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Escola de Pessoas Adultas de La Verneda e Sant-Martí: sonho e ciência em educação

Escuela de Adultos de La Verneda Sant-Martí: sueño y ciencia en la educación

RESUMO

Com base em um estudo de caso longitudinal, o artigo tem por objetivo analisar a dinâmica de aulas, o material de didático de apoio e os resultados de processo de alfabetização de pessoas adultas desenvolvido em uma escola espanhola freiriana que é referência mundial, tanto na educação de pessoas adultas, como nos processos participativos de educandos(as). Os dados foram analisados por meio das técnicas da Análise de Conteúdo e da Metodologia Comunicativa, tendo como aporte teórico os estudos da aprendizagem dialógica. As pesquisadoras concluem que os processos realizados pela escola promovem estratégias com potencial para maior engajamento dos(as) educandos(as) nas ações escolares, ampliação das aprendizagens e transformações sociais, em âmbito individual e coletivo-comunitário. A relevância da pesquisa está em apresentar processos dialógicos de aprendizagem e participação de maneira articulada, superando a contraposição que muitas vezes se faz entre sonho e ciência em educação.

Palavras-chave:
Aprendizagem-dialógica; Paulo Freire; Educação de Jovens e Adultos

RESUMEN

A partir de un estudio de caso longitudinal, el artículo pretende analizar la dinámica de las clases, el material didáctico de apoyo y los resultados del proceso de alfabetización de adultos desarrollado en una escuela freiriana española que es un referente mundial tanto en la educación de adultos como en los procesos participativos de los(as) alumnos(as). Los datos fueron analizados mediante las técnicas de Análisis de Contenido y Metodología Comunicativa, teniendo como base teórica los estudios de aprendizaje dialógico. Las investigadoras concluyen que los procesos llevados a cabo por la escuela promueven estrategias con potencial para un mayor compromiso de los(as) alumnos(as) en las acciones escolares, la ampliación de los aprendizajes y las transformaciones sociales, a nivel individual y colectivo-comunitario. La relevancia de la investigación radica en presentar procesos dialógicos de aprendizaje y participación de forma articulada, superando la oposición que a menudo se hace entre sueño y ciencia en la educación.

Palabras clave:
Aprendizaje Dialógico; Paulo Freire; Educación de Adultos

ABSTRACT

Based on a longitudinal case study, the article aims to analyze the dynamics of classes, the didactic support material and the results of the literacy process of adults developed in a Spanish Freirian school that is a world reference both in adult education and in the participatory processes of learners. The data was analysed through the techniques of content analysis and communicative methodology, having as a theoretical basis the studies of dialogical learning. The researchers conclude that the processes carried out by the school promote strategies with potential for greater engagement of the pupils in school actions, expansion of learning and social transformations, on an individual and collective-community level. The relevance of the research is in presenting dialogical processes of learning and participation in an articulated manner, overcoming the opposition that is often made between dream and science in education.

Keywords:
Dialogical Learning; Paulo Freire; Adult Education

INTRODUÇÃO

Durante muito tempo, vivenciamos em educação a implantação de vários projetos educacionais desenvolvidos em escolas, denominados até mesmo de projetos e/ou programas "inovadores", que não estavam vinculados à melhoria de resultado de aprendizagem. Segundo Aubert et al. (2016)AUBERT, Adriana; FLECHA, Ainhoa; GARCÍA, Carme; FLECHA, Ramón; RACIONERO, Sandra. Aprendizagem dialógica na sociedade da informação. São Carlos: EdUFSCar, 2016., era comum alguém introduzir alguma transformação em uma escola sem ao menos saber onde ela tinha sido implementada ou mesmo se havia alcançado bons resultados.

Isso nos remete ao fato de que, em pleno século XXI, com os avanços da Sociedade da Informação, principalmente no que tange à abertura de maior possibilidade de democratização das esferas da vida cotidiana, advinda da relevância de reflexividade e dos processos de diálogos entre as pessoas, podemos assegurar que contamos com recursos informativos que nos permitem estar em contato direto com a comunidade científica internacional e conhecer as pesquisas sociais e educacionais que atualmente oferecem um ponto de referência eficiente para o desenvolvimento de práticas que superam o fracasso escolar e melhoram o convívio escolar (Aubert et al., 2016AUBERT, Adriana; FLECHA, Ainhoa; GARCÍA, Carme; FLECHA, Ramón; RACIONERO, Sandra. Aprendizagem dialógica na sociedade da informação. São Carlos: EdUFSCar, 2016.).

Presentes neste contexto, podemos assegurar que a educação necessita de teorias que se orientem para a transformação e mudança social, tomando como eixo seu caráter dual, em que se reconhece, por um lado, a potencialidade da estrutura e do sistema como um todo e, por outro, a ação humana como transformadora do mundo.

As teorias sociais já têm demonstrado o caráter dual da ação: sistema e mundo da vida em Jürgen Habermas (2012)HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012., estrutura e agência humana em Anthony Giddens (1989)GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1989.; as concepções sistêmicas e estruturalistas apresentam dúvida por considerarem somente uma dessas dimensões (sistema-estrutura). Se a sociedade e a educação são somente consequência das estruturas, nada se pode fazer às pessoas e aos movimentos. Se também as relações intersubjetivas entre a gente (mundo da vida-agência humana) geram sociedade e educação, as atuações políticas e pedagógicas devem apresentar as orientações que desejam dar às transformações que inevitavelmente produzem (Flecha, 1997FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: el aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós, 1997.).

A passagem da superstição para a ciência em educação é fundamental, pois se alicerçarmos nossas atuações em teorias atuais e rigorosas, nossa prática terá efeitos positivos para a aprendizagem de todos os meninos e meninas. Entretanto, se atuarmos de acordo com a superstição, teremos muitas chances de nos equivocar e, portanto, reproduzir as desigualdades educacionais e sociais e aumentar a exclusão dos grupos mais vulneráveis (Aubert et al., 2016AUBERT, Adriana; FLECHA, Ainhoa; GARCÍA, Carme; FLECHA, Ramón; RACIONERO, Sandra. Aprendizagem dialógica na sociedade da informação. São Carlos: EdUFSCar, 2016.).

Tais inquietações guiam o presente texto na argumentação sobre a necessidade de a educação escolar estar pautada em teorias sociais que potencializem a transformação e a mudança social, como via de resposta às desigualdades sociais estabelecidas no atual contexto. Defendemos neste artigo que sonho e ciência são igualmente importantes e indissociáveis, conforme Freire já reconhecia (Freire, 2010FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho D’Água, 2010.).

Na atualidade desta reflexão, a obra Pedagogia dos sonhos possíveis, organizada por Ana Maria Freire, convida-nos — sobretudo a nós, professores e professoras, educadores e educadoras — a refletirmos e decidirmos e, ao fazê-lo, a agirmos permanentemente em busca da concretização dos sonhos possíveis, cuja natureza é tanto ética quanto política (Freire, 2001FREIRE, Ana Maria (org.). Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP, 2001.).

Em Pedagogia do Oprimido, Freire (2005)FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. inaugurou esta discussão apoiado na criação do conceito de "inédito-viável". Falar desse conceito significa falar de práxis, ou seja, de uma palavra-ação sempre comprometida com a verdade, com a ciência, com a ética, com a esperança, com os sonhos, com as possibilidades humanas e, portanto, dos sonhos possíveis realizando-se. Assim, quanto mais inéditos-viáveis sonharmos e alcançarmos, mais marchas moveremos, pois se trata de sonhos coletivos que nos movem na busca do ser mais.

Da perspectiva freiriana, vemos com frequência textos e obras que vislumbram utopicamente um tipo de escola que seja humanizada e humanizadora, voltada para o desenvolvimento da criticidade e da autonomia das e dos estudantes. Algumas vezes, deparamo-nos com experiências nesse sentido, mas que são geralmente de curta duração. Encontrar inéditos-viáveis permanentes, portanto, como utopias realizáveis, é algo muito mais raro de ver e viver. Dessa forma, ao encontrarmos um desses casos — uma escola de pessoas jovens e adultas que teve início na década de 1970, por iniciativa de mulheres e homens, jovens e pessoas adultas analfabetas, em conjunto com educadores e educadoras compromissados com a melhoria real da vida daquelas pessoas —, entendemos ser importante apresentá-lo e discuti-lo como uma referência para gerar tantos outros espaços na mesma direção. A sustentabilidade da experiência (mais de 40 anos de existência bem-sucedida) torna o caso altamente relevante. Trata-se da Escola de Pessoas Adultas de La Verneda-Sant Martí, localizada em Barcelona, Espanha. Qual a história da escola? Como se dá seu funcionamento? Como se dá a prática pedagógica cotidiana que permite seu êxito e sua sustentabilidade? Essas foram as questões que guiaram a pesquisa aqui apresentada. Como objetivos, tivemos: descrever, analisar, caracterizar e categorizar as experiências vivenciadas na escola, com destaque às das aulas de alfabetização de pessoas adultas no que se refere às estratégias metodológicas, que têm como principal difusora um conjunto de livros didáticos elaborados por educadores/as e educandos/as de escolas de alfabetização de pessoas adultas de Barcelona, Espanha.

