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Leitores rurais: apropriação ético-prática nos sentidos atribuídos à leitura* * Uma versão reduzida deste artigo foi apresentada na 36ª Reunião da ANPEd, em Goiânia.

LECTORES RURALES: APROPIACIÓN ÉTICO-PRÁCTICA DE LOS SENTIDOS ATRIBUIDOS A LA LECTURA

RESUMO

O artigo discute questões relativas à prática de leitura de leitores assíduos vinculados ao meio rural, em especial em relação aos sentidos que estes atribuem à leitura, tomando-se por base o conceito de apropriação desenvolvido por Roger Chartier. A abordagem que se estabelece advém do resultado de uma pesquisa concluída que teve como tema o estudo da trajetória de seis leitores rurais que leem cotidianamente, e não por profissão, mas por prazer e distração. O aporte teórico oferecido pelo sociólogo Bernard Lahire apresenta significativa contribuição ao propor uma análise à escala individual, na qual o social é abordado individualmente. A investigação da trajetória desses leitores permitiu perceber a relação estabelecida entre o meio rural e a leitura, além de esboçar uma imagem das práticas de leitura no mundo social. Nos textos lidos, os temas mais recorrentes apresentam uma aproximação com os esquemas da própria experiência dos atores, revelando apropriações ético-práticas da leitura.

PALAVRAS-CHAVE
história da leitura; sociologia da leitura; práticas de leitura; leitores rurais

RESUMEN

Este artículo discute cuestiones relativas a la práctica de la lectura de lectores asiduos vinculados al medio rural, en especial en relación a los sentidos que se atribuyen a la lectura, a partir del concepto de apropiación desarrollado por Roger Chartier. El abordaje que se establece proviene del resultado de una investigación concluida, que tuvo como tema el estudio de la trayectoria de seis lectores rurales que leen cotidianamente, de forma no profesional. El aporte teórico ofrecido por el sociólogo Bernard Lahire presenta uma significativa contribución al proponer un análisis de la escala individual, en el cual lo social es abordado particularmente. La investigación de la trayectoria de estos lectores permitió percibir la relación que establecen con el médio rural y la lectura, además de esbozar una imagen de las prácticas de lectura en el mundo social. En los textos leídos, los temas más recurrentes presentan una aproximación con los esquemas de la propia experiencia de los actores, revelando apropiaciones ético-prácticas de la lectura.

PALABRAS CLAVE
historia de la lectura; sociología de la lectura; prácticas de lectura; lectores rurales

ABSTRACT

This paper discusses issues related to assiduous readers in rural areas and their practices of reading, mainly regarding the meaning they attribute to reading, based on the concept of appropriation developed by Roger Chartier.This approach results from a previous research which investigated the progress of six rural readers whose daily reading is not connected to their occupations. The theoretical support based on the sociologist Bernard Lahire gives significant contribution since it proposes an analysis of the individual scale, in which the social aspect is addressed individually. The investigation of these readers' progress enabled not only the relation they establish between the rural area and reading to be perceived but also an image of reading practices in the social world to be outlined. In the texts they read, the most common themes show there is an approximation to the schemes of the actors' own experience, a fact that reveals ethical-practical appropriation of reading.

KEYWORDS
history of reading; reading sociology; reading practices; rural readers

INTRODUÇÃO

A dinâmica social contemporânea intensificou e ampliou a circulação da cultura escrita no meio urbano, local onde a relação com a escrita ocorre em diversos níveis e a leitura passa por múltiplas formas. Como afirma Viñao Frago (1999)Viñao Frago, A. Leer y escribir: história de dos prácticas culturales. México: Fundación Educación Voces e Vuelos, 1999., "la escritura nació en el médio urbano", sendo esse o espaço das relações sociais intermediadas pela escrita. Diante dessa relação consagrada entre a cultura escrita1 1 Conforme Brito (2005, p. 15), "cultura escrita é, de todos os termos, o mais amplo e que procura caracterizar um modo de organização social cuja base é a escrita". e o urbano, o rural, por sua vez, carrega a representação da inexistência ou da rarefação do escrito. Neste texto, no entanto, serão abordadas algumas questões relativas à prática de leitura de leitores assíduos2 2 Caracterizam-se como leitores assíduos aqueles indivíduos que leem constantemente e intensamente, com o intuito de instruírem-se ou pelo prazer de ler. vinculados ao meio rural, especialmente em relação à apropriação das leituras que realizam. A abordagem que se estabelece advém do resultado de uma pesquisa concluída que teve como tema o estudo da trajetória de seis leitores rurais que possuem pouca escolarização, têm mais de 70 anos de idade e leem cotidianamente, de forma não profissional. Os pressupostos teóricos que nortearam a análise estão vinculados à história da leitura e aos conceitos da sociologia da leitura e da cultura. Entre outros, a análise da trajetória individual desses leitores possibilitou dar visibilidade às práticas de leitura existentes no meio rural, esboçando uma imagem da leitura no mundo social.

Para Darnton (1995)Darnton, R. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo, Companhia das Letras, 1995., o estágio do circuito do livro que oferece maiores dificuldades de estudo é o das práticas de leitura, pois definir como os leitores assimilam seus livros exige uma análise profunda que contemple desde a trajetória sócio-histórica dos leitores às especificidades das práticas de leitura. Contudo, entende-se que as novas possibilidades de estudo, que correspondem às novas correntes teórico-metodológicas do fazer histórico, têm possibilitado tais investigações ao oferecer um suporte teórico no qual o indivíduo ganha espaço e representatividade como sujeito único, porém, vinculado a um determinado grupo social. Nesse sentido, o aporte teórico oferecido pelo sociólogo Bernard Lahire (2002Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002., 2004a______. Retratos sociológicos. Porto Alegre: Artmed, 2004a., 2005______. Patrimônios individuais de disposições: para uma sociologia à escala individual. Sociologia, Problemas e Práticas, Lisboa: Editora Mundos Sociais, n. 49, p. 11-42, 2005.) apresenta contribuições significativas ao propor investigações relacionadas a uma sociologia em escala individual, na qual o social é abordado individualmente.

Assim, seis indivíduos que residem em municípios da região Sul do estado do Rio Grande do Sul compõem o quadro de depoentes, quatro homens e duas mulheres, sendo eles: Antonio, Nei, Henrique, Ismael, Ondina e Tecla.3 3 Optou-se por utilizar apenas o primeiro nome dos atores e não divulgar o local de residência, de modo que suas identidades fossem preservadas. Os leitores em evidência nasceram entre os anos de 1916 e 1936, tendo cursado de três a cinco anos a escola primária, com exceção de Ismael, que não frequentou a escola formal,e de Nei, que cursou até o secundário. Todos são oriundos de famílias de agricultores, descendentes de imigrantes europeus, cuja vida profissional foi exercida em atividades rurais com mão de obra familiar e grande vínculo com o contexto rural.

Não se trata, portanto, de famílias abastadas e com alta escolarização. Como agricultores, esses atores não desenvolveram uma atividade de destaque social. Cabe também considerar que as distâncias geográficas características do meio rural tendem a dificultar o acesso a uma série de atividades culturais. Assim, se fossem elencados somente herança familiar e educação escolar como elementos determinantes para a formação das práticas socioculturais, seria difícil considerar e entendera formação da disposição (cf. Lahire, 2002Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.) para a leitura desses seis atores. Chartier (2002)______. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. auxilia na compreensão dessas situações quando afirma ser fundamental que os estudos ocupem-se de reconstruir situações particulares, desprendendo-se do olhar único para as estruturas que regulam as relações sociais, sendo imprescindível considerar em suas formas sociais "as racionalidades e as estratégias executadas pelas comunidades, parentelas, famílias, indivíduos" (idem, p. 84).

