabela 3 apresenta os resultados da análise comparativa entre as duas universidades em estudo. Foi possível constatar algumas diferenças significativas com relação à percepção que os estudantes da universidade de Portugal e da universidade do Brasil apresentam sobre a qualidade do ensino superior. Especificamente, os estudantes do contexto português levam mais em consideração a estrutura curricular vigente, como forma de garantir a qualidade da educação superior [t (298) = 3,26, p = 0,003], o estabelecimento de metas comuns para todas as IES como forma de garantir a qualidade do ensino e da aprendizagem [t (298) = 5,63, p < 0,001], bem como o fato de os resultados da avaliação externa de qualidade do ensino superior serem divulgados nos rankings das IES de forma clara para a sociedade entender quais os pontos fortes e fracos de cada IES [t (298) = 4,71, p = 0,022]. Como diferença marginalmente significativa, também foi verificado que os estudantes do contexto português consideram que a qualidade da educação superior do seu curso deve encontrar-se de acordo com as necessidades contemporâneas globais de empregabilidade [t (556) = 2,97, p = 0,058], quando comparados com os estudantes do contexto brasileiro.

Tabela 3
– Resultados da análise comparativa: a percepção dos estudantes de Portugal e Brasil.

Em contrapartida, os da universidade do Brasil levam mais em consideração os recursos humanos e materiais como indispensáveis à garantia do nível e da qualidade da formação ministrada [t (298) = −1,31, p = 0,032], a importância da participação dos seus docentes em investigações de reconhecido mérito nacional e internacional [t (298) = −1,53, p = 0,043]. Além disso, os estudantes da universidade do Brasil ainda consideram a importância da biblioteca como fonte de acesso às obras importantes e atualizadas de cada ciclo de estudo [t (298) = −2,05, p = 0,001], e o resultado da universidade na qual estuda no ranking das IES [t (298) = −3,55, p < 0,001].

Em última instancia, analisamos as respostas dos participantes relacionadas com o conhecimento e a participação discente nos processos de avaliação externa e interna da qualidade do ensino superior. Isso permitiu maior compreensão dos resultados previamente expostos. Tal como se verifica na Tabela 4, 54,7% dos estudantes do contexto de Portugal e 73,3% dos estudantes do contexto do Brasil referem ter ouvido falar em avaliação interna de qualidade do ensino superior. Por outro lado, os estudantes de ambas as universidades informam não terem conhecimento dos itens avaliados pela instituição responsável pela avaliação externa das IES (89,3% da universidade de Portugal e 86,7% da universidade do Brasil). Além disso, 75,3% dos estudantes do contexto português e 59,3% dos estudantes do contexto brasileiro referem que não participaram de um processo de avaliação interna. Neste mesmo sentido, em ambos os contextos investigados, a maior parte afirma que nunca esteve junto da comissão de avaliadores no processo de avaliação externa (98,7% dos participantes portugueses e 94,7% dos participantes brasileiros).

Tabela 4
Conhecimento e a participação discente no processo de avaliação.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

O presente estudo buscou, ao ouvir a voz dos discentes de duas universidades públicas, uma portuguesa e outra brasileira, principais atores do processo, compreender o que estes realmente consideram importante para se ter um ensino superior de qualidade. Adicionalmente, buscou investigar se os referidos estudantes possuem conhecimento sobre os indicadores de qualidade avaliados pela A3ES, no caso de Portugal, e pelo SINAES/MEC, no caso do Brasil, e se eles já tinham participado do processo de avaliação.

Como se sabe, a qualidade do ensino superior, desde os anos 1990, assume lugar de destaque diante dos grandes desafios globais da nossa contemporaneidade. Em prol da competitividade internacional, os padrões de produção científica foram ampliados, passando a ter no processo avaliativo da qualidade do ensino superior crescente importância na medida e no controle das IES (Dias Sobrinho, 200815 DIAS SOBRINHO, José. Avaliação da Educação Superior: avanços e riscos. São Paulo: EccoS – Revista Científica, v. 10, p. 67-94, 2008. https://doi.org/10.5585/eccos.v10i0.1353
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).