O ESTUDO DE CASO LONGITUDINAL

As autoras deste texto realizaram pesquisa qualitativa que envolveu análise documental, entrevistas e observação em perspectiva comunicativa (Gómez et al., 2006GÓMEZ, Jesus; LATORRE, Antonio; SÁNCHEZ, Montse; FLECHA, Ramón. Metodologia comunicativa crítica. Barcelona: El Roure, 2006.), no acompanhamento de práticas realizadas na Escola de Pessoas Adultas de La Verneda-Sant Martí, localizada em Barcelona, na Espanha. As inserções foram realizadas na escola no período de 2001 a 2019. A primeira pesquisadora esteve na escola nos anos de 2001 e 2002, realizando seu estágio de pós-doutorado, quando levantou os primeiros dados do estudo. Depois, em 2004 e 2007, respectivamente, outras duas autoras, em estágio de doutorado sob a orientação da primeira pesquisadora, fizeram inserção e pesquisa na mesma escola. Uma década depois, outras duas autoras tiveram o mesmo tipo de inserção na escola, uma em pós-doutorado (2018) e outra em doutorado (2019), igualmente sob a orientação da primeira pesquisadora.

Cada uma das pesquisadoras produziu diários de campo, mantendo o mesmo foco de observação. Mais recentemente, para a elaboração do artigo, os resultados dos diários foram por elas comparados, tomando-se como parâmetros principais os produzidos em 2001–2002 e em 2019, por serem os do início e do final do período analisado. Assim se configurou o estudo de caso (Yin, 2005YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2005.; Stake, 2013STAKE, Robert E. Estudos de caso em pesquisa e avaliação educacional. Educação e Seleção, n. 7, p. 5-14, 2013. Disponível em: http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/es/artigos/55.pdf. Acesso em: 28 jun. 2018.
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) longitudinal apresentado, sendo nele destacados aspectos da história de criação e funcionamento democrático e dialógico da escola, como lugar fomentado e que fomenta movimentos sociais e transformações do bairro.

Além do histórico e da dinâmica de funcionamento da escola, as autoras destacam no artigo os processos de alfabetização e a construção do material de suporte que apoia tais processos de aprendizagem na escola. Para a análise dos processos de alfabetização, utilizaram-se parâmetros de inferências que conduziram os temas dos diários de campo (Bogdan e Biklen, 1994BOGDAN, Robert C.; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto Editora, 1994.). Para o tratamento dos dados coletados, fez-se uso das técnicas da análise de conteúdo (Bardin, 2016BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.), que compõem um conjunto de técnicas de análise discursiva compiladas e sugeridas pela pesquisadora Laurence Bardin (2016)BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.. Selecionou-se o "tema" como unidade de análise. Franco (2007)FRANCO, Maria Laura P. B. Análise de conteúdo. 2. ed. Brasília: Liber Livro Editora, 2007. aponta o tema como uma das unidades mais úteis na análise de opiniões, valores ou crenças. Assim, ele é compreendido como o aspecto atribuído sobre aquilo que se escuta, vê ou sente, tendo componentes racionais, ideológicos, afetivos e emocionais (Franco, 2007FRANCO, Maria Laura P. B. Análise de conteúdo. 2. ed. Brasília: Liber Livro Editora, 2007.).

ESCOLA DE LA VERNEDA-SANT MARTÍ: UMA ESCOLA QUE SE ATREVE A SONHAR COM BASE EM CIÊNCIA

De acordo com Arouca (1999)AROUCA, Montse Sanchez. La Verneda-Sant Martí: una escuela donde las personas se atreben a soñar. Harvard Educational Review, Cambridge, v. 69, n. 3, p. 320-335, 1999. Tradução: IV Jornada de Escuela Moderna y Comunidads de Aprendizaje, mar/2017. Disponível em: https://escuelamoderna17.files.wordpress.com/2017/01/la-verneda-san-martc3ad-una-escuela-donde-las-personas-se-atreven-a-soc3b1ar.pdf. Acesso em: 27 abr. 2017.
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, esta história começa nos anos de 1970, com um pequeno grupo de moradores e moradoras de La Verneda-Sant Martí, um bairro da periferia de Barcelona, na Espanha, considerado antigamente como bairro "dormitório", com uma população à época com alto indicador de analfabetismo. Ainda assim, embora tivesse pouco acesso ao conhecimento acadêmico, a população local tinha vontade de promover melhorias e foi por meio de uma associação de moradores/as que se sonhou pela primeira vez com a formação de uma escola para pessoas adultas.

Para viabilizar esse sonho, as associações dos bairros locais foram decisivas. Com o tempo, foram unindo forças que culminaram na criação, em 1987, da Coordinadora d’Entitats de la Verneda-Sant Martí1 1 Coordenadoria das Entidades de La Verneda-Sant Martí. (VERN) — uma entidade "guarda-chuva" que coordena todas as associações e atividades (culturais, esportivas, educacionais, entre outras) da região de La Verneda.

Arouca (1999)AROUCA, Montse Sanchez. La Verneda-Sant Martí: una escuela donde las personas se atreben a soñar. Harvard Educational Review, Cambridge, v. 69, n. 3, p. 320-335, 1999. Tradução: IV Jornada de Escuela Moderna y Comunidads de Aprendizaje, mar/2017. Disponível em: https://escuelamoderna17.files.wordpress.com/2017/01/la-verneda-san-martc3ad-una-escuela-donde-las-personas-se-atreven-a-soc3b1ar.pdf. Acesso em: 27 abr. 2017.
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relata que, após a ditadura de Franco na Espanha, com a redemocratização desse país, em 1979, criou-se o Centro de Educación de Personas Adultas La Verneda-Sant Martí, tendo como bases das relações, desde a sua criação, as proposições e vivências do educador brasileiro Paulo Freire (1963FREIRE, Paulo. Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo. Recife: Comissão Nacional de Cultural Popular, Comissão Regional de Cultura Popular de Brasília, Serviço de Extensão Cultural, Universidade do Recife, 1963. Disponível em: https://nepegeo.paginas.ufsc.br/files/2018/11/Paulo-Freire-Conscientiza%C3%A7%C3%A3o-e-alfabetiza%C3%A7%C3%A3o-Uma-nova-vis%C3%A3o-do-processo.pdf. Acesso em: 12 maio 2020.
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; 1983FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.; 2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.; 2008FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2008.; 2014FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um encontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.) (Freire e Macedo, 2013FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.). Esse centro teve como um dos objetivos, desde o início, a alfabetização de adultos/as e, nesse sentido, experiências bem-sucedidas nesse âmbito são relatadas por educandos/as e educadores/as dessa escola (Arouca, 1999AROUCA, Montse Sanchez. La Verneda-Sant Martí: una escuela donde las personas se atreben a soñar. Harvard Educational Review, Cambridge, v. 69, n. 3, p. 320-335, 1999. Tradução: IV Jornada de Escuela Moderna y Comunidads de Aprendizaje, mar/2017. Disponível em: https://escuelamoderna17.files.wordpress.com/2017/01/la-verneda-san-martc3ad-una-escuela-donde-las-personas-se-atreven-a-soc3b1ar.pdf. Acesso em: 27 abr. 2017.
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).

Esse centro de educação foi a única escola espanhola destacada pela Harvard Educacional Review como experiência educacional de êxito (Aubert et al., 2016AUBERT, Adriana; FLECHA, Ainhoa; GARCÍA, Carme; FLECHA, Ramón; RACIONERO, Sandra. Aprendizagem dialógica na sociedade da informação. São Carlos: EdUFSCar, 2016.). A escola de adultos/as Sant Martí constituiu-se como a pioneira na implementação do programa de "Comunidades de Aprendizagem", que, segundo Marigo et al. (2010)MARIGO, Adriana Fernandes Coimbra; BRAGA, Fabiana Marini; CONSTANTINO, Francisca de Lima; MOREIRA, Raquel; MELLO, Roseli Rodrigues de; GIROTTO, Vanessa Cristina; GABASSA, Vanessa. Comunidades de Aprendizagem: compartilhando experiências em algumas escolas brasileiras. Políticas Educativas, Córdoba/Argentina, v. 3, n. 2, p. 74-89, 2010., surgiu com base nas experiências inovadoras da Comunidade de Pesquisa de Excelência para Todos/as (Community of Research on Excellence for All), da Universidade de Barcelona, Espanha, tendo como objetivo a transformação de contextos educativos por meio da colaboração entre os diferentes agentes sociais.

Quem conhece o projeto de "Comunidade de Aprendizagem" reconhece rapidamente no Centro de Educação de Pessoas Adultas de La Verneda-Sant Martí uma organização própria desse modelo educacional, que nasce de forma pioneira nessa escola. Esse centro foi sendo estruturado com uma proposta de uma escola igualitária, democrática, deliberativa, intercultural, mobilizadora de ações para a transformação social. Os princípios e práticas da escola surgiram por meio da ação e mobilização dos trabalhadores/as da Verneda e também de intelectuais catalãos/catalãs, que se uniram à luta dos moradores e moradoras do bairro da Verneda-Sant Martí para estruturar uma escola onde o conhecimento científico seria amplamente difundido a todas as pessoas, independentemente de sua classe social, condição financeira, gênero, etnia, cor, religião, orientação sexual, país de origem ou idade.