Nesta análise, o indivíduo leitor é investigado pelo social em sua forma incorporada, ou seja, o social dobrado (Lahire, 2002Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.). Assim, ao considerar que as disposições interiorizadas são resultado de socializações passadas, o indivíduo é resultado da realidade social desdobrada. Ainda para Lahire (idem), apreender essa realidade social é algo bastante complexo, sendo necessária uma série de informações que precisam ser comparadas. Para tanto, a análise deve ocorrer no sentido vertical, ou seja, no cruzamento de diversos dados que correspondam à trajetória de um mesmo indivíduo. Neste estudo, as fontes orais apresentaram-se como o principal aporte metodológico para a coleta de dados. Foram realizadas trinta entrevistas com os seis atores, definidas como entrevistas em profundidade, ou seja, longos depoimentos nos quais os leitores falavam livremente sobre sua trajetória de vida e sobre a relação estabelecida com a leitura. Além das entrevistas, outros documentos somaram-se aos materiais empíricos, tais como o registrado de notas de campo (Bogdan; Biklen, 1994Bogdan, C. R.; Biklen, S. K. Investigação qualitativa em educação. Portugal: Porto, 1994.), o registro do acervo particular dos depoentes,entre outros documentos pessoais disponibilizados.

O caráter biográfico das entrevistas permitiu constatar que os seis leitores vivenciaram transformações e acontecimentos sociais, econômicos, políticos e culturais de âmbito nacional e internacional que, de alguma forma, atingiram suas vidas de modo particular. Os episódios que envolveram o Brasil na Segunda Guerra Mundial, a migração de alemães para o Sul do Brasil, as políticas de governo, entre outros, são fatos históricos que atravessaram o século XX e que estão presentes na memória desses atores sociais. Por meio do trabalho de invenção de si mesmo, diante de um universo maior, esses indivíduos buscaram em suas narrativas localizar-se em um determinado contexto social e temporal.

APROPRIAÇÕES ÉTICO-PRÁTICAS DA LEITURA

A fim de analisar as apropriações que os leitores evidenciados fazem das leituras que realizam, são consideradas as disposições incorporadas por cada um dos indivíduos. Conforme Lahire (2002, p. 94)Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002., os leitores, ao se apropriarem de um texto, fazem trabalhar os esquemas de sua própria experiência, distinguindo-se entre si conforme o tipo de experiência social ao qual são sensíveis, sem restringi-las ao pertencimento sociocultural de cada grupo social. Dessa forma, o termo "apropriação", no sentido apresentado por Chartier (2002)______. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002., será empregado nesta análise na perspectiva da escala individual, considerando-se as variáveis que compreendem as diferentes trajetórias individuais.

Chartier aproxima-se dos estudos de Michel de Certeau ao conceituar o termo "apropriação" compreendendo-o como a pluralidade de usos e a diversidade de interpretações empregadas ao texto lido, contudo atreladas ao processo sócio-histórico vivenciado pelos leitores. Isso ocorre porque, conforme alerta Chartier (2001, p.116)______. Cultura escrita, literatura e história.Porto Alegre: Artmed, 2001., "devemos ver que cada apropriação tem seus recursos e suas práticas, e que uns e outras dependem da identidade sócio-histórica de cada comunidade e de cada leitor". Nesse sentido, as abordagens centradas na distribuição desigual dos objetos, como sendo o principal critério da hierarquia cultural, são superadas, e as investigações voltam-se para o emprego diversificado de usos e significações de um mesmo bem, ou seja, caracterizando "práticas que se apropriam de modo diferente dos materiais que circulam em determinada sociedade" (Chartier, 1990Chartier, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: DIFEL, 1990., p. 136).

Assim, o autor recusa a relação direta que se estabelece entre hábitos culturais e recorte social, propondo a inversão do olhar para o uso, por vezes contrastante, dos mesmos objetos nos diferentes espaços sociais. Contudo, Chartier (idem), ao compreender que a identidade sócio-histórica do indivíduo influencia o processo de apropriação da leitura, refere-se ao conceito de habitus de Pierre Bourdieu apontando para os usos partilhados no grupo social. O autor afirma:

[...] que as práticas contrastantes devem ser entendidas como concorrências, que as suas diferenças são organizadas pelas estratégias de distinção ou de imitação e que os empregos diversos dos mesmos bens culturais se enraízam nas disposições do habitus de cada grupo. (idem, p. 137)

Partindo dos mesmos pressupostos, considera-se que os leitores evidenciados apropriam-se dos textos a partir de suas disposições incorporadas, disposições estas que lhes permitem pensar, atuar e interpretar. Desse modo, não se tomam como análise inicial as disposições de habitus mais frequentes em cada grupo social, mas as disposições individuais. Conforme Lahire (2002, p. 94)Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002., os leitores, ao se apropriarem de um texto, fazem trabalhar os esquemas de sua própria experiência, distinguindo-se entre si conforme o tipo de experiência social ao qual são sensíveis, sem restringi-las ao pertencimento sociocultural de cada grupo social.

Ainda, Lahire (2002Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002., 2004b)______. (Coord.). Sociología de la lectura.Barcelona: Gedisa, 2004b., partindo da crítica estética, de Mikhail Bakhtin, e da sociologia da produção e do consumo cultural, de Pierre Bourdieu, estabelece a oposição entre disposições estéticas e disposições ético-práticas de apropriação. O autor define como disposição estética a leitura em que "a forma artística (o estilo, a maneira, a representação...) seja privilegiada em relação ao conteúdo" (2002, p. 91),uma leitura caracterizada especialmente por leitores profissionais, críticos literários que colocam o estilo literário em primeiro lugar. Na disposição ético-prática, o conteúdo é sobreposto ao estilo, e o texto é ancorado não na realidade textual, mas em uma configuração prática. Com base em pesquisa empírica, Lahire (idem, p. 92) indica que a disposição ético-prática supõe:

[...] uma participação, uma identificação, uma ancoragem do texto nos elementos da experiência cotidiana passada ou presente. A ancoragem da leitura numa realidade diferente da realidade literária explicava o fato de que o tema, o assunto e os efeitos do real produzidos pelo estilo e/ou pelo contexto muitas vezes eram postos à frente do autor, do estilo, que nunca eram mencionados,quando se tratava de romances, das correntes literárias ou das editoras.

A oposição entre os modos de apropriação separa, assim, os leitores leigos dos leitores profissionais. Os leitores leigos, "exteriores às implicações do campo literário, simples consumidores e espectadores", embora possam eventualmente comparar autores ou correntes literárias, e os leitores profissionais enquanto "agentes tomados nas lutas de concorrência do campo (escritores, críticos, jornalistas culturais, etc.)" (idem, p. 93). Contudo, essa oposição em relação à apropriação não está atrelada a concepções que colocam em lados opostos os leitores populares e os leitores diplomados, assim como não está vinculada ao consumo cultural e aos efeitos de legitimidade cultural. A esse respeito o autor alerta:

Os leitores mais diplomados culturalmente fazem como nossos leitores dos meios populares: mergulham nas situações, identificam-se com os personagens, amam-nos ou detestam-nos, antecipam o que vai acontecer ou imaginam, sentem as emoções, riem ou choram ao ler romances... (idem, ibidem)

Portanto, os leitores leigos, diplomados ou populares, apropriam-se dos textos a partir de disposição ético-prática, com base em seus estoques de resumo de experiências incorporadas, estando a apropriação vinculada, como sugere Chartier (2002)______. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002., ao processo sócio-histórico vivenciado por cada leitor. Sendo assim, os leitores leigos diferenciam-se entre si, em relação ao uso dos textos, conforme as experiências sociais às quais foram submetidos, segundo as condições sociais, o itinerário escolar, familiar ou profissional. Tais aspectos definem o gosto por determinado assunto ou tema, contribuindo também para o sentido atribuído à leitura. Para Lahire (2002, p. 94)Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002., os temas que chamam a atenção do leitor estão vinculados à proximidade cultural ou social do assunto tratado no texto, pois possibilitam a participação ou a identificação com o que está sendo lido, "permitindo assim fazer trabalhar, de um modo imaginário, os esquemas de sua própria experiência". Contudo, para o autor, esse encontro não se estabelece de forma lógica e direta, ou seja, que necessariamente operários gostem dos romances que falam da condição operária, ou as mulheres, dos romances que falam das mulheres.