Portugal, tendo como marco a Declaração de Bolonha (União Europeia, 199933 UNIÃO EUROPEIA. Declaração de Bolonha. Bolonha: União Europeia, 1999. Disponível em: http://www.fam.ulusiada.pt/downloads/bolonha/Docs02_DeclaracaoBolonha.pdf. Acesso em: 25 mai. 2020.
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), que determinou a construção do Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES), e o Brasil, com o edital SESu/MEC n° 4 de 1997 (Brasil, 1997a8 BRASIL. Edital SESu/MEC n° 4/97. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto; Secretaria de Educação Superior, 1997a.), passaram a ter, no que se refere à qualidade do ensino superior, como bem pontuam Pacheco e Vieira (2006)23 PACHECO, José Augusto; VIEIRA, Ana Paula. Europeização do currículo: para uma análise das políticas educativas e curriculares. In: MOREIRA, António; PACHECO, José Augusto (orgs.). Globalização e educação: desafios para políticas e práticas. Porto: Porto Editora, 2006. p. 87-126., referenciais bem definidos sobre os critérios de organização a diferentes níveis de regulação política, com competências gerais e comuns a todas as IES. Com isso, a avaliação da qualidade da educação superior ganhou força, tendo órgãos especificamente institucionalizados de regulação do ensino superior (Morosini et al., 201622 MOROSINI, Marilia Costa; FERNANDES, Cleoni Maria Barbosa; LEITE, Denise; FRANCO, Maria Estela Dal Pai; CUNHA, Maria Isabel Da; ISAIA, Silvia Maria Aguiar. Quality of higher education and the complex exercise of proposing indicators. Revista Brasileira de Educação, v. 21, n. 64, p. 13-37, 2016. https://doi.org/10.1590/S1413-24782016216402
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). Em Portugal, essa regulação é feita pela A3ES e, no Brasil, pelo SINAES/MEC.

Diante dos resultados deste estudo, verificamos que os estudantes das duas universidade públicas em pauta, portuguesa e brasileira, possuem percepções aproximadas em alguns indicadores analisados sobre os fatores que determinam a qualidade do ensino superior. A título de exemplo, tal como apresentado nos resultados, 73,3% dos estudantes do Brasil e de Portugal, respectivamente, afirmam que concordam totalmente com a pertinência das universidades serem compostas de um corpo docente qualificado academicamente e especializado na área ou áreas de formação. Estes resultados são importantes e complementam outras evidências deste estudo, como por exemplo a porcentagem de estudantes que concordam totalmente sobre a relevância de se desenvolverem atividades de formação reconhecida. Dito de outra forma, para que as universidades possam desenvolver tais atividades, é fulcral contar com um corpo acadêmico devidamente qualificado e especializado em sua área de conhecimento, o que poderá ter implicações, até mesmo, na qualidade da aprendizagem dos estudantes. Estes resultados são relevantes uma vez que destacam o importante papel do professor (Souza, Veiga Simão e Ferreira, 201931 SOUZA, Sidclay Bezerra de; VEIGA SIMÃO, Ana Margarida Vieira; FERREIRA, Paula Costa. Campus climate: the role of teacher support and cultural issues. Journal of Further and Higher Education, v. 43, n. 9, p. 1196-1211, 2019. https://doi.org/10.1080/0309877X.2018.1467387
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), apontando para aspectos importantes que não são considerados na avaliação da qualidade do ensino superior.

Por outra parte, os estudantes do contexto português possuem uma percepção de qualidade do ensino superior mais associada aos indicadores que envolvem a empregabilidade, a estrutura curricular vigente de seu curso resultante das orientações da avaliação externa da A3ES, tendo também a percepção de que os resultados da avaliação externa da qualidade do ensino superior são divulgados nos rankings das IES de forma clara, para a sociedade entender quais os pontos fortes e fracos das IES. Em contrapartida, os estudantes do contexto brasileiro possuem uma percepção de qualidade do ensino mais associada às estruturas e apoio aos processos de ensino e de aprendizagem, a uma coordenação com grau de doutor e em regime laboral de tempo integral, à participação em investigações de reconhecido mérito nacional e internacional, à participação em publicações científicas relevantes e à internacionalização. Além disso, os estudantes do contexto brasileiro consideram mais a relevância de a IES promover reflexão interna e coletiva sobre as suas atividades, a qualidade das instalações da IES e o acervo disponível nas bibliotecas. Por outra parte, estudantes das duas instituições discordam totalmente que a escolha pela universidade na qual estudam teve por base a divulgação do ranking. Além do exposto, os resultados deste estudo também revelam que 55,3% dos estudantes do contexto português concordam parcialmente e 46,0% dos estudantes do contexto brasileiro discordam parcialmente que a garantia da qualidade do ensino superior leva em consideração as necessidades e expectativas dos estudantes. Por meio de uma análise mais específica, os resultados do presente estudo de caso, de caráter comparativo, permitiram ressaltar aspectos importantes do que é considerado mais pelos estudantes de cada um dos contextos em que o estudo foi realizado, o que abre a oportunidade para diversas discussões.