Rosa Valls, professora doutora da Universidade de Barcelona e professora voluntária da Escola de Adultos da Verneda, em visita ao Brasil em 2017, conta em aula aberta ofertada aos/às estudantes da Universidade Federal de São Carlos que um dos primeiros sonhos pensados para essa escola foi justamente o sonho de ofertar aulas de alfabetização para as pessoas adultas do bairro (Oliveira, 2017OLIVEIRA, Cristiane Fontes de. Centro de Educação de Pessoas Adultas La Verneda e Sant Martí. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2017. Notas de Aula.). Para isso, Valls conta que as primeiras pessoas que participaram da escola (incluindo ela própria) fizeram um mergulho teórico em toda a literatura sobre alfabetização de pessoas adultas da época, nacional e internacional — pois uma coisa já era certa desde o princípio, a necessidade de unir sonho e ciência. Assim, Valls e outros/as colaboradores/as da escola à época, como o Prof. Dr. Ramón Flecha, também docente da Universidade de Barcelona, chegam à pedagogia freiriana e a elegem como fundamento teórico e prático para estruturar didaticamente as aulas de alfabetização de pessoas adultas do Centro.

As primeiras aulas do curso de alfabetização, quando a escola ainda não tinha um prédio físico (mas tinha intenção e ação), aconteceram na rua, ao ar livre. Depois, ocupou-se um antigo prédio local desativado, onde, durante a ditadura franquista, funcionava a Sección Femenina del Movimiento e hoje é abrigado o Centro Cívico de Sant Martí de Provençals, um edifício com sete andares, entre os quais aquele onde funciona o Centro de Educação de Adultos (5° andar).

A partir de sua fundação, rapidamente, em poucos meses, a escola passou de 15 participantes (que mobilizaram e organizaram as primeiras ações no início) para mais de cem participantes e, em 2019, contava com mais de 1.600 participantes, com aproximadamente 90 educadores/as.

A escola é composta de duas associações, a "Ágora" (que em 2019 contava com mais de 400 pessoas) e a "Heura" (composta em 2019 por quase 1.400 participantes). A primeira é uma entidade aberta à participação de todas as pessoas (ou seja, qualquer pessoa da escola pode participar), e a segunda é uma entidade formada apenas por mulheres. As entidades possuem como objetivo favorecer a participação democrática na tomada de decisões administrativas e pedagógicas da escola para todos e todas (Escola d’Adults de la Verneda-Sant Martí, 2022ESCOLA D’ADULTS DE LA VERNEDA SANT MARTÍ. La Escuela. Disponível em: https://www.edaverneda.org/edaverneda8/es/node/10. Acesso em: 10 maio 2022.
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).

Para estruturar as comissões gestoras da escola, realizam-se reuniões semanais, reuniões mensais e assembleias (estas uma vez ao ano) e, em todos esses encontros, toda a comunidade escolar pode participar. Há, ainda, as comissões mistas, que se configuram como grupos de trabalho que discutem e também mobilizam os/as participantes da escola para ações sobre temas e/ou demandas específicas, como a comissão para a prevenção e resolução de conflitos, a comissão de prevenção de violências de gênero; a comissão de ações afirmativas, entre outras. A base da organização é o conceito de democracia deliberativa de Elster (2001)ELSTER, John. La democracia deliberativa. Barcelona: Gedisa Editorial, 2001.. Dessa forma, busca-se a promoção de relações democráticas deliberativas em diálogo igualitário, tentando criar consensos em todos as ações orientadas para a busca de entendimento. Assim, quando os/as participantes se colocam comprometidos com essas ações, mostram-se abertos também às críticas, podendo, por meio de argumentos, rever suas posições, refutar hipóteses e aprimorar suas propostas de intervenção no mundo. Isso só é possível por meio do diálogo intersubjetivo em que eles compartilham suas experiências e conhecimentos de mundo, desenvolvendo cada vez mais sua escuta respeitosa e sincera.

A Escola de Pessoas Adultas da Verneda, em 2019, funcionava de segunda a segunda, durante todo o dia (manhã, tarde e noite), com uma oferta de atividades educativas e culturais que iam desde aulas de alfabetização e preparação para avaliações de certificação do ensino fundamental e médio, preparação para ingresso no ensino superior, a cursos de informática e idiomas, além de promover eventos sociais, culturais e de lazer. Possuía um pequeno quadro de pessoas contratadas para diferentes funções, pagas com recursos recebidos por meio de parceria com a Prefeitura de Barcelona, mas da mesma forma como foi constituída, ou seja, por meio da ação de pessoas voluntárias, a escola continua a contar com a maior parte de educadores e outros/as colaboradores/as atuantes de forma voluntária (ou seja, a maior parte dos/as colaboradores/as não recebem remuneração para desenvolver atividades de ensino, administrativas ou operacionais). No curso de alfabetização, por exemplo, as três educadoras atuantes em 2019 eram voluntárias. A ação do voluntariado na escola não tem como objetivo substituir a atuação do/a professor/a graduado/a, mas sim somar esforços aos dele/a, ou mesmo atuar na impossibilidade do exercício de um/a educador/a especialista, pois considera a diversidade das interações enquanto êxito nas atividades de ensino-aprendizagem.

O lema da escola é: "uma escola onde as pessoas se atrevem a sonhar".

O DESENVOLVIMENTO DE BASES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS DA ESCOLA

Com estudo e vivência, as bases teóricas do trabalho em educação realizado pela Escola da Verneda foi se desenvolvendo por meio de um rigoroso estudo científico, não só sobre toda a literatura sobre educação de pessoas adultas, mas também sobre os/as principais autores/as e ideias pedagógicas dos campos da educação e das ciências humanas. Nesse sentido, o Prof. Dr. Ramón Flecha (1997)FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: el aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós, 1997., que fora professor de alfabetização de pessoas adultas na escola em seu início, criou o conceito de "aprendizagem dialógica" no final dos anos de 1990, conceito adotado desde então pela escola. Para caracterizar o conceito, Flecha (1997)FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: el aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós, 1997. o explica por meio de sete princípios: diálogo igualitário (todos/as devem ter espaço de voz e escuta respeitosa e fala sincera), inteligência cultural (conexão entre conhecimento teórico, experiência e contexto social), transformação (de contextos de desigualdades e opressão), dimensão instrumental (promoção da máxima aprendizagem dos saberes, desenvolvendo habilidades acadêmicas, práticas e comunicativas), criação de sentido (os sentidos devem ser criados na interação comunicativa coletiva, de forma democrática), solidariedade (ajuda mútua e coletiva como compromisso ético para a superação de desigualdades) e igualdade de diferenças (não é a igualdade homogeneizadora, que não atende às especificidades, nem a diversidade sem equidade; trata-se de valorizar as diferenças, com tratamento socialmente justo a todos/as) (Flecha, 1997FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: el aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós, 1997.; Elboj Saso et al., 2002ELBOJ, Carmen; PUIGDELLIVOL, Ignasi; SOLER, Marta; VALLS, Rosa. Comunidades de aprendizaje: transformar la educación. Barcelona: Graó, 2002.; Aubert et al., 2016AUBERT, Adriana; FLECHA, Ainhoa; GARCÍA, Carme; FLECHA, Ramón; RACIONERO, Sandra. Aprendizagem dialógica na sociedade da informação. São Carlos: EdUFSCar, 2016.). De acordo com Aubert et al. (2016AUBERT, Adriana; FLECHA, Ainhoa; GARCÍA, Carme; FLECHA, Ramón; RACIONERO, Sandra. Aprendizagem dialógica na sociedade da informação. São Carlos: EdUFSCar, 2016., p. 25):

Os conceitos e teorias que formam as bases da aprendizagem dialógica são coerentes com a atual sociedade da informação, com o multiculturalismo e com o giro dialógico das sociedades. Desde a pedagogia (Freire), a psicologia (o interacionismo simbólico de Mead ou a psicologia sócio-histórica de Vygotsky), a filosofia (Habermas), a economia (Sen), a sociologia (Beck) até a política (Chomsky), há uma convergência no sentido de salientar uma maior presença do diálogo em diferentes âmbitos da vida social e nas relações interpessoais. Essa é a principal característica da aprendizagem dialógica, a interação e a comunicação como fatores-chave do aprendizado.

Nos anos de 1990, o Community of Research on Excellence for All, da Universidade de Barcelona, cria as bases para a estruturação do projeto "Comunidades de Aprendizagem", que materializa os princípios da aprendizagem dialógica (Flecha, 1997FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: el aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós, 1997.), ajudando a Escola da Verneda a implantar esse modelo educacional hoje conhecido em todo o mundo. Atualmente, esse grupo conta com pesquisadores/as em mais de 70 países, incluindo-se o Brasil e outros países latino-americanos, desenvolvendo teoria e prática que têm ajudado milhares de crianças, jovens e pessoas adultas a, como indica Paulo Freire, "ser mais" (Freire, 2014FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um encontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.). Só no Brasil já foram mais de 800 escolas (Comunidades de Aprendizagem do Brasil, 2022COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM DO BRASIL. Quem faz parte. Dados disponíveis em: https://www.comunidadedeaprendizagem.com/quem-faz-parte. Acesso em: 17 maio 2022.
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) que puderam receber formação e implementar este projeto, e muitas outras escolas em outros países passaram ou ainda estão passando pelo processo de transformação — este sonho começou na Escola da Verneda.