No caso dos leitores analisados, é possível perceber práticas de leitura nas quais predominam apropriações ético-práticas Em suas leituras, os temas mais recorrentes apresentam uma aproximação com os esquemas da própria experiência dos atores, especialmente os ligados ao passado vivenciado ou ouvido (por meio de histórias contadas pelos pais ou avós), que revelam formas singulares de apropriação do texto lido.

OS SENTIDOS ATRIBUÍDOS Á LEITURA NA EXPERIÊNCIA DE CADA LEITOR

Os atores em evidência, ao lerem, rememoram o passado por meio dos livros,conhecem outros lugares a partir de leituras relacionadas ao que lhes é conhecido,recriam, interpretam, vivem o momento de seus ciclos de vida diante das possibilidades que o "mundo da leitura" oferece. Para Goulemot (2001, p. 110)Goulemot, J. M. Da leitura como produção de sentidos. In: Chartier, R. (Org.). Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 107-116., a relação entre o leitor e a leitura é denominada como "fora-do-texto", resultado de uma história coletiva e pessoal. Do mesmo modo, para Certeau (1994, p. 264-265)Certeau, M. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1994., a leitura é criação e produção própria do leitor, que "não toma nem o lugar do autor nem um lugar de autor", sendo o leitor livre para inventar outras coisas que não exatamente aquilo que fora proposto, combinando fragmentos "cria algo não sabido no espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de significações". De maneira poética, Certeau descreve o leitor que se apropria do texto atribuindo-lhe sentido:

Longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos servos de antigamente, mas agora trabalhando no solo da linguagem, cavadores de poços e construtores de casas, os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-los. (idem, p. 269-270)

Logo, cada indivíduo dá um sentido mais ou menos singular ao texto lido a partir de suas referências individuais ou sociais, históricas ou existenciais. Assim, na abordagem que segue, a relação que esses seis leitores estabelecem com os textos, as impressões de leitura, as apropriações, as interpretações e os sentidos atribuídos aos textos serão observados, especialmente por meio do que eles "dizem" sobre suas leituras.

Inicialmente, serão abordados alguns exemplos da relação de Ismael com a leitura, que, a partir dos livros de história - locais e regionais -, busca conhecer a trajetória familiar e "confirmar" as histórias contadas por seu pai. Entre os temas mais narrados por Ismael estão os acontecimentos que envolveram o estado do Rio Grande do Sul durante o período da Primeira República (1889-1930). Em suas narrativas, os episódios vivenciados pela família e as leituras realizadas sobre esses acontecimentos foram entremeados, como se pode observar em suas palavras: "eu tirei aqui um xerox da República Velha, que foi um governo horroroso, eu sei porque me criei escutando o meu pai contar, o banditismo, o roubo, [...] é o que está aí [texto], a atuação dos coronéis, como é que funcionava". Por diversas vezes, Ismael localizou, durante suas falas, o sobrenome de sua família em textos impressos, reafirmando, assim, que os livros comprovam a oposição de sua família ao partido de Borges de Medeiros4 4 Borges de Medeiros era o principal líder do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Foi presidente do estado do Rio Grande do Sul entre os anos de 1898 a 1907 e de 1912 a 1927, alcançando então cinco mandatos, embora não sucessivos. Ao ser eleito pela quinta vez, teve início a chamada Revolução de 1923, quando se enfrentaram os correligionários de Assis Brasil, membros do Partido Federalista, naquele momento sob a bandeira da chamada Aliança Libertadora, e os representantes do PRR (Magalhães, M. O. História do Rio Grande do Sul. Pelotas: Armazém Literário, 2002). e as consequências da posição política assumida.

Conforme as palavras de Ismael, após 1930, o Brasil tornou-se mais democrático, mesmo diante de uma ditadura. Suas leituras contribuíram para reforçar seu posicionamento sobre o assunto: "eu me criei com meu pai sendo dos federalistas, e, quando Getúlio Vargas entrou, eles estavam sofrendo muita perseguição". Tais experiências familiares fazem com que Ismael posicione-se sempre favorável ao Governo Vargas, buscando confirmar suas vivências individuais por meio dos textos lidos, o que é evidenciado em suas palavras:

Um dia, uma moça que não tinha muita informação me disse: "O governo de Vargas foi muito bandido". Eu disse: "Tu é muito inteligente, mas nunca lesse nada sobre Vargas!". Ela ficou me olhando! Vargas foi ditador durante quinze anos e foi deposto. Eu tinha 8 anos quando ele entrou, e, quando saiu, eu tinha23 anos. Ele não perdeu os direitos porque foi deposto no dia 29 de outubro; e trinta e dois dias depois teve as eleições, dia 2 de dezembro de 45. Foi a primeira eleição depois de Getúlio; eu estava servindo em Quaraí, foi um pleito medonho. Ele apoiou o general Dutra, que ganhou com grande margem de voto, e ele foi eleito senador pelo Rio Grande do Sul e deputado por São Paulo e mais sete estados. Então eu disse pra essa guria: "Tu leva esse livro e tu vai ver uma coisa que eu me criei vendo".

O livro ao qual se referia denomina-se Memórias sobre Getúlio, de Queiroz Junior, editado em 1957, que certamente enaltece a figura desse presidente. As narrativas de Ismael são carregadas de detalhes, como são as histórias vividas e sentidas. No relato anterior, observa-se que a idade que ele tinha quando Vargas assumiu e concluiu o mandato, o local em que estava e o que fazia no momento das eleições são fatos pessoais que foram entrelaçados à história nacional e de igual forma vinculados aos sentidos atribuídos ao texto lido.

Em outra situação, ao falar sobre o livro Getúlio Vargas e o seu tempo: um retrato com luz e sombra, de Fernando Jorge, editado em 1985, Ismael fez a pergunta que tinha a intenção de responder: "Por que luz e sombra?". Então, afirmou que "a luz" do Governo Vargas está relacionada a um governo que foi o pai das leis trabalhistas, o grande amigo do operário, o criador da siderurgia, entre outras tantas obras e adjetivos atribuídos a Vargas. Após a leitura, Ismael sorriu e disse: "Assim se explica o título desta obra, o retrato de luz e sombra, a luz da virtude de Getúlio e a sombra de seus pecados e suas imperfeições". No entanto, quando questionado sobre alguma passagem do livro referente às "sombras" desse governo, imediatamente respondeu:

Não, o negócio do Getúlio é o seguinte, ficaram muitos contra ele porque ele prendeu muitos por causa da ditadura, quem era contra a lei da nação. Mas o único meio que ele conseguiu de terminar com o banditismo, terminar com a covardia e a desordem, foi com a ditadura. Eu mesmo tenho exemplo, tenho documentos até, do tempo do coronelismo, que era coisa horrorosa.

Reunindo argumentos e indicando a presença de documentos que comprovam o que ocorria antes de Getúlio, Ismael justificou as "sombras" necessárias do Governo Vargas, não indicando nenhum excerto do livro que retomasse a discussão. Portanto, percebe-se que nos sentidos atribuídos, e nas escolhas que se faz ao apropriar-se de um texto, "há uma história contemporânea, quase vivida, que trabalha o texto no processo de leitura" (cf. Goulemot, 2001Goulemot, J. M. Da leitura como produção de sentidos. In: Chartier, R. (Org.). Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 107-116., p. 111).

Em outro momento, questionado sobre o período da ditadura militar no Brasil, Ismael disse que não tinha muitas leituras sobre o assunto, mencionando apenas ser esse um "outro tempo". Contudo, durante uma das entrevistas, enquantofolheava um livro didático de história, referiu-se ao presidente Médici da seguinte maneira: "Aqui está o governo Médici [passa a ler]: 'o governo Médici foi o campeão do poder ditatorial e da violência repressiva contra a sociedade'". Sobre a frase lida,fez o seguinte comentário: "Foi um dos piores, mas ele foi violento na política, mas pro povo não foi assim, mas na política foi mão de ferro". Observa-se que, independentemente do que tenha lido, o sentido atribuído à frase procura confirmar sua percepção favorável ao governo militar do presidente Médici diante da justificativa que difere violência política e violência contra o povo.