Também se verifica que os estudantes do contexto português consideram mais a estrutura curricular vigente de seu curso, resultante das orientações da avaliação externa, como forma de garantir a qualidade da educação superior, o estabelecimento de metas comuns para todas as IES como meio de garantir a qualidade do ensino e da aprendizagem. De modo adicional, os estudantes do contexto português também consideram o fato de os resultados da avaliação externa de qualidade do ensino superior serem divulgados nos rankings das IES para a sociedade entender quais os pontos fortes e fracos de cada IES, como ainda o fato do seu curso se encontrar de acordo com as necessidades globais contemporâneas de empregabilidade. Já os estudantes do contexto brasileiro levam mais em consideração os recursos humanos e materiais como indispensáveis à garantia do nível e da qualidade da formação ministrada, a participação da IES em investigações de reconhecido mérito nacional e internacional, a importância da biblioteca como fonte de acesso às obras importantes e atualizadas de cada ciclo de estudo, como ainda a escolha pela universidade ser pautada no ranking das IES.

Com relação às respostas das questões adicionais analisadas, foi possível perceber que, apesar de uma maior porcentagem dos estudantes da universidade de Portugal e da universidade do Brasil já ter ouvido falar em avaliação interna e externa da qualidade do ensino superior, grande parte não possui conhecimento dos itens avaliados. Adicionalmente, os estudantes de ambos os contextos referem, maioritariamente, não ter participado de um processo de avaliação interna e, no processo de avaliação externa do seu curso, nunca ter estado junto da comissão de avaliadores.

Estes resultados demonstram que, apesar da percepção clara que os discentes possuem do que vem a ser qualidade no ensino superior, eles, em sua grande maioria, não são envolvidos no processo das avaliações externas e internas da qualidade do ensino superior, seja pelos órgãos avaliadores, seja por suas universidades. Além disso, possuem opiniões que divergem do que é ditado pelos sistemas de avaliação sobre a qualidade do ensino. Sem terem o mínimo de conhecimento e experiência para opinarem a respeito, desde que tratados como "clientes" e não como "cooperativados com participação nos lucros", neste caso, a aprendizagem, os estudantes passam de principais atores do processo a meros espectadores, parafraseando Guy Debord (1967), dessa universidade do espetáculo.

Onde o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como um sentido privilegiado da pessoa humana — o que em outras épocas fora o tato; o sentido mais abstrato, e mais sujeito à mistificação, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. (Debord, 1967, p. 19)

Apesar das limitações existentes no presente estudo, como por exemplo a representatividade da amostra, considerando-se os dois contextos sob análise, o fato de utilizarmos um instrumento de autorrelato, o tipo de análise utilizada, entre outros aspectos, considera-se pertinente continuar aprofundando a presente problemática em futuras investigações. Dadas tais limitações, é importante que os resultados verificados não sejam generalizados, mas relativizados. Isso permite a abertura de uma pauta na agenda investigativa no campo educacional que necessita ser aprofundada com a realização de novos estudos que utilizem outras abordagens e diferentes metodologias. De todo modo, apesar das limitações identificadas, os resultados alertam sobre a necessidade do real engajamento discente no processo de avaliação interna e externa da qualidade do ensino superior. Também elucidam a lacuna que se forma quando as Instituições Avaliadoras e as IES ouvem um número reduzido de estudantes, apenas para constar em ata, deixando a maioria do corpo discente totalmente ausente das discussões e, o que é ainda mais grave, sem receber qualquer orientação sobre o processo de avaliação. Ou seja, os resultados apresentados permitem novos questionamentos que destacam, por um lado, a ausência dos alunos nas avaliações de qualidade na educação superior e, por outro, o desconhecimento dos aspectos por meio dos quais as instituições universitárias são avaliadas.