A "Comunidade de Aprendizagem" tem sido responsável pela implementação, em escolas de todo o mundo, de um conjunto de "atuações educativas de êxito (AEE)", que são fundamentadas teoricamente nos autores e autoras que embasam a perspectiva da aprendizagem dialógica, e que são consideradas exitosas porque apresentaram bons indicadores de transformação de desigualdades (educacional, cultural, social) em diferentes contextos e, principalmente, com populações discentes em situação vulnerável (em âmbito social, econômico, cultural e educacional). Essas atuações foram descritas e validadas pelo projeto Includ-ed — Estratégias para Inclusão e Coesão Social na Europa a partir da Educação (2006–2011), que se constituiu em uma pesquisa de larga escala feita com orientação e supervisão da Comissão Europeia, que teve justamente como objetivo mapear atuações exitosas em escolas em oito países dos 14 envolvidos no estudo mais amplo.2 2 As AEE são: grupos interativos, tertúlias dialógicas, biblioteca tutorada, formação de familiares, participação educativa da comunidade, modelo dialógico de resolução de conflitos e formação pedagógica dialógica.

AS SALAS DE ALFABETIZAÇÃO

As aulas de alfabetização são oferecidas ao longo de todo o ano, de acordo com o calendário letivo do Centro. Não há data específica para a matrícula; a preocupação é a de acolher a qualquer época o/a participante que se dispõe a aprender a ler e escrever. Assim, as turmas são muito heterogêneas. O curso é gratuito e o/a participante ganha todo o material didático.

Outro fator relevante é que não há prazo, não há tempo limite para a permanência dos/as educandos/as nas turmas de alfabetização, nem mínimo, nem máximo. O tempo é o tempo dos/as participantes, dessa modo que o processo de alfabetização pode durar de três meses até quanto tempo for necessário. Quando promovidos/as, os/as participantes ingressam na turma/curso de "Neoleitores".3 3 A formação em nível fundamental no Centro é subdividida em três etapas: a inicial de alfabetização; a intermediária, a qual denominam de classe de "neoleitores"; e a final, denominada de "certificação", na qual ocorre uma preparação para que os/as participantes realizem a prova de certificação para a obtenção do título de escolarização de nível fundamental.

As aulas ocorrem de terça a quinta-feira, durante duas horas, havendo turmas no período da manhã e no final do dia (final de tarde e noite). De acordo ainda com um dos/as coordenadores/as do Centro, que foi entrevistado (aqui chamado de "José"), o tempo de duas horas foi pensado já tendo em vista a rotina mais comprometida das pessoas adultas, com trabalho, casa e filhos/as e/ou netos/as. Entretanto, os/as educandos/as são estimulados/as a estudar em suas casas e a frequentar outras aulas oferecidas pela escola (por exemplo, frequentemente se recomendam aos educandos e educandas imigrantes as aulas de castelhano e catalão, pois eles/elas nem sempre dominam com proficiência esses idiomas).

As aulas são ministradas por colaboradores/as, pessoas com ou sem formação pedagógica, que se dispõem a alfabetizar e, no caso da turma de alfabetização acompanhada por uma das autoras em 2019, o trabalho dos/as educadores/as era totalmente voluntário. Há sempre um/a educador/a principal, que conduz as aulas, e em cada turma há também mais um ou dois colaboradores/as para auxiliar; cada dia há um/a educador/a principal diferente. Durante o período observado em 2019, além de três educadores/as principais, pôde-se verificar a presença de três colaboradores/as auxiliares diferentes além da pesquisadora, que revezavam os dias de participação nas aulas (ou seja, apenas a colaboradora pesquisadora manteve a participação fixa no período).

Os/a educadores/as recebem um manual de orientação denominado de La Palavra, onde o método e os procedimentos metodológicos utilizados nas aulas são explicados. Eles/as recebem orientação sobre como trabalhar com o material e iniciam as atividades.

Tendo em vista o contexto delineado, o material didático foi elaborado já pensando na necessidade de que o/a participantes pudessem utilizá-lo de forma autônoma, afinal, nas aulas de alfabetização da Verneda, o/a educador/a não pode dar frequentemente orientações coletivas, ou seja, como cada educando/a está em uma etapa do processo de aprendizagem, as orientações e explicações são dadas quase que totalmente de forma individual. Os/as educadores/as principais e auxiliares vão se dispondo ao lado de cada participante na grande mesa retangular da sala de aula onde todos/as se acomodam e dedicando-lhe um tempo individual durante as aulas.

Com relação à condução didática, as aulas são iniciadas com as atividades individuais feitas por cada participante em seu material, com orientação individualizada dos/as colaboradores/as. Depois, um dado importante é que a leitura do/a educando/a para um/a colaborador/a faz parte das aulas como atividade diária e permanente, isto é, em todas as aulas os/as educadores/as ou auxiliares/as acompanham a leitura de cada um/a dos/as participantes, individualmente. A atividade de leitura é escolhida individualmente pelo/a educador/a principal ou auxiliar para cada educando/a, podendo ser de palavras e/ou frases do livro didático ou textos do livro de leitura. Os/as colaboradores/as — educadores/as principais ou auxiliares/as — devem ter sensibilidade para escolher textos de acordo com o nível de aprendizagem dos/as educandos/as, sem deixar que também se "acomodem" em algum dos níveis.

Existem mais duas atividades que ocorrem de forma permanente: o ditado e a realização de cálculos matemáticos (somas, subtrações e multiplicações). O ditado e os cálculos são as únicas atividades feitas de forma coletiva, com aqueles/as que já são capazes de acompanhá-los. Quem ainda não consegue observa e recebe auxílio individual posteriormente. Algumas sugestões de ditados constam no material do/a professor/a. Os cálculos são escritos na lousa pelo/a educador/a principal, preparados por ele/a próprio/a, já que não existe livro didático ou material específico de matemática.

A avaliação ocorre, em geral, trimestralmente (ou antes, quando o/a educando/a já demonstra potencial para ser "promovido/a"). O/a educador/a principal faz uma avaliação do processo individual de aprendizagem de cada educando/a, apontando se ele ou ela já domina os conhecimentos necessários para passar para a próxima turma, a de "neoleitores". Essa avaliação é compartilhada posteriormente com o/a participante, o/a qual é chamado a se autoavaliar também. Assim, elabora-se uma avaliação partilhada por ambos, educador/a e educando/a. Caso o/a participante já tenha finalizado todas as atividades do material didático e, após a avaliação, julgue-se que não está habilitado/a para passar para a próxima etapa, ele/a é convidado/a a retomar as atividades novamente, revisando os exercícios.

Para passar para a próxima etapa, o/a educando/a deve ser capaz de ler e escrever palavras e frases, mesmo que ainda não seja da forma ortográfica padrão; deve dominar, ainda, algumas operações matemáticas, sendo elas principalmente somas e subtrações.

Desde 2001–2002 a 2019, a dinâmica de participação das pesquisadoras nas turmas foi a mesma: ao chegar, pela primeira vez, a cada uma dessas salas, a pesquisadora era rapidamente apresentada ou convidada a se apresentar e logo se sentava em uma das cadeiras para assistir às aulas com as outras pessoas. Nas salas acompanhadas, as pesquisadoras encontraram turmas integradas por um número variável entre dez e 20 pessoas sentadas em torno da mesa, contando com idades a partir de 25 anos de idade e que geralmente falavam em castelhano.

Convém ressaltar que as aulas de alfabetização observadas pelas pesquisadoras foram sempre conduzidas em língua castelhana, apesar de a língua localmente usada ser a catalã, e de forma dialogada, com base em problematizações em torno dos conteúdos e de abertura de espaço para o compartilhamento de ideias e para o estabelecimento de acordos na busca de resoluções às questões propostas. Essas problematizações e questões remetiam a situações cotidianas, contextos históricos e práticas sociais desenvolvidas na escola. Ademais, a concepção de alfabetização que foi observada compreendeu desde o domínio da língua castelhana, que é falada em toda a Espanha, até alguns conceitos matemáticos usados cotidianamente, tal como relatado a seguir.

Entre as situações cotidianas, podem ser encontrados os cálculos matemáticos desencadeados por diferentes situações-problema propostas, como, por exemplo: "uma planta tem 12 cm e cresce 8 cm ao ano. Em quanto tempo chegará a 1 m?". Enquanto apresentava essa questão à turma, a pessoa responsável pela alfabetização desenhava a planta na lousa, ao passo que as pessoas participantes começavam a dialogar, em duplas ou trios, com quem estava sentado ao lado, recorrendo a cálculos mentais, usando calculadoras ou redigindo operações no caderno, a fim de solucionar a questão proposta. Ao longo de todo o processo, a pessoa responsável pela turma acompanhava os diálogos e as resoluções, fazendo perguntas que ajudavam na condução do raciocínio. Ao perceber que a resposta era encontrada por um dos pequenos grupos, ela solicitava a explicação de tal resolução às demais pessoas, para que todas elas pudessem realizar as operações em seus próprios cadernos. Ademais, antes da proposição de nova situação-problema, ela sempre se certificava de que todas as pessoas tinham compreendido corretamente a resolução da questão proposta.