Antonio, assim como Ismael, em suas leituras, coloca em evidência especialmente as histórias de sua experiência da vida. Ao referir-se aos livros, toma-os como representantes do "saber", como o lugar em que encontra o que a pouca escolarização não lhe ofereceu: "Eu faço muita pesquisa nos livros, pra saber o que aconteceu". A leitura enquanto meio de acesso ao saber também foi observada na pesquisa realizada por Petit (2008, p. 61)Petit, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Editora 34, 2008. no contexto francês: "quando entrevistamos a população rural, esse também era um tema que surgia com frequência: 'os livros são o saber, são o que eu gostaria de saber'". Com comportamento discreto, Antonio não demonstrava muita disposição em falar sobre o conhecimento adquirido por meio de suas leituras. Quando questionado sobre determinada obra, logo vinha a oferta: "Se tu quiseres, eu te empresto o livro". Os temas que o motivam e o sensibilizam à prática da leitura são aqueles relacionados à história local, à origem de sua família e aos acontecimentos que envolveram a etnia alemã.

A história do pequeno município em que reside está entre suas predileções de leitura. Em posse do livro Canguçu: reencontro com a história, de Claudio Moreira Bento, editado em 2007, fez a seguinte consideração: "Aqui tá escrito Estrada dos Foges [passa a ler]: 'Mas onde fica? Não se sabe onde era a Estrada dos Foges'. Ora, eu sei onde é! [...] Eu gostaria de falar com esse autor e dizer pra ele onde fica essa estrada, eu sei onde é". Na relação estabelecida com os livros, a história local, vivenciada e observada, é constantemente relacionada às leituras, servindo de motivação e demarcando os usos e interpretações que faz dos livros.

Em relação ao livro Os saxões, da coleção Povos do passado,de Tony D. Triggs, Antonio afirmou: "Meu avô sempre dizia, me respeitem, eu sou saxão [riso]". A origem étnica também motivou Antonio a buscar nos livros fatos relacionados à Alemanha e aos imigrantes alemães e seus descendentes. Para tanto,com uma prática de leitura investigativa, cruza dados e produz informações, organizando inclusive a árvore genealógica da família, identificando sobrenomes nos livros lidos, lendo documentos e ouvindo familiares.

Em 1940, com 11 anos de idade, Antonio foi levado para a cidade de Porto Alegre, em uma viagem organizada pelo Governo Vargas, durante a Semana da Pátria, ocasião em que deveria, como disse, "aprender a ser brasileiro". Em 1942, órfão de pai, foi afastado da escola devido ao preconceito étnico sofrido pelos descendentes alemães. Tais vivências parecem ter contribuído para a maneira cuidadosa com que Antonio refere-se a alguns acontecimentos históricos, a exemplo da perseguição aos descendentes alemães durante a Segunda Guerra Mundial, o governo de Getúlio Vargas e o Holocausto. Mesmo demonstrando realizar leituras sobre esses temas, durante as entrevistas procurou não se posicionar, tecendo apenas eventuais comentários.

Entre seus livros encontra-se a obra de Siegfried Castan, intitulado Holocausto: judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século, cujo conteúdo nega a existência do extermínio sistemático dos judeus pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Quando se referiu à obra, Antonio logo esclareceu que a comprou de um vendedor ambulante, uma vez que esse foi um livro proibido, cujo autor enfatiza que é preciso que cada um leia e tire suas próprias conclusões. Entretanto, em um segundo momento, Antonio afirmou: "Hitler não gostava dos judeus, porque parece que eles eram muito exploradores, não produziam e só queriam explorar. Mas o que diz neste livro é que essas mortes todas não, que isso não é gente, são bonecos" [referindo-se às imagens presentes no livro]. Mesmo que ele tenha uma opinião formada sobre o assunto, ao comentar a obra utiliza termos como "parece" e "o que diz neste livro é", o que, de alguma forma, isenta-o de emitir uma opinião mais definida sobre a versão defendida no livro, embora se perceba que ele não acredita que Hitler tenha provocado tantas mortes.

Para Goulemot (2001, p. 107)Goulemot, J. M. Da leitura como produção de sentidos. In: Chartier, R. (Org.). Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 107-116., não há leitura ingênua, "pré-cultural, longe de qualquer referência exterior a ela". A esse respeito, o autor ainda remete à noção de biblioteca, ou seja, memórias de leituras anteriores e dados culturais que produzem os sentidos atribuídos. Como afirma, "o sentido nasce, em grande parte, tanto desse exterior cultural quanto do próprio texto e é bastante certo que seja de sentidos já adquiridos que nasça o sentido a ser adquirido" (idem, p. 115). Por certo, Antonio, ao ler não apenas o livro Holocausto: judeu ou alemão?, mas ao ler de modo geral, utiliza concepções sociais e culturais já adquiridas em outras circunstâncias que trabalharão o texto e contribuirão na constituição dos sentidos, pois, ainda segundo Goulemot (idem), não há compreensão autônoma, imposta pelo livro lido.

Henrique, a exemplo de Antonio, ao referir-se às suas leituras, retoma uma série de acontecimentos, como o serviço militar, a convocação para retornar ao quartel durante a Segunda Guerra Mundial, a educação legada aos filhos e a pouca escolarização, como elementos que contribuem na construção dos sentidos atribuídos às leituras que realiza. Partidário de Getúlio Vargas e Leonel Brizola, os argumentos favoráveis a esses dois políticos estão ancorados especialmente em questões que envolvem sua vida particular, como se pode ver em sua fala: "Getúlio me defendeu naquela época, em 1940 eu tava servindo, dei baixa e fui convocado de volta. [...] eu fui me apresentar no último dia [...]. Getúlio deu última forma na expedicionária, não ia mais nenhum brasileiro prá lá".

No caso de Brizola, as necessidades da família foram supridas por uma das políticas econômicas desse governo. Segundo Henrique, sua esposa costurava todas as roupas da família à mão, com agulha e linha, e ele não tinha condições de comprar uma máquina de costura. Mas, quando Leonel Brizola foi governador do estado do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1959 e 1963, aumentou o preço da cebola, produto produzido por sua família, alterando sua situação financeira, como explicou: "Brizola entrou no governo e botou mil e cem o quilo de cebola, eu fiz mais de oito contos, paguei a dívida e me sobrou dinheiro. [...] Esta máquina que tá aqui ó, foi especial pra mim, foi o Brizola que me deu, porque com aquela cebola eu comprei essa máquina pra minha mulher". A foto de Getúlio Vargas e Leonel Brizola na parede da sala de sua casa é justificada da seguinte maneira: "Fiquei devendo obrigação pra esses dois políticos, Getúlio e Brizola. [...] não tenho como gratificar, deixo o retrato aqui pra me lembrar daqueles políticos que me defenderam". Esses são os aspectos que fazem parte do "estoque de experiências incorporadas" por Henrique, sendo diretamente vinculados aos sentidos que emprega aos textos que lê.

Com o livro Getúlio Vargas em mãos, de autoria de Ivar Hartmann, editado em 1984, Henrique falou sobre a importância da leitura: "Se não se lê, a escuridão ta pela frente. Esse livro é muito bom, [...] ele era um grande presidente, é exatamente o que está aqui, e não iam escrever o que não era". Mesmo procurando ressaltar a importância da leitura como meio de aquisição de conhecimento, muitas vezes demonstrou que sua intenção era a de confirmar seus posicionamentos por meio das leituras. Isso ficou evidente em suas próprias afirmações: "Lendo o que foi esse homem [Vargas] que a gente dá valor. Apesar de que ele fez coisas meio atrevidas, ele não era muito manso".As atitudes "atrevidas"de Vargas são justificáveis,segundo Henrique, que se manifesta em especial sobre duas questões: a deportação de Olga Benário e a perseguição aos imigrantes alemães durante a Segunda Guerra Mundial.

Em três das entrevistas realizadas, Henrique falou sobre a morte de GetúlioVargas, em alguns momentos mostrando-se inconformado com o resultado das leituras que fez; em outros, demonstrou-se convicto do assassinato do então presidente. Entre as afirmações, Henrique declarou:

'Olha, eu fico em dúvida, porque, pelo que eu já li e já ouvi, mataram ele. Mas a conclusão que eu faço do que eu li, a forma da administração que ele vinha trazendo, eu acho que mataram ele, ele não se matou. Porque os estrangeiros admiravam as ideias de Getúlio, ele tinha uma superioridade na mente, pela forma de administração e de conduzir a vida do povo, e isso foi inveja.