Como ouvir os milhares de estudantes de uma universidade em dois ou três dias da visita in loco realizadas pelas comissões de avaliadores da A3ES e do MEC, em meio a um processo burocrático que se destina a cumprir diretrizes e sem o auxílio de um instrumento em que permita ouvir os estudantes em larga escala? As respostas dos estudantes portugueses e brasileiros, das duas universidades públicas participantes deste estudo, demonstram o quanto eles estão afastados do processo de avaliação da qualidade do ensino a eles ministrados — consequentemente, distantes do poder crítico de análise sobre a sua própria aquisição do conhecimento, entre o dito e o não dito das duas faces de uma mesma moeda.

Uma moeda como processo avaliativo de qualidade da educação superior, simbolicamente falando, que de um lado comporta o processo técnico da avaliação e, do outro, o exercício de poder do que julgar, por que julgar e como julgar. Ações estas permeadas de interesses, intenções e sentidos quanto à formação de identidade social, disfarçando, ao sustentar o discurso ideológico da busca pela melhoria, os reais significados que os significantes carregam em si, os quais englobam o universo da avaliação propriamente dita, do avaliador e do avaliado.

É neste marco contextual e permeado de evidências que o presente estudo possui sua relevância por ouvir a voz discente dos dois contextos em estudo, não no que diz respeito à sua opinião sobre a qualidade de ensino da sua IES, especificamente falando, ou até mesmo no que deseja ou espera em termos de melhoria da universidade para que melhore a sua satisfação enquanto "cliente". Ao contrário, o nosso intuito foi ouvir o aprendiz sobre o que ele acha ser "qualidade do ensino superior" como um todo, o que considera importante para se obter essa qualidade centrada no aluno, na sua aprendizagem e, ademais, como ele se encontra envolvido no processo avaliativo da sua IES e do seu curso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vivencia-se na educação superior uma verdadeira corrida diante da necessidade de comprovar a satisfação do "cliente". Sua retenção enquanto agente que pontua para a validação da qualidade do ensino da sua IES, por meio da sua opinião sobre as dimensões analisadas pelos sistemas de avaliação da qualidade do ensino superior, revela uma realidade que permite questionamentos sobre os verdadeiros beneficiários envolvidos neste processo.

Nessa perspectiva, os alunos, apesar de entenderem de forma positiva a sua participação no processo de avaliação das instituições, face ao entendimento que têm da "experiência prática" do processo de ensino-aprendizagem, (…), ficam numa posição de distância em relação a todo o processo avaliativo oficial, pois os atuais instrumentos não permitem a sua efetiva participação, não os integra no conjunto de percepções de atributos analisados pelos avaliadores. (Soares, 201628 SOARES, Antonio Augusto dos Santos. Gestão da Qualidade no Ensino Superior: desafios para os modelos de regulação e avaliação no Brasil e em Portugal. 2016. 259 f. Tese (Doutoramento em Gestão). Universidade de Trás-Os-Montes e Alto Douro – UTAD, Vila Real, Portugal, 2016., p. 3-4)

Diante deste cenário, encontramos uma visão totalmente mercadológica entre cliente (discente) e empresa (IES). Fazendo um paralelo com a visão marxista sobre capital vs. trabalho, pode-se dizer que, com a evolução do capitalismo, a educação tem de se transformar em mercadoria, sendo encarada nos processos de avaliação da qualidade do ensino superior como uma educação medida de acordo com as regras do mercado, que podem ser quantificadas com mais ou menos valor. A educação superior, desse modo, passa a constituir-se como uma Bolsa de Valores, em que uns valem mais que outros, imbuída por um sistema educacional de gestão de negócios, que, longe de ser imparcial, seleciona de acordo com os valores dos grupos dominantes.