Outro exemplo tomado do diário de campo produzido em 2018 diz respeito ao ensino de algarismos romanos proposto por meio da retomada de uma excursão ao Museu de História de Barcelona. A pessoa responsável pela turma retomou a presença romana no passado dessa cidade e suas influências no nome "Barcino" e na cultura barcelonesa. Nessa retomada, alguns e algumas participantes da turma foram acrescentando detalhes aprendidos na excursão, mencionando vestígios arqueológicos do comércio ali desenvolvido em séculos longínquos. A partir desses diálogos, a pessoa responsável pela turma ia mostrando como escrever e compreender datas escritas com algarismos romanos, para, na sequência, entregar uma folha com exercícios a serem resolvidos pela turma. Esses exercícios também foram resolvidos nos diálogos que aconteciam entre pessoas que se sentavam perto, sendo também acompanhados pelas intervenções da pessoa responsável pela turma.

Quanto ao ensino da escrita em língua castelhana, vale oferecer um exemplo de uma sala de alfabetização que era frequentada apenas por mulheres. A voluntária responsável pela sala propôs que a turma elaborasse individualmente um texto, cujo tema era "A mulher e os meios de comunicação". Esses textos seriam lidos pelas autoras que desejassem fazê-lo na comemoração do Dia das Mulheres, que já se aproximava à época dessa observação. Ao longo da aula, cada participante lia, em voz alta, as ideias que havia levantado em seu próprio caderno ou em folhas de atividades distribuídas para as aulas. As colegas da turma e a alfabetizadora lhe faziam perguntas a respeito do trecho lido, que, ao serem respondidas pela escritora, poderiam ser ou não incorporadas à escrita do texto. Nesse sentido, os diálogos ajudavam a enriquecer a escrita dos trechos que eram lidos, além de aprofundar as reflexões sobre os conteúdos que eram relatados por suas autoras.

Um tipo de orientação recorrente que todas as pesquisadoras puderam visualizar foi a tematização de duas orientações principais para a atuação voluntária na escola: que fossem geradas questões para que as pessoas participantes interagissem entre si e que as atividades fossem relacionadas com situações cotidianas e sociais, algumas delas fomentadas pela escola.

Essas orientações foram ratificadas pelas pessoas responsáveis pelas salas, quando orientaram as pesquisadoras para apoiarem individualmente as pessoas com mais dificuldade que estavam em suas turmas. Esse apoio individual era geralmente direcionado para pessoas com maturidade bastante avançada, algumas das quais apresentavam deficiências de fala e de motricidade, associadas ou não a deficiências intelectuais. Em cada um desses casos, a orientação era para que, como voluntária, a pesquisadora em questão conduzisse a comunicação de modo a favorecer a realização das mesmas atividades desenvolvidas pelo restante da turma. Ao se referir, por exemplo, a uma participante cadeirante, com dificuldades de fala e que não movimentava suas mãos, foi ressaltado que ela era capaz de fazer cálculos mentais, de modo que seria possível que ela sinalizasse suas respostas às questões de operações matemáticas, tais como adição e subtração, que lhe seriam direcionadas, se a voluntária usasse seus próprios dedos para a contagem e, na sequência, as registrasse no caderno da participante.

Quanto à articulação das atividades com as situações cotidianas e sociais, vale destacar o alto grau de envolvimento e de organização das mulheres voluntárias ou estudantes dessa escola em torno de questões que lhes afetam diretamente e sobre diferentes formas de lidar com as condições de opressão em uma sociedade machista. Nesse sentido, destaca-se a realização de uma reunião com a presença apenas de mulheres, de diferentes idades, para fomentar a representatividade do bairro na manifestação coletiva que se realizaria em breve no Dia das Mulheres. A reunião foi conduzida por uma mulher árabe, que ressaltou inicialmente a necessidade de articulação com outras organizações de mulheres, também situadas no mesmo bairro, a fim de melhorar a comunicação entre elas, de visibilizar os trabalhos realizados com esses coletivos e de fortalecer as ações com objetivos comuns a todas elas. Os argumentos apresentados pela mulher indicavam que seria importante que todas as participantes estimulassem outras mulheres a irem à manifestação que estava sendo organizada, mas que esse estímulo era diferente do exercício de pressão.

Em meio a esses diálogos, surgiram temas controversos, tais como a prostituição, em torno dos quais foram provocados diferentes posicionamentos das participantes. Diante do debate estabelecido em torno da prostituição, a condutora da reunião reconheceu a relevância do tema e sugeriu sua retomada posterior pautada por dados qualificados, relembrando a necessidade de se superarem ideias preconcebidas.

Enfim, a descrição oferecida nesta seção revela que a dialogicidade manifestada nas salas de alfabetização está presente em outros espaços da escola.

Com base na análise do índice temático referido no artigo como parte da organização de dados da pesquisa, percebeu-se na verificação de diários de campo e entrevistas que existem quatro indicadores temáticos principais que estruturam as estratégias selecionadas para as aulas de alfabetização em análise, quais sejam: 1. organização operacional baseada no contexto e nas demandas dos/as educandos/as; 2. método silábico de alfabetização, baseado em atividades diárias de leitura e escrita, com padrões de execução4 1 Coordenadoria das Entidades de La Verneda-Sant Martí. e tempo individual do/a educador/a principal destinado a cada participante, com planos individuais em interação coletiva; 3. autonomia na aprendizagem, ou seja, todo o material fundamenta-se na autonomia do/a participante, contém alguns sinais gráficos que o/a ajudam a compreender o que precisa fazer em cada atividade e, assim, pretende fazer o/a educando/a protagonista do seu próprio processo de aprendizagem; 4. aprendizagem em interação dialógica e solidária; na medida em que os/as participantes apoiam-se mutuamente, um auxiliando o/a outro/a, a aprendizagem dá-se de forma mais amplamente interativa em relação ao que ocorre em outros contextos. Isso porque a interação não ocorre só por parte do/a professor/a para com os/as participantes, ou mesmo em atividades em dupla ou em grupos predeterminados pelo/a professor/a em alguns momentos da dinâmica das aulas, mas é frequente, ocorrendo a todo momento conforme a necessidade dos/as participantes, que podem recorrer a seus colegas de classe, colaboradores/as voluntários/as de apoio ou ao colaborador ou colaboradora principal (professor/a) para sanar suas dúvidas.

O MATERIAL DE ALFABETIZAÇÃO

Entre as opções didáticas, a construção coletiva do material didático que é utilizado nas aulas pareceu ser uma das estratégias mais significativas ao modelo de aprendizagem dialógica adotado pela escola. Tal material foi elaborado por educadores/as com o auxílio de educandos/as e outros colaboradores/as, todos/as ligados/as a escolas de alfabetização de pessoas adultas de Barcelona, Espanha, constituindo-se em um conjunto de livros didáticos que teve como primeira edição o ano de 1982 e que é utilizado até a atualidade. Os livros didáticos materializam um conjunto de procedimentos metodológicos denominados de La Palavra (Pérez et al., 1995PÉREZ, Julio Aviñoa; MARTÍNEZ, Maria Jose Briansó; GARCíA, Ramon Flecha; FERNANDEZ, Sara Ordóñez. Didáctica del método de alfabetización para adultos La Palavra. 8.ed. Barcelona: El Roure Editorial S.A., 1995.), elaborado com base no sistema de alfabetização desenvolvido por Paulo Freire (1963FREIRE, Paulo. Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo. Recife: Comissão Nacional de Cultural Popular, Comissão Regional de Cultura Popular de Brasília, Serviço de Extensão Cultural, Universidade do Recife, 1963. Disponível em: https://nepegeo.paginas.ufsc.br/files/2018/11/Paulo-Freire-Conscientiza%C3%A7%C3%A3o-e-alfabetiza%C3%A7%C3%A3o-Uma-nova-vis%C3%A3o-do-processo.pdf. Acesso em: 12 maio 2020.
https://nepegeo.paginas.ufsc.br/files/20...
; 1983FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.).

Faz-se importante destacar que, além de Paulo Freire, os/as idealizadores/as da metodologia basearam-se, segundo Pérez et al. (1995)PÉREZ, Julio Aviñoa; MARTÍNEZ, Maria Jose Briansó; GARCíA, Ramon Flecha; FERNANDEZ, Sara Ordóñez. Didáctica del método de alfabetización para adultos La Palavra. 8.ed. Barcelona: El Roure Editorial S.A., 1995., também nos trabalhos sobre os "centros de interesse" de Ovide Decroly (1871–1932) — educador belga que propunha a preparação do/a participante para a vida por meio de um currículo elaborado com base nas necessidades objetivas dos/as educandos/as, com incentivo à aprendizagem em grupo. Assim, trata-se de um método com influência da pedagogia freiriana, mas não propriamente o chamado "Método Paulo Freire".5 5 Freire (1963) cria o que ele próprio denominou de "sistema de alfabetização", ou seja, um conjunto de proposições de ordem teórica e metodológica sobre os processos de ensino de língua materna; entretanto, também se fará uso do conceito de "método" ao dar destaque à sua parte metodológica.

Reitera-se que esse material precisa ser pensado no contexto para o qual foi criado, ou seja, aulas ministradas por voluntários/as não especializados/as, aulas com pouco tempo de duração e para participantes com diferentes níveis de aprendizagem e que ingressaram em diferentes momentos do ano letivo no curso.