Como forma de confirmar sua suspeita em relação ao assassinato de Getúlio Vargas, Henrique utilizou uma leitura de ficção a fim de comprovar seus argumentos, demonstrando desconsiderar o estilo literário da obra. E afirmou: "Eu tenho este livro que explica quem foi que matou ele. O nome do cara que matou, como é que ele preparou o capanga pra matar ele [Getúlio]". Henrique refere-se à biografia de Dimitri Borja Korozec, criada por Jô Soares em O homem que matou Getúlio Vargas. As afirmações de Henrique, baseadas em uma obra literária de ficção, podem ser consideradas como um ato falho de suas leituras, quando, demonstrando-se nitidamente confuso e diante do desejo de confirmar o assassinato de Vargas, apropriou-sede uma obra de ficção considerando-a como um texto verídico. A esse respeito, Lahire (2002, p. 100)Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002. faz a seguinte consideração: "o esquecimento, o erro de leitura, o lapso, o extravio de um objeto, um desdém na ação... indicam amiúde que o ator é trabalhado, em tal situação social, por desejos, orientações, inclinações, injunções e esquemas de ação diferentes". Assim, o autor, apoiando-se na psicanálise, afirma que em quadros sociológicos singulares a ação de alguns leitores (especialmente para o caso dos textos literários) pode assemelhar-se a de um "sonhador desperto".

Contudo, ao se fazer uma análise do acervo particular de Henrique, percebe-se que onze de seus livros foram classificados na esfera histórica, enquanto treze pertencem à esfera literária. Assim, embora a maior parte dos livros pertença à esfera literária, para Henrique, as leituras que realiza são de história, visto ser esse o tema que o motiva a ler. Conforme Détrez (2004)Détrez, C. Una encuesta longitudinal sobre las prácticas de lectura de los adolescentes. In: Lahire, B. (Coord.). Sociología de la lectura. Barcelona: Gedisa, 2004., é compreensível que nem todos os leitores consigam entender as classificações de gênero estabelecidas por instituições como a escola. Os leitores podem utilizar critérios diversos para classificar suas leituras, alterando, inclusive, a noção tradicional de gêneros. Sendo assim, para a autora, a noção de gênero supõe que haja o domínio de um código, que normalmente está relacionado à trajetória escolar dos indivíduos. Ainda para Détrez (idem, p. 100), um romance pode ser definido como romance policial, de amor ou histórico,"según la experiencia personal de lectura, o el ámbito de la lectura (escuela, tiempo libre etc.), se puede asignar a un mismo título gêneros diferentes".

Nesse sentido, como afirma Certeau (1994, p. 269)Certeau, M. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1994., "o leitor é o produtor de jardins que miniaturizam e congregam um mundo". Henrique é um leitor inquieto, que recria e modela o texto lido a seu bel-prazer. Seus relatos estão repletos de interpretações que permitem perceber a relação que estabelece com a leitura, a exemplo do que afirmou: "tem uns livros aí que contam quem descobriu o Brasil: Pedro Álvares Cabral. Mas não foi, não foi Cabral, foi Colombo. Onde está o Brasil?Não tá dentro da América?". Observa-se que, no universo das práticas de leitura, a lógica das interpretações pode ir na contramão da história oficial e novas versões da história podem ser construídas.

A trajetória leitora de Nei apresenta vários aspectos distintos em relação à trajetória de Henrique. Entretanto, as histórias ouvidas oralmente e relacionadas aos temas lidos, entremeando cultura oral e cultura escrita, também estão presentes em suas apropriações. Todavia, ao analisar as práticas de leituras de Nei, é fundamental considerar seu envolvimento em diferentes espaços sociais, sua atuação como secretário do Centro de Tradições Gaúchas, membro da Academia Canguçuense de História, mesário em processos eleitorais e candidato a vereador, práticas que o aproximavam da cultura escrita. Ao relatar suas práticas de leitura, Nei falava de aquisição de conhecimento, de diferentes culturas, de "outros lugares", mas também do "seu lugar", da sua história e de suas vivências.

Nei conviveu com a cultura escrita desde a infância, mesmo antes de ir à escola aprendeu a ler no jornal que seu pai assinava. Contudo, ao falar de seu gosto pelas leituras históricas, dizia serem as histórias que o avô materno contava oralmente sua principal motivação: "Meu avô tinha uma facilidade pra descrever, pra fazer um histórico de qualquer acontecimento, eu ouvia muito suas histórias". De várias maneiras, as histórias ouvidas e vividas em família cruzaram-se com as histórias lidas; como exemplo, pode-se observar seus longos relatos sobre o conto "O mate do João Cardoso", história que leu e ouviu por muitas vezes, segundo afirmou. Ao referir-se a esse conto, que compõe a obra Contos gauchescos, de João Simões Lopes Neto, dizia conhecer bem a história do personagem principal, antes mesmo de vê-la nas páginas do livro: "Eu acho que li todas as obras de João Simões Lopes Neto, agora, essa história meu avô cansou de contar".

Ao narrar os acontecimentos que envolveram a figura de João Cardoso, personagem do conto, Nei tinha a preocupação de sempre reafirmar que as histórias que ele conheceu oralmente eram verídicas, assim como o texto de João Simões Lopes Neto. Para ele, a veracidade da história podia ser comprovada por meio de uma carta escrita pelo irmão de João Cardoso para seu avô materno: "Realmente João Cardoso existiu, era primo da minha mãe, meu tio segundo, e eu, para provar, eu tenho a carta do irmão dele". Nesse caso, como orienta Lahire (2002, p. 98)Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002., o texto e as experiências vividas estão fortemente imbricados: "o 'mundo dos textos' está tão intimamente misturado com as experiências do leitor que este, às vezes, pode não conseguir distinguir, como observa Maurice Halbwachs, uma lembrança pessoal de uma cena literária análoga".

Em uma das entrevistas realizadas, Nei estava concluindo a leitura do romance A casa das sete mulheres, de Letícia Wierzchowski. Ao comentar a obra, buscando estabelecer, com base em suas vivências, contrapontos com o conteúdo lido, teceu críticas à minissérie exibida pela Rede Globo, em 2003, baseada nesse livro. Conforme Nei: "a parte romântica é até meio fraca, mas esse livro se passa todo em um ambiente original". No entanto, "a série não tem nada de original, quem lê esse livro e viu a minissérie vai ver a diferença". Uma das críticas tecidas à minissérie foi em relação às questões geográficas. Segundo ele, a história verídica ocorre nas estâncias da região de Camaquã, um local de planícies, conforme está no romance: "Eu passei uma vez por lá, é um lugar muito lindo, aqueles casarões bem no alto e muito deserto, eu acho que a minissérie seria mais autêntica se fosse lá".Reafirmando a originalidade do romance baseado em suas experiências individuais,afirmou: "Eu tive uma noção dos costumes nas antigas estâncias, o meu pai e meus avôs eram desse ramo, e eu vi, e meu avô contava, como era a vida naqueles tempos.E por isso que eu afirmo que o ambiente contido neste livro é muito original". Novamente as histórias ouvidas do avô são tomadas como referência na interpretação da leitura realizada.

Nei, em suas falas, demonstrava possuir facilidade em distinguir os diferentes gêneros de leitura, apropriando-se das histórias de ficção e, por vezes, comparando-as a acontecimentos verídicos, o que, de certo modo, caracteriza uma apropriação estética da obra lida. Contudo, como bem afirma Lahire (idem, p. 93), certamente não era o estilo literário que o ligava às histórias que lia, mas o tema abordado. Dessa forma, o fato de Nei referir-se ao estilo das obras pode estar atrelado a seu tempo de escolarização, sendo ele o leitor com maior formação escolar entre os indivíduos analisados.