Neste novo contexto, surge a necessidade de legitimar as políticas públicas da educação superior por meio da "excelência" acadêmica das IES diante de uma sociedade cada vez mais exigente de credibilidade nos "investimentos" realizados numa educação que corresponda aos interesses do capital e que gere segurança de empregabilidade e de respeito profissional. Dá-se assim uma aculturação, uma despersonalização, que, não tendo flexibilidade para incluir o diferente, traz descrédito às IES que, apesar de suas expertises e excelência regional, não alcançam, mundialmente, o padrão "Harvard" de qualidade. Tal como menciona Sousa (2015)30 SOUSA, Jesus Maria. O que resta da investigação em educação em Portugal? In: FRAGA, Nuno Silva; KOT-KOTECKI, Ana França (orgs.). A escola restante. Funchal: CIE-Uma, 2015. p. 146-172.:

A avaliação deve assim ser realizada em função das metas e dos objetivos definidos e da respetiva estratégia evolutiva, utilizando as variáveis e indicadores que são mais pertinentes para controlar a tendência do desenvolvimento do processo e não aqueles que são tidos, de forma arbitrária (muitas vezes ao serviço de interesses pouco transparentes), como os únicos importantes e válidos para avaliar o ensino superior. (p. 76)

A qualidade de educação superior avaliada com base na gestão de negócios diminui a autonomia política das IES. Estas, na busca de uma qualidade atrelada à competição mercadológica, têm por alvo a captação de alunos, os quais, numa lógica de "Nova Gestão Pública", de acordo com Amaral (20171 AMARAL, Alberto. Textos dispersos da vida de um académico. Porto: Fundação Eng. Antônio de Almeida, 2017., p. 353), "(…) tornam-se em fregueses ou clientes, [implementando-se] sistemas de garantia de qualidade e prestação de contas para que a oferta acadêmica corresponda às necessidades e expectativas dos clientes".

Diante de algumas incoerências nas respostas ao QPDQES, os resultados deste estudo revelam que as percepções sobre a avaliação da qualidade do ensino superior dos 300 discentes que compõem a amostra desta investigação — parafraseando Amaral (2017)1 AMARAL, Alberto. Textos dispersos da vida de um académico. Porto: Fundação Eng. Antônio de Almeida, 2017., dos 300 "clientes" — evidenciam a grande e verdadeira distância do processo avaliativo, tanto cognitivamente quanto na prática. Trata-se, assim, de uma avaliação que reflete sua forma genérica e superficial por não ser vivenciada na experiência de suas ações seja por parte dos estudantes, seja ainda pelas leis que a regem. Ademais, constata-se que os estudantes se apropriam de informações divulgadas no formato que se deseja que sejam absorvidas pelos próprios estudantes-clientes.

A distância entre os discentes dos dois contextos em estudo, de uma universidade pública portuguesa e de uma universidade pública brasileira, e o processo avaliativo das suas IES e de seus cursos leva-os a não associarem a avaliação com as imposições arbitrárias de recomendações, atreladas ao financiamento institucional. Isso conduz, em sua maioria, ao desconhecimento por parte dos estudantes sobre as dimensões avaliadas pelos sistemas avaliativos de seus países, uma vez que são conduzidos à reprodução de discursos externos organizados a esse propósito. Adicionalmente, obscurece-se a percepção dos estudantes, dos contextos investigados, sobre o processo da avaliação da qualidade do ensino superior, da sua legitimidade e dos impactos que causam às IES e aos seus diversos atores.

Com este estudo de caso comparativo entre o contexto de duas IES públicas, uma de Portugal e uma do Brasil, esperamos contribuir para a literatura da área ao fornecer subsídios para que os processos de avaliação interna e externa da qualidade do ensino superior possam ampliar o olhar às reais necessidades dos discentes por meio de um instrumento que realmente possibilite ouvir a voz dos estudantes em larga escala. Trata-se, portanto, de uma investigação que não se encerra em si. Mais que isso, uma investigação que apresenta resultados de uma comparação, mesmo que apenas dos dois contextos acima citados, sobre a percepção discente a respeito da qualidade do ensino superior. Uma qualidade que possui implicações reais e formativas de um discurso e prática de mercado que não focaliza suas ações no real desenvolvimento da sociedade por tratar os estudantes como clientes e que, deste modo, possibilita indagações pertinentes à realização de futuros estudos.

  • Financiamento:

    O estudo não recebeu financiamento.

REFERÊNCIAS

  • 1
    AMARAL, Alberto. Textos dispersos da vida de um académico Porto: Fundação Eng. Antônio de Almeida, 2017.
  • 2
    AMARAL, Alberto; MAGALHÃES, António. O conceito de stakeholder e o novo paradigma do ensino superior. Revista Portuguesa de Educação, v. 13, n. 2, p. 7-28, 2000. ISSN: 0871-9187
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2022
  • Revisado
    17 Jun 2023
  • Aceito
    28 Jun 2023
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