A versão em castelhano é composta de quatro livros de atividades e um livro de leitura do/a participante, além de um livro de orientação aos educadores e educadoras, conforme mencionado. O material didático expõe certa simplicidade gráfica, que é explicada pelo grupo que o criou como um projeto que sempre dispôs de baixo recurso financeiro (Pérez et al., 1995PÉREZ, Julio Aviñoa; MARTÍNEZ, Maria Jose Briansó; GARCíA, Ramon Flecha; FERNANDEZ, Sara Ordóñez. Didáctica del método de alfabetización para adultos La Palavra. 8.ed. Barcelona: El Roure Editorial S.A., 1995.).

O material de alfabetização utilizado nas aulas de alfabetização do Centro no momento da coleta de dados que o analisou era a versão em castelhano (primeiro semestre letivo do ano de 2019). O material em catalão,6 6 Indica-se a verificação da versão em catalão dos livros, que possui versão digital pública e gratuita e é similar à versão em castelhano, com poucas diferenciações. Para acessar os livros do/a participante: Alcalá et al. (2011). embora mais recente e em versão colorida, não é utilizado nas aulas de alfabetização do Centro, pois os/as participantes imigrantes e migrantes, que constituíam a maior parcela dos/as educandos/as das turmas de alfabetização em 2019, têm maior apropriação oral do castelhano do que do catalão, segundo o que foi justificado por Teresa (nome fictício), uma das educadoras principais da turma acompanhada.

A edição atual tem como primeira publicação o ano de 1982, tendo tido 14 reimpressões. Os livros didáticos trazem atividades próprias do método silábico. Cada sessão é introduzida por uma palavra geradora (Freire, 1983FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.), decomposta em suas famílias silábicas e, sequencialmente, são propostos exercícios diversos de fixação de relação grafofonêmica.

Verifica-se um significativo trabalho com a linguagem não verbal como suporte de orientação aos/às participantes nos livros didáticos analisados, pois, no decorrer do material, há diversos símbolos que dão indicações sobre aquilo que os/as educandos/as devem fazer. Tais indicadores são apresentados no material do/a professor/a (Pérez et al., 1995PÉREZ, Julio Aviñoa; MARTÍNEZ, Maria Jose Briansó; GARCíA, Ramon Flecha; FERNANDEZ, Sara Ordóñez. Didáctica del método de alfabetización para adultos La Palavra. 8.ed. Barcelona: El Roure Editorial S.A., 1995., p. 09) (Figura 1).7 7 A qualidade das imagens apresentadas nesta exposição foi prejudicada tendo em vista a qualidade do próprio material original consultado, que só pôde ser conseguido, no caso do livro do/a professor/a, no formato de reprodução em fotocópia.

Figura 1
Códigos de Instrução: Material Didático La Palavra.

Destaca-se que os livros não apresentam incialmente o alfabeto e nem mesmo trazem atividades de desenvolvimento de coordenação motora. Essas atividades iniciais são dadas pelos/as educadores/as principais, conforme a necessidade, por meio de exercícios retirados de outros livros didáticos ou outras fontes diversas e reproduzidos por meio de cópias impressas para os/as participantes.

O livro do/a educador/a denomina-se Didáctica del método de alfabetización para adultos: La palavra e tem como autores/as representantes de quatro diferentes escolas de pessoas adultas de Barcelona, Espanha, que participaram do processo de elaboração do material.

Além de explicações gerais sobre as propostas das atividades, o livro do/a educador/a também traz sugestões de outras atividades e recursos didáticos que podem ser inseridos pelos educadores/as, tanto para desenvolvimento da oralidade quanto para o desenvolvimento da leitura e da escrita.

O método utilizado foi inspirado no denominado "sistema Paulo Freire de alfabetização" (Freire, 1963FREIRE, Paulo. Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo. Recife: Comissão Nacional de Cultural Popular, Comissão Regional de Cultura Popular de Brasília, Serviço de Extensão Cultural, Universidade do Recife, 1963. Disponível em: https://nepegeo.paginas.ufsc.br/files/2018/11/Paulo-Freire-Conscientiza%C3%A7%C3%A3o-e-alfabetiza%C3%A7%C3%A3o-Uma-nova-vis%C3%A3o-do-processo.pdf. Acesso em: 12 maio 2020.
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), portanto é silábico e eclético como o método proposto por Freire (Frade, 2005FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Métodos e didáticas de alfabetização: história, características e modos de fazer de professores: caderno do professor. Belo Horizonte: Ceal/FaE/UFMG, 2005.). Freire (1983)FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. propunha o uso de "palavras geradoras" para alfabetizar, que, em síntese, são palavras relacionadas ao contexto de existência dos/as educandos/as e que têm a potencialidade de gerar reflexões sobre o processo de leitura-escrita da língua e também discussões acerca do contexto social no qual a língua ocorre (em que constitui as pessoas e é constituída por elas) e onde os/as educandos/as estão inseridos/as. Entretanto, a participante da pesquisa Maria (nome fictício), que participou do processo de elaboração do material, destaca, em entrevista concedida para este trabalho de pesquisa, que, no processo de escolha das palavras que abrem cada seção de estudo do método La Palavra (Pérez et al., 1995PÉREZ, Julio Aviñoa; MARTÍNEZ, Maria Jose Briansó; GARCíA, Ramon Flecha; FERNANDEZ, Sara Ordóñez. Didáctica del método de alfabetización para adultos La Palavra. 8.ed. Barcelona: El Roure Editorial S.A., 1995.), o grupo que elaborou a proposta optou em alguns casos por palavras com potencialidade fonética e que usualmente são utilizadas para alfabetização nas escolas espanholas, mesmo contendo pouco potencial semântico; isso porque entenderam que o debate crítico poderia se dar em outros momentos, por meio de outras palavras ou mesmo dos textos contidos no livro de leitura.

As principais peculiaridades verificadas entre o método proposto por Freire (1963FREIRE, Paulo. Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo. Recife: Comissão Nacional de Cultural Popular, Comissão Regional de Cultura Popular de Brasília, Serviço de Extensão Cultural, Universidade do Recife, 1963. Disponível em: https://nepegeo.paginas.ufsc.br/files/2018/11/Paulo-Freire-Conscientiza%C3%A7%C3%A3o-e-alfabetiza%C3%A7%C3%A3o-Uma-nova-vis%C3%A3o-do-processo.pdf. Acesso em: 12 maio 2020.
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; 1983FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.) e o utilizado no Centro são:

  • Os Círculos de Cultura, que foram a base da criação do "Método Paulo Freire" de alfabetização, segundo Brandão (2010), caracterizados por momentos de discussão crítica da palavra geradora, ou seja, palavra saída do contexto lexical dos/as alfabetizandos/as e com potencial fonético (proporciona o avanço sobre o conhecimento da constituição grafofonêmica) e para a discussão crítica (potencial semântico e pragmático), assumem na Escola de Pessoas Adultas de La Verneda-Sant Martí uma formato mais dinâmico e mais horizontal. A intenção de proporcionar a compreensão das relações sociais, políticas, econômicas e culturais nos círculos de cultura, com debates desencadeados por meio do estudo de palavras, frases, textos e imagens, foi proposta por Freire e colaboradores tendo um/a "animador/a", ou seja, um educador ou educadora responsável pelas aulas como figura central; aquele ou aquela que será responsável por conduzir o desvelamento do mundo e promover a conscientização. Nas classes de alfabetização da Verneda-Sant Martí, os livros de alfabetização foram desenvolvidos em processo de pesquisa e análise das palavras, frases e textos em conjunto com educandos e educandas, gerando-se a sequência apresentada no livro. Todavia, a tematização e o diálogo não ficam centralizados pela educadora ou pelo educador, mas, nas grandes mesas retangulares, no trabalho entre pares, trios, grupos, com presença de colaboradores/as, as palavras vão gerando diálogos entre participantes nos quais o/a educador/a se envolve, mas nos quais todos e todas vão mostrando suas leituras de mundo e aprofundando suas reflexões com base nas contraposições, discordâncias e concordâncias. Educador/a e colaboradores propõem pesquisas e novas conversas com dados em mãos para dirimir dúvidas, superar fake news ou opiniões construídas com base em material social deturpado. Tal procedimento relaciona-se com o despertar e o desenvolvimento da "leitura do mundo" e "leitura da palavra" (Freire, 1983FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.; Freire e Macedo, 2013FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.). Assim, o ensino e a aprendizagem da língua escrita em sua totalidade, em sua morfologia, sintaxe, fonologia, semântica e pragmática, propostos por Freire (1983)FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983., são mantidos e dinamizados.

Em seguida, apresenta-se um texto do livro de leitura, geralmente introduzido junto com o Livro 3 do/a educando/a, que tem como objetivo estimular a leitura e a compreensão crítica das relações sociais. Os textos foram elaborados por participantes egressos/as do curso de alfabetização de escolas de adultos/as de Barcelona (Figura 2).