No caso de Tecla, o que se percebe é uma leitura de obras literárias que, assim como sugere Petit (2008, p. 78)Petit, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Editora 34, 2008., dispõe-se a pensar a própria vida com o auxílio da ficção. Ela conviveu com a leitura desde a infância na casa paterna, sendo o pai e os irmãos permanentemente citados em suas memórias de leitura. Quando adulta, o casamento representou uma ruptura em sua vida, e a viuvez, um momento de reencontro, especialmente com a leitura, disposição que permaneceu em estado de vigília durante alguns anos. Esses acontecimentos marcaram a trajetória de Tecla e podem ser percebidos de forma subjetiva como balizadores de suas apropriações de leitura. Conforme seus relatos, o tema das leituras que realiza precisa corresponder ao seu desejo de conhecer outros lugares, de viver por meio da leitura outras experiências; suas leituras são, assim, vinculadas também ao desejo do conhecimento.

Entre os livros e revistas lidos, Tecla referiu-se à revista O Cruzeiro: "Ali eu conheci a Raquel de Queiroz, ela tinha uma página na revista, e eu gostava muito de ler ela. Porque eu gosto muito de saber de outras etnias, de outros costumes e outras coisas". Ao falar dessas "outras coisas" que conheceu por meio de livros e revistas, Tecla mencionou algumas obras, como O caçador de pipas, de Khaled Hosseini e O livreiro de Cabul, de Åsne Seierstad, dizendo: "Nesses livros conheci um pouco do Afeganistão e da história das mulheres". Entre outros, também citou Negras raízes, de Alex Haley, que aborda a história de um escravo levado para os Estados Unidos e as especificidades da vida no continente africano e da escravidão na América, com o qual, segundo Tecla: "dá para compreender a vida lá na África, que os homens só caçavam..., que os próprios negros mesmo vendiam os outros como escravos". Conforme Petit (idem), essa relação com os livros, esse viajar na leitura em busca de novas experiências são características próprias do ato de ler. Para a autora, ler é:

Conhecer a experiência de homens e mulheres, daqui ou de outros lugares, de nossa época ou de épocas passadas, transcritar em palavras que podem nos ensinar muito sobre nós mesmos, sobre certas regiões de nós mesmos que ainda não havíamos explorado, ou que não havíamos conseguido explorar. (idem, p. 94)

O "descobrir" as práticas culturais das sociedades orientais parece algo que a encanta de forma especial. Tecla por diversas vezes se referiu a curiosidades e questões singulares dessa cultura, a exemplo: "Tu sabes que, esses dias, lendo um livro eu descobri por que eles usam turbante no deserto! É por causa do sol". Em outra oportunidade, mencionou: "Eu perguntei à minha neta: 'Tu sabes qual a língua mais falada no mundo?'. Ela me disse: 'O inglês'. E eu disse: 'Não, é o mandarim'. Eu sei porque eu leio essas coisas".

Ao evidenciar práticas socioculturais diferentes, ou mesmo aspectos pontuais que envolvem outras sociedades, Tecla percebe-se ocupando um espaço diferenciado no mundo social que ultrapassa o "lugar" da esposa e mãe, que possui o quinto ano escolar, como ela mesma evidenciou: "Um amigo do meu filho disse: 'Mas a tua mãe é uma professora!'. Eu disse: 'Mas eu tive só até o quinto ano'. 'Ah! Mas não pode!'. 'É, é verdade'. Mas como a gente adquire conhecimento? Com base na leitura". Com base em uma leitura que permite "ir para outros lugares", abastecer-se de conhecimento e viver sob outra perspectiva, que talvez um dia tenha sido sonhada: "Na minha época a maioria das moças estudava para professora, mas eu não quis, nunca quis sair de casa". Essa é uma das apropriações de Tecla em relação aos textos literários que lê, uma leitura que objetiva viajar no enredo do texto e também adquirir conhecimento.

Ao comentar suas práticas de leitura, Tecla indicou os motivos que a fazem comprar ou gostar de um livro. Percebe-se que o tema da obra é, na maioria das vezes, o que mais influencia suas escolhas. Contudo, outros aspectos são evidenciados, como o autor, a indicação como best-seller ou mesmo a referência de uma leitura que era realizada por seu pai. Em relação aos autores dos livros que possui, observa-se que ela realiza certa distinção entre eles, apesar de não tecer comentário em relação ao estilo literário de cada um. Citou como bons autores Josué Guimarães, Eça de Queiroz e Moacyr Scliar. Em relação a Sidney Sheldon, disse:

Eu já li uns livros dele, aí tinha no Avon um livro que dizia Sidney Sheldon, mas não tinha nada de Sidney Sheldon. Tem uma sem-vergonha de uma escritora que coloca o nome dele e é ela que escreve. Porque ele já morreu, eu pensei que ele tinha escrito e não tinha terminado e ela terminou, mas não era.5 5 Tecla referia-se ao livro A senhora do jogo, de Tilly Bagshawe, autora que teria sido escolhida pelos herdeiros de Sidney Sheldon para continuar o seu legado. O livro A senhora do jogo daria sequência ao livro O reverso da medalha, de Sidney Sheldon. Mesmo não tendo sido escrito por Sidney Sheldon, o livro traz o seu nome em letras garrafais na capa. Disponível em: <http://www.livronochadascinco.com.br>. Acesso em: 10 jan. 2012.

Quando questionada sobre o estilo da autora do livro, se corresponde ao estilo literário de Sidney Sheldon, Tecla limitou-se a dizer que ela não é uma boa autora.

Tecla afirmou, ainda, que algumas vezes suas escolhas na compra de livros baseiam-se na relação das obras mais vendidas divulgada pela revista Veja. Contudo, é o enredo do livro que vai determinar sua opinião, como no caso do livro Crepúsculo, de Stephenie Meyer, sobre o qual concluiu: "Eu não achei nada nesse livro, e me dizem: 'Eu me apaixonei por ele'. É o mais vendido, mas para mim não tem nada!". Conforme observa Lahire (2002)Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002., o leitor apropria-se de um texto quando faz trabalhar os esquemas de sua própria experiência, o que certamente não ocorreu em relação à leitura de tal obra. Assim, ao ler, busca descortinar seus medos e suas dúvidas, visita outros espaços, outras culturas, conhece novas histórias, deleita-se nos enredos, nas tramas literárias que dão sentido a sua vida e lhe trazem conhecimento.

Diferentemente de Tecla, que apresenta uma prática extensiva de leitura, Ondina leu integralmente por cinco vezes a Bíblia, motivada especialmente pela crença na leitura como instrumento de fé e salvação. Assim, a Bíblia e alguns livros de oração e meditação são os materiais de sua preferência literária. A trajetória de Ondina foi marcada pela religiosidade da família, pela submissão à sogra após o casamento e pelas duplas jornadas de trabalho. A leitura intensiva da Bíblia começou após os 60 anos de idade, quando ficou impossibilitada de trabalhar diante de uma doença.

Para Chartier (2001, p. 113)______. Cultura escrita, literatura e história.Porto Alegre: Artmed, 2001., a leitura da Bíblia possui suas regras próprias: "leitura, releitura, conhecimento de memória, leitura compartilhada, articulação entre leitura em casa e a leitura da Bíblia no templo". As leituras de Ondina são caracterizadas por esses protocolos: leitura intensiva, muitas vezes com o intuito de memorizar. Contudo, a leitura compartilhada, indicada pelo autor, apresenta outra configuração no caso de Ondina, não como leitura em conjunto, mas como relato oral sobre a leitura realizada: "Eu falo pra eles da Bíblia, ele [marido] não gosta de ler, mas eu digo o que diz na Bíblia e o que ensina. Mas os netos já não escutam muito, mas eu sempre digo: 'Isso é preciso'". As práticas de leitura de Ondina confirmam, de algum modo, o que Chartier (1994, p. 99)______. A ordem dos livros. Brasília: Editora da UnB, 1994. aponta em relação aos textos religiosos ao referir-se ao século XVIII e à sociedade europeia: "os textos religiosos e em primeiro lugar a Bíblia, em países protestantes, são os alimentos privilegiados dessa leitura [intensiva] fortemente impregnada de sacralidade e autoridade". Nessa prática de leitura intensiva de textos religiosos, marcados pela sacralidade, pode-se questionar como se dá a apropriação da leitura.