Figura 2
Texto do livro Historias.
  • No método de Paulo Freire (1983)FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. se verifica um papel mais central do educador/a, ou seja, cabe ao educador ou educadora ministrar as aulas. No Centro de Educação de Pessoas Adultas da Verneda-Sant Martí, entretanto, cada participante tem o seu tempo, iniciando em uma época e tendo um tempo de desenvolvimento próprio. Assim, o/a educador/a não ministra aulas coletivas, ele/a é um/a apoiador do processo de alfabetização, que deve se dar em interação do/a participante não só com os/as colaboradores/as, como também com os demais participantes da turma e com o material didático. Verificou-se que essa opção não diminui o papel do/a educador/a, mas sim potencializa a colaboração mútua nos processos de ensino e aprendizagem, conforme já verificado por Mello (2003)MELLO, Roseli Rodrigues de. Aprender a ler e escrever: sonho e coragem de mulheres. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL, 14., Campinas, 2003. Disponível em: https://view.officeapps.live.com/op/view.aspx?src=https%3A%2F%2Falb.org.br%2Farquivo-morto%2Fedicoes_anteriores%2Fanais14%2FSem03%2FC03046.doc&wdOrigin=BROWSELINK. Acesso em: 25 jul. 2024.
    https://view.officeapps.live.com/op/view...
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ANALISANDO A EXPERIÊNCIA DE SONHO E CIÊNCIA DA ESCOLA DE PESSOAS ADULTAS DE LA VERNEDA-SANT MARTÍ

Ao analisar documentos, entrevistas e diários de campo, pudemos constatar que, por meio do princípio do "diálogo igualitário" (Flecha, 1997FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: el aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós, 1997.), educadores e educadoras que foram se agregando ao Centro em diálogo permanente com educandos e educandas chegaram ao modelo administrativo e pedagógico da Escola de Pessoas Adultas da Verneda-Sant Martí.

A descrição feita em seção anterior sobre o funcionamento administrativo, político e pedagógico da escola permitiu constituir três categorias centrais que se expressam de forma inter-relacionada na compreensão do funcionamento da escola, ao longo de seus mais de 40 anos de existência. São elas:

  • Diálogo igualitário como promotor de direitos e sonhos individuais e coletivos — refere-se à promoção de estratégias escolares, no âmbito administrativo, político e pedagógico, que podem ampliar o interesse e a adesão dos/as participantes à aprendizagem, porque fazem referência às solicitações, demandas e projetos de vida dos/as próprios/as educandos/as. Por meio da escuta das demandas dos/as participantes, a escola promove o diálogo igualitário, tornando a oferta de seus serviços mais adequada às necessidades dos/as educandos/as.

  • Solidariedade como ética social — a solidariedade dá-se no espaço de escuta, a fim de acolher as demandas individuais e coletivas da comunidade, e também no apoio recíproco para a aprendizagem, quando os/as educandos/as se apoiam mutuamente para a ampliação de conhecimentos.

  • Autonomia como princípio educativo emancipador — refere-se a quem tem liberdade para ensinar e aprender em seu próprio ritmo (possibilidade de planos de aulas individuais), com acesso a recursos e estratégias apropriadas, para que o/a participante, portanto, seja protagonista de sua aprendizagem. Também se relaciona à aprendizagem instrumental, que permite o acesso do/a educando/a a uma série de situações em que o conhecimento da língua escrita é importante para o exercício da cidadania.

As opções metodológicas adotadas pela Escola da Verneda estão conectadas às demandas e necessidades objetivas dos/as educandos/as. Dessa maneira, os dados chamam a atenção para a vinculação das opções metodológicas, no processo de ensino e aprendizagem, às estruturas organizacionais (administrativas) de funcionamento escolar que condicionam sua aplicabilidade.

Nesse sentido, Flecha e Mello (2012)FLECHA, Ramón; MELLO, Roseli Rodrigues de. A formação de educadoras e educadores para um modelo social de educação de pessoas jovens e adultas: perspectiva dialógica. Revista da FAEEPA, v. 21, n. 34, p. 39-52, jan./jun. 2012. reiteram o "modelo social" assumido pela escola da Verneda, no qual a dimensão instrumental é importante, mas é conciliada à dimensão social, em que os interesses e demandas individuais e comunitários devem ser levados em consideração nas tomadas das decisões da escola, sejam elas administrativas, sejam pedagógicas, sendo o/a educando/a, portanto, um/a participante ativo/a desse processo.

Verifica-se que na escola da Verneda as estratégias são adotadas com base, principalmente, na realidade do/a adulto/a que aprende. Assim, compreende-se que nas aulas de alfabetização dessa escola se aplicam os princípios da "aprendizagem dialógica" delimitados por Flecha (1997)FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: el aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós, 1997., principalmente os princípios do diálogo igualitário, da aprendizagem instrumental e da solidariedade. Além disso, pode-se dizer também que há um tipo de princípio de "autonomia emancipadora". O material didático e a interação solidária nas aulas favorecem a autonomia do/a participante em alfabetização na escola da Verneda, compondo-se o que se compreende ser uma proposta dialógica e emancipadora de alfabetização de pessoas adultas. A experiência da escola da Verneda em alfabetização de pessoas adultas, dessa maneira, relaciona-se à "alfabetização emancipadora" defendida por Freire e Macedo (2013)FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013..

Entre os indicadores construídos na pesquisa, destaca-se a formatação de material didático como especialmente significativa para pensar o conceito de autonomia de aprendizagem na escola. As imagens que sinalizam e assim caracterizam as atividades do material didático utilizado na Escola da Verneda, tais como em um manual autoinstrutivo, favorecem a autonomia, pois os/as educandos/as passam a deduzir qual a proposta da atividade, mesmo sem saber ainda ler com proficiência. Isso, de certa forma, instiga o/a educando/a a realizar a atividade e a assimilar formas de escrita e deduzir sons e significados (leitura) — dessa maneira, o "ler sem saber ler" é uma prática que pode ser utilizada na alfabetização, demonstrando bons resultados em algumas situações, fundamentada no conceito contemporâneo de letramento (Soares, 2003SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.).

Dessa forma, o conceito de autonomia, central na obra freiriana (Freire, 2015FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.), é também nota fundamental da metodologia estudada. Segundo Machado (2010)MACHADO, Rita de Cássia de Fraga. Autonomia (verbete). In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (org.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010, p. 53-54., esse conceito é apresentado por Freire com base no paradoxo "autonomia/dependência" (Machado, 2010MACHADO, Rita de Cássia de Fraga. Autonomia (verbete). In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (org.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010, p. 53-54.), pois o reconhecer-se como dependente, como ser de coletividade, ao mesmo tempo que se reconhece também autônomo/a, é o que promove o libertar-se dos determinismos, como processo de humanização. A autonomia está, portanto, relacionada ao poder de decisão como experiência de liberdade.

Para Freire (2015)FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., uma pedagogia da autonomia tem relação com a capacidade de promover estratégias educacionais que estimulem o poder de decisão e a responsabilidade dos/as educadores/as e educandos/as, em experiências respeitosas do viver com liberdade, do aprender com liberdade — liberdade que, para Freire (2014FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um encontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014., p. 208-209), é agir criticamente em "unidade na diversidade"8 8 Direito às diferenças e atenção às especificidades, com a adoção de consensos para fortalecer as lutas sociais dos/as historicamente subjugados/as, oprimidos/as. ; é, dessa forma, o agir responsável e respeitoso, não sendo, portanto, licenciosidade. Assim, esse conceito freiriano ("autonomia") expressa-se em uma proposta de autonomia crítica (reflexiva e propositiva, e, portanto, práxis social).

Ne medida em que Freire (2015FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., p. 24) reitera em sua obra que "[…] educar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção", um método que possibilite maior autonomia do/a participante em seu processo de aprendizagem pode tornar-se mais democrático porque dá a oportunidade ao/à participante de aprender com liberdade e, nesse sentido, compreende-se que a experiência da Escola da Verneda pode dar indicativos para essa reflexão.

Por fim, os dados coletados ao longo dos anos e principalmente no ano de 2019 confirmam o parecer de Mello (2003)MELLO, Roseli Rodrigues de. Aprender a ler e escrever: sonho e coragem de mulheres. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL, 14., Campinas, 2003. Disponível em: https://view.officeapps.live.com/op/view.aspx?src=https%3A%2F%2Falb.org.br%2Farquivo-morto%2Fedicoes_anteriores%2Fanais14%2FSem03%2FC03046.doc&wdOrigin=BROWSELINK. Acesso em: 25 jul. 2024.
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em sua pesquisa realizada na escola no início dos anos 2000, de que a "dialogicidade" é fator central nas aulas de alfabetização do Centro de Educação de Pessoas Adultas da Verneda-Sant Martí, pois a aprendizagem gira em torno da interação entre os/as educandos/as, os/as colaboradores/as, o método e o material de ensino que o materializa. Para Freire (2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., p. 91), "o diálogo é esse encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu". Assim, na escola de adultos/as da Verneda, o processo de ensino e aprendizagem se amplia, é permeado pela relação entre os/as diferentes agentes escolares e, nesse sentido, o conhecimento é obtido por meio da interação, solidariedade e autonomia, que se dá em-no-com diálogo igualitário, por isso é dialógico. Na escola da Verneda, o /a participante é também colaborador/a, que auxilia e apoia os/as colegas na aprendizagem, e isso não exime ou diminui o papel do/a professor/a, apenas potencializa as possibilidades do ensinar e aprender.