Ao ler, Ondina projeta suas vivências no conteúdo de alguns textos da Bíblia ou, ainda, faz da leitura apenas uma forma de viver sua fé. Assim, a relação entre os sentidos atribuídos à leitura e os esquemas de experiências individuais são percebidos como uma característica de suas leituras. Quando questionada sobre qual o livro da Bíblia que mais gostava de ler, respondeu: "Jó e os Salmos, mas todos são bons". Segundo Ondina, Jó é um exemplo que deve ser seguido. Conforme suas palavras, "é um exemplo, porque tudo tá declarado lá, ele perdeu tudo e depois recuperou tudo, e nunca foi contra Deus. Então a gente também tem que ser assim, se a gente tá sentindo mal, tá fraco ou tá doente, ou falta algum dinheiro, a gente nunca pode dizer não, eu não posso mais". Ondina afirmou que já se viu na mesma situação de Jó e, mesmo diante das dificuldades, manteve sua fé. Assim, os temas dos textos que lê são transpostos para as situações vivenciadas no cotidiano, servindo de apoio e orientando suas atitudes.

Em relação ao livro de Gênesis, para Ondina, o principal ensinamento está relacionado ao respeito ao dia do descanso. A dupla jornada de trabalho, que após o casamento também era realizada aos finais de semana, foi algo bastante relatado em seus depoimentos. A esse respeito, disse: "Eu respeito aquilo do livro de Gênesis, pra que ler aquilo e depois não respeitar? Domingo Deus fez pra descansar, e depois os meus pais diziam: 'O que tu fizer no domingo, na segunda tu vai botá fora'. Então a gente bota aquilo tudo na cabeça e então aquilo nunca mais vai sair". Com essas palavras, Ondina deixou claro que, ao apropriar-se das leituras realizadas, revisitava ensinamentos e modos de ser e de viver. Assim, as orientações recebidas na casa dos pais, enquanto disposições que foram fortemente interiorizadas, serviram de base para a relação estabelecida com o texto bíblico.

Em vários momentos, Ondina deixou transparecer sua dificuldade em compreender os textos lidos, especialmente quando não era possível uma aproximação direta com suas experiências. O livro de Jó e os Salmos são os de sua maior preferência; por este, justifica sua predileção afirmando: "O melhor de ler é os Salmos, é mais fácil, se eu quero fazer uma oração assim, uma coisa rápida, eu leio Salmos". Por diversas vezes ela evidenciou uma prática de leitura intensiva cujo principal objetivo é o fortalecimento de sua fé. Assim, o ato de ler representa, especialmente, o contato com a palavra de Deus. No entanto, a compreensão de alguns textos parece ser limitada pela dificuldade de compreensão do conteúdo lido: "Eu tenho que ler umas quantas vezes e tenho que pensar sobre aquilo às vezes". A esse respeito ainda afirmou: "Se eu fosse mais nova, eu ia no estudo bíblico, mas é tudo muito longe na colônia, eu sozinha não posso ir. Eu me declaro sozinha [compreendo sozinha], mas no estudo bíblico o pastor ia me declarar mais ligeiro". Ondina, embora demonstre que a profunda compreensão dos textos bíblicos não seja o objetivo de suas leituras, lamentou o fato de nunca ter frequentado em sua comunidade religiosa os estudos bíblicos - reuniões, geralmente mediadas pelo pastor, destinadas não somente à leitura, mas ao estudo da Bíblia.

Quando questionada sobre os livros do Antigo Testamento, ou ainda sobre os acontecimentos bíblicos que lhe parecem mais significativos, Ondina não apresentou respostas objetivas, afirmando não ter boa memória e não saber explicar muito bem o conteúdo de suas leituras. Suas afirmações demonstram percepções normalmente difundidas e apreendidas por meio do convívio com a comunidade religiosa ou familiar, e não necessariamente adquiridas mediante a leitura bíblica. Dessa maneira, observa-se que sua prática de leitura é caracterizada pelo que se convencionou chamar de apropriação religiosa da Bíblia, uma leitura que não questiona, não critica e não duvida, na qual os sentidos atribuídos estão relacionados à devoção incondicional e a leitura apresenta-se enquanto ato de fé. Por diversas vezes, Ondina disse em seus depoimentos que lê motivada por sua fé, o que a faz aceitar com devoção o texto lido: "Eu leio pela fé, e respeito aquilo que tá escrito. O que que adianta se eu vou ler aquilo se não tenho fé, não adianta. Tem que ter fé no que se lê". O sentido atribuído a suas leituras diferencia-se daquele dos demais atores analisados, que estabelecem outra relação com os textos bíblicos.

Para Nei, por exemplo, que não costumava ler a Bíblia com frequência, esse é um livro que exige muito conhecimento: "Para ler uma Bíblia inteira, precisa ter muita persistência, porque é muito detalhado e são muitos termos próprios da religião". Já para Tecla, a dificuldade em compreender os textos faz com que não leia constantemente a Bíblia: "Não sou muito de ler a Bíblia, eu acho a Bíblia um livro muito difícil. E depois, uns interpretam de um jeito, outros de outro. Eu sempre achei a Bíblia muito complicada". Nei e Tecla demonstram dificuldades nessa leitura, pois buscam compreender o conteúdo apresentado, vislumbrando uma apropriação ético-prática dos textos.

O mesmo ocorre com Ismael, que disse ler a Bíblia esporadicamente, contando que sua esposa, muito religiosa, a lia todos os dias e que, quando ficou viúvo,passou a sentir-se no dever de realizar tal leitura. Contudo, não demonstrou motivação para tal prática e discordou de alguns textos: "Tá escrito na Bíblia que o pobre é a presa do rico. Agora veja só! [...] Quer dizer que o dinheiro termina com a honestidade, o pobre pode falar a verdade, com a razão, com tudo, mas chegou o outro com o dinheiro liquidou com a honestidade, liquidou com a verdade". Ao finalizar sua fala, Ismael disse que sua esposa costumava aceitar tudo o que lia na Bíblia, não sendo crítica como ele: "Ela era católica. Ah! tinha uma fé!". O que permite inferir que as leituras de sua esposa, assim como as de Ondina, eram baseadas na fé, podendo ser caracterizadas como apropriação religiosa da Bíblia.

No caso de Ondina, assim como nos demais casos, percebem-se práticas de leitura caracterizadas pela apropriação ético-prática, uma vez que coloca em evidência, em seus depoimentos, o conteúdo dos livros bíblicos que permitem uma aproximação com seus esquemas de experiência, a exemplo do livro de Jó. Contudo, Ondina, ao ler intensivamente a Bíblia, não parece buscar a compreensão do conteúdo lido, mas aproximar-se de Deus. Assim, os sentidos que atribui à leitura estão voltados a uma apropriação religiosa da Bíblia, que apresenta certa especificidade em relação às demais leituras de tal livro, diante da representação de que a leitura, por si só, seria uma maneira de estar junto a Deus, vivenciando a fé enquanto crença em uma força transcendental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os seis atores analisados revelam disposições ético-práticas ao realizarem suas leituras, nas quais se pressupõe uma participação, uma identificação com o texto, baseada na experiência cotidiana passada ou presente do leitor (cf. Lahire, 2002Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002., p. 92). Assim, observam-se singularidades que permitem afirmar que cada indivíduo apropria-se de modo particular dos textos que lê, valendo-se de suas experiências individuais no meio social, mesmo quando se trata de um grupo com igual origem social, com pequena variação em relação à escolaridade, idade e meios de socialização. Nesse sentido, a prática de leitura desses atores ratifica o que afirma Chartier (2001, p. 116)______. Cultura escrita, literatura e história.Porto Alegre: Artmed, 2001. ao considerar que cada apropriação apresenta seus recursos e suas práticas que estão vinculadas à identidade sócio-histórica de cada leitor.

Lahire (2002, p. 95)Lahire, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002. afirma que, além da capacidade linguística, o ato de ler depende também dos estoques de esquemas incorporados por meio de experiências sociais vivenciadas. Esses dois aspectos podem, de algum modo, limitar a compreensão e, assim, o acesso ao texto. Ainda, para o autor, esses obstáculos combinam-se, mas não sistematicamente, sendo a principal dificuldade percebida no caso dos leitores menos escolarizados. Em relação aos leitores analisados neste estudo, é possível perceber a interferência desses fatores diante da aparente mobilidade ou dos limites de alguns deles conforme comentários realizados sobre suas leituras. Tecla e Nei demonstraram uma prática de leitura na qual os aspectos estéticos são colocados em evidência ao reconhecerem o valor cultural de algumas obras literárias, ou mesmo ao desprezarem alguns autores e reconhecerem a importância de outros. Nei, por exemplo, afirmou que no período escolar leu os "grandes romances de Alexandre Dumas" e, ao mesmo tempo, disse que não leria Jô Soares, pois "nem como humorista ele é bom". Para Lahire (idem, p. 93), a leitura estritamente estética não é ausente do discurso dos leitores leigos, de modo que estes podem evocar o "belo estilo" ou a "bela escrita", "mas certamente não é isto que os prende e os liga nas histórias que leem".

Nesse sentido, a análise das narrativas desses dois leitores - Tecla e Nei - demonstra uma prática de leitura não ausente de especificidade, mas que permite aproximação em alguns aspectos, uma vez que em seus relatos questões estéticas da obra foram consideradas, mesmo ao realizarem uma apropriação ético-prática da leitura. Ambos os leitores, ao falar sobre suas leituras, demonstraram relativa facilidade em descrever de forma sintética o conteúdo lido, realizando considerações sobre o conjunto da obra e procurando, por vezes, ampliar seus conhecimentos gerais por meio da leitura.

Entre os casos analisados, Nei é o leitor que possui o maior tempo de escolaridade, tendo até mesmo saído da casa dos pais para estudar. Tecla frequentou até o quinto ano primário, mas é a leitora que conviveu por maior tempo em outros espaços de socialização. Casou-se depois de 30 anos de idade e passou a morar na sede urbana de municípios do interior, o que lhe possibilitou novas relações sociais que certamente lhe permitiram outras experiências de socialização, as quais mais tarde foram incorporadas à sua prática de leitura, como o hábito de frequentar a biblioteca pública do município em que reside. Nei também frequentou espaços de grande circulação da cultura escrita, como a Academia Canguçuense de História, tendo atuado também por longo tempo como secretário do Centro de Tradições Gaúchas da localidade onde residia. Tais aspectos demonstram que tanto a escolaridade quanto as relações sociais responsáveis pelas disposições incorporadas revelam modos específicos de apropriações dos textos, o que permite aos leitores maior controle sobre o que leem.

No caso de Henrique, Ismael e Antonio, é plausível também certa aproximação em relação a suas práticas de leitura. Esses leitores demonstraram relativa dificuldade em comentar de maneira sintética o conteúdo de suas leituras, realizando comentários que privilegiavam algumas passagens do texto em detrimento de outras por vezes desvinculadas do principal tema da obra. Ainda, a relação estabelecida entre suas histórias de vida e o tema abordado nos textos parece ser o principal e, ocasionalmente, o único motivador de suas leituras. Assim, considera-se que a pouca experiência escolar dos três leitores, as escassas leituras de textos informativos, como jornais e revistas, e a ausência de práticas de socialização significativas, para além do contexto familiar, possam explicar a análise bastante restrita dos conteúdos das obras lidas. O mesmo também é percebido em relação às leituras de Ondina, guardadas as especificidades da prática de leitura religiosa que realiza. Sua leitura extensiva da Bíblia é caracterizada como apropriação religiosa da Bíblia por ser uma leitura em que os sentidos atribuídos estão relacionados à devoção incondicional, motivada pela fé que aceita sem restrições o texto lido.

Cabe ainda ressaltar que, nas leituras realizadas pelos pesquisados, os temas mais recorrentes apresentam uma aproximação com os esquemas da própria experiência dos atores, pois permitem trabalhar, de um modo imaginário, os esquemas de sua própria experiência (idem). Assim, de várias formas, as histórias ouvidas e vividas em família cruzaram-se com as histórias lidas, evidenciando uma circular idade entre o oral e o escrito, entre o que foi ouvido e o que foi lido, ou seja, não parece haver "prejuízo" da leitura em virtude das práticas orais. Ao contrário, em alguns casos as "histórias contadas" serviram de motivação para a prática da leitura. Sendo assim, considera-se que as experiências ouvidas, vividas ou mesmo lidas anteriormente estão diretamente relacionadas aos modos de apropriação dos textos. Goulemot (2001)Goulemot, J. M. Da leitura como produção de sentidos. In: Chartier, R. (Org.). Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 107-116., ao referir-se à noção de biblioteca, considera que seja da memória de leituras anteriores e dados culturais assimilados que nascem os sentidos atribuídos ao texto. Dessa forma, a análise dos depoimentos demonstrou que a apropriação da leitura está vinculada ao exterior cultural que trabalha o texto, a partir de um sistema de valores que constitui os sentidos que são atribuídos ao texto lido. Assim, tornou-se evidente a influência das experiências de socialização nos usos e apropriações da leitura entre os leitores analisados.

Considerando o que foi apresentado e problematizado ao longo deste texto, é necessário frisar que o trabalho em escala individual permite visualizar a variação das práticas e preferências em um mesmo grupo social. Ao analisar o perfil dos seis leitores, não se teve por objetivo realizar a generalização das práticas de leitura no meio rural, limitando a análise a um registro cultural único, mas, antes, dar visibilidade às práticas de leitura nesse contexto, observando as especificidades, as variações e as ambivalências de cada trajetória social. Por fim, pode-se afirmar que a leitura enquanto prática cultural é permeada por experiências sociais que intervêm nos modos e nas apropriações realizadas por cada indivíduo social, sendo uma prática criadora que possibilita a elaboração de uma identidade que ultrapassa os modelos preestabelecidos e que permite a construção de sentidos à própria existência.

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    Uma versão reduzida deste artigo foi apresentada na 36ª Reunião da ANPEd, em Goiânia.
  • 1
    Conforme Brito (2005, p. 15)Brito, L. P. L. Letramento e alfabetização. In: Faria, A. L.; Mello, S. A. O mundo da escrita no universo da pequena infância. Campinas: Autores Associados, 2005., "cultura escrita é, de todos os termos, o mais amplo e que procura caracterizar um modo de organização social cuja base é a escrita".
  • 2
    Caracterizam-se como leitores assíduos aqueles indivíduos que leem constantemente e intensamente, com o intuito de instruírem-se ou pelo prazer de ler.
  • 3
    Optou-se por utilizar apenas o primeiro nome dos atores e não divulgar o local de residência, de modo que suas identidades fossem preservadas.
  • 4
    Borges de Medeiros era o principal líder do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Foi presidente do estado do Rio Grande do Sul entre os anos de 1898 a 1907 e de 1912 a 1927, alcançando então cinco mandatos, embora não sucessivos. Ao ser eleito pela quinta vez, teve início a chamada Revolução de 1923, quando se enfrentaram os correligionários de Assis Brasil, membros do Partido Federalista, naquele momento sob a bandeira da chamada Aliança Libertadora, e os representantes do PRR (Magalhães, M. O. História do Rio Grande do Sul. Pelotas: Armazém Literário, 2002).
  • 5
    Tecla referia-se ao livro A senhora do jogo, de Tilly Bagshawe, autora que teria sido escolhida pelos herdeiros de Sidney Sheldon para continuar o seu legado. O livro A senhora do jogo daria sequência ao livro O reverso da medalha, de Sidney Sheldon. Mesmo não tendo sido escrito por Sidney Sheldon, o livro traz o seu nome em letras garrafais na capa. Disponível em: <http://www.livronochadascinco.com.br>. Acesso em: 10 jan. 2012.

Referências

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  • Brito, L. P. L. Letramento e alfabetização. In: Faria, A. L.; Mello, S. A. O mundo da escrita no universo da pequena infância Campinas: Autores Associados, 2005.
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  • Petit, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Editora 34, 2008.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    Nov 2013
  • Aceito
    Set 2014
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