Mello (2003)MELLO, Roseli Rodrigues de. Aprender a ler e escrever: sonho e coragem de mulheres. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL, 14., Campinas, 2003. Disponível em: https://view.officeapps.live.com/op/view.aspx?src=https%3A%2F%2Falb.org.br%2Farquivo-morto%2Fedicoes_anteriores%2Fanais14%2FSem03%2FC03046.doc&wdOrigin=BROWSELINK. Acesso em: 25 jul. 2024.
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enfatiza que a interação dialógica se relaciona com o conceito de "diálogo igualitário" (Flecha, 1997FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: el aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós, 1997.), que tem também relação, além dos estudos freirianos (Freire, 2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.), com a Teoria do Agir Comunicativo de Jürgen Habermas (2012)HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012., e deve ser baseado em pretensões de validade, ou seja, em argumentos válidos, éticos e fundamentados, e não em posições de suposta superioridade social.

CONCLUSÕES

Ao final da análise realizada, com fundamento nos indicadores verificados e categorias elaboradas, compreende-se que a experiência estudada apresenta contribuições para as reflexões teóricas e práticas na educação de jovens e adultos, principalmente no tocante à alfabetização de pessoas adultas.

Trata-se de experiência baseada em sonho e ciência, em utopia realizável, conforme anunciamos na abertura do artigo. A sustentabilidade da experiência (mais de 40 anos de existência bem-sucedida) foi por nós captada na história democrática e dialógica da escola e em seu funcionamento, calcado também em tais pilares. Assim, concluímos que tal experiência radicaliza (deita raízes) apoiada na teoria freiriana, mas também nos avanços promovidos pela formulação dos conceitos de aprendizagem dialógica, em atuações educativas de êxito e no modelo de transformação de escolas em Comunidades de Aprendizagem.

A autonomia emancipadora verificada na escola de adultos/as da Verneda constitui-se por meio da dialogicidade, por meio do diálogo igualitário (Flecha, 1997FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: el aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós, 1997.), do diálogo dialógico freiriano (Freire, 2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., p. 91-99), que não apenas "diz", mas principalmente "escuta" e busca compreender as demandas e sonhos dos/as participantes, pela comunicação livre e fraterna que se dá no exercício da solidariedade no processo de aprendizagem entre colaboradores/as e educandos/as, que se apoiam mutuamente para ensinar e aprender a ler e escrever, a calcular, a compreender de forma crítica o mundo. Veem-se, portanto, nas aulas de alfabetização do Centro, os sete princípios da aprendizagem dialógica (Flecha, 1997FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: el aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós, 1997.) sendo colocados em prática.

Existem, logo, contribuições a serem depreendidas da proposta adotada para as aulas de alfabetização do Centro de Educação de Pessoas Adultas da Verneda-Sant Martí para o contexto da alfabetização de adultos/as no Brasil. Entretanto, esta apresentação, longe de pretender criar generalizações ou um parecer conclusivo, apresenta algumas reflexões iniciais que, espera-se, poderão fomentar discussões futuras sobre a alfabetização de pessoas adultas em uma perspectiva dialógica da aprendizagem, pois a abordagem dialógica pode auxiliar na criação de estratégias mais alinhadas às necessidades de aprendizagem dos/as participantes de Educação de Jovens e Adultos (EJA), porque é uma perspectiva que aposta na participação de todos/as os/as agentes do processo educacional nas tomadas de decisões, sendo, no ambiente escolar, até mesmo a produção de material didático uma delas.

Nessa perspectiva, acredita-se que esta experiência possa auxiliar educadores/as a pensar em organizações escolares, metodologias e materiais didáticos que sirvam mais amplamente às necessidades dos/as educandos/as da EJA, podendo lhes dar autonomia para aprender, cada um/a a seu tempo e conforme seu contexto, necessidades e sonhos.

Para Freire (2015FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015., p. 105), "[…] uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas de liberdade" e, nesse sentido, para construir uma proposta de alfabetização realmente calcada em uma "pedagogia da autonomia", em uma educação dialógica, acredita-se que se faz importante refletir, com base nas proposições freirianas (Freire, 2015FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.), em que sentido as opções administrativas e pedagógicas das escolas promovem experiências de liberdade educativa ao/à participante durante a sua aprendizagem.

Dessa forma, o conjunto dos estudos da aprendizagem dialógica (Aubert et al., 2016AUBERT, Adriana; FLECHA, Ainhoa; GARCÍA, Carme; FLECHA, Ramón; RACIONERO, Sandra. Aprendizagem dialógica na sociedade da informação. São Carlos: EdUFSCar, 2016.), aos quais a escola da Verneda se associa enquanto opção teórico-metodológica e política, ensina que escutar os/as educandos/as é de grande importância — conhecer e compreender os seus contextos de vida e as suas necessidades e sonhos — porque só assim se compreende que poderão ser criadas melhores estratégias para conduzir a uma melhor aprendizagem e, nesse sentido, a interação, solidariedade e autonomia, em diálogo dialógico, parecem ser grandes aliadas no processo educativo.

Isso posto, espera-se que este artigo possa ser um convite aos/às alfabetizadores/as de pessoas adultas para que conheçam o que consideramos uma "alfabetização dialógica" — interativa, solidária, emancipadora e crítica, vinculada às proposições de Paulo Freire e aos princípios da "aprendizagem dialógica" propostos por Flecha (1997)FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: el aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós, 1997., para pensar as propostas de suas escolas e seus planos de trabalho. Que não tenham medo de articular sonho e ciência na constituição de uma educação responsável e transformadora.

  • 1
    Coordenadoria das Entidades de La Verneda-Sant Martí.
  • 2
    As AEE são: grupos interativos, tertúlias dialógicas, biblioteca tutorada, formação de familiares, participação educativa da comunidade, modelo dialógico de resolução de conflitos e formação pedagógica dialógica.
  • 3
    A formação em nível fundamental no Centro é subdividida em três etapas: a inicial de alfabetização; a intermediária, a qual denominam de classe de "neoleitores"; e a final, denominada de "certificação", na qual ocorre uma preparação para que os/as participantes realizem a prova de certificação para a obtenção do título de escolarização de nível fundamental.
  • 4
    A repetição de exercícios similares é uma estratégia do material didático, pois, já conhecendo a maneira de resolução com base em atividades anteriores, o/a participante é capaz de entender o que deve ser realizado na atividade, sem, muitas vezes, precisar contar com a explicação prévia feita por uma outra pessoa. Ou seja, são exercícios com conteúdos diferentes, mas modos de fazer iguais a modelos anteriores.
  • 5
    Freire (1963)FREIRE, Paulo. Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo. Recife: Comissão Nacional de Cultural Popular, Comissão Regional de Cultura Popular de Brasília, Serviço de Extensão Cultural, Universidade do Recife, 1963. Disponível em: https://nepegeo.paginas.ufsc.br/files/2018/11/Paulo-Freire-Conscientiza%C3%A7%C3%A3o-e-alfabetiza%C3%A7%C3%A3o-Uma-nova-vis%C3%A3o-do-processo.pdf. Acesso em: 12 maio 2020.
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    cria o que ele próprio denominou de "sistema de alfabetização", ou seja, um conjunto de proposições de ordem teórica e metodológica sobre os processos de ensino de língua materna; entretanto, também se fará uso do conceito de "método" ao dar destaque à sua parte metodológica.
  • 6
    Indica-se a verificação da versão em catalão dos livros, que possui versão digital pública e gratuita e é similar à versão em castelhano, com poucas diferenciações. Para acessar os livros do/a participante: Alcalá et al. (2011)ALCALÁ, Natália Fernândez; FISAS OLLÉ, Montserrat; FORT MARRUGAT, Miquel; PULIDO RODRÍGUEZ, Cristina; SERRANO ALFONSO, M. Ángeles; VALLS CAROL, Rosa; VALLS MOLINS, Núria; VILLAREJO CARBALLIDO, Beatriz. Didàctica del mètode d'alfabetització. Obra Social "la Caixa" Direcció General per a la Immigració. Departament de Benestar Social i Família, 2011. Disponível em: https://igualtat.gencat.cat/web/.content/Ambits/antiracisme-migracions/acollida/acollida-linguistica/enllacos-iniciatives-dpt/maleta-lletres-tothom/didactica.pdf. Acesso em: 24 jul. 2022.
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    .
  • 7
    A qualidade das imagens apresentadas nesta exposição foi prejudicada tendo em vista a qualidade do próprio material original consultado, que só pôde ser conseguido, no caso do livro do/a professor/a, no formato de reprodução em fotocópia.
  • 8
    Direito às diferenças e atenção às especificidades, com a adoção de consensos para fortalecer as lutas sociais dos/as historicamente subjugados/as, oprimidos/as.
  • Financiamento:

    Este artigo foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - bolsa produtividade n° 302376/2022-4.

REFERÊNCIAS

  • ALCALÁ, Natália Fernândez; FISAS OLLÉ, Montserrat; FORT MARRUGAT, Miquel; PULIDO RODRÍGUEZ, Cristina; SERRANO ALFONSO, M. Ángeles; VALLS CAROL, Rosa; VALLS MOLINS, Núria; VILLAREJO CARBALLIDO, Beatriz. Didàctica del mètode d'alfabetització Obra Social "la Caixa" Direcció General per a la Immigració. Departament de Benestar Social i Família, 2011. Disponível em: https://igualtat.gencat.cat/web/.content/Ambits/antiracisme-migracions/acollida/acollida-linguistica/enllacos-iniciatives-dpt/maleta-lletres-tothom/didactica.pdf Acesso em: 24 jul. 2022.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2022
  • Aceito
    28 Jun 2023
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