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Para além do global, da origem e da influência: apontamentos sobre o método da comparação diferencial

Beyond the Global, the Source, the Origin, and the Influence: Notes on the Differential Comparison Method

RESUMO

Este artigo visa problematizar algumas noções próprias da literatura comparada, firmadas pela crítica e pela teoria literária, assim como intensificar a complexa relação entre o global, o universal e o internacional no confronto com a cultura. Para tanto, recorre-se ao método da comparação diferencial e seus múltiplos modos de conceber a dinamicidade dos gêneros, dos mitos e dos textos em um regime de migrações e de contaminações cada vez mais atrelados à cultura e aos efeitos de sentido por ela reivindicados e produzidos. Busca-se, ainda, elencar alguns agenciamentos que tornam o texto, o mito e o signo artístico cada vez mais diaspórico, cruzado e fronteiriço.

PALAVRAS-CHAVE:
literatura comparada; comparação diferencial; dinamicidade; generecidade; culturalidade

ABSTRACT

This article aims to problematize some specific notions of the comparative literature, established by criticism and literary theory, as well as to intensify the complex relationship between the global, the universal, and the international confrontation with the culture. The method of differential comparison is used and has multiple ways of conceiving the dynamics of genres, myths, and texts in a regime of migrations and contaminations increasingly linked to culture and the effects of meaning claimed by it and produced. It also seeks to list some assemblages that will have made part of the text, the myth, and the artistic sign increasingly diasporic, crossed and border.

KEYWORDS:
comparative literature; differential comparison; dynamicity; generecity; culturality

O campo da literatura comparada tem se deparado ao longo dos últimos anos com diversos embates em torno de sua dimensão universal. É importante destacar que esse debate se iniciou com os estudos dos gêneros clássicos, de uma taxionomia que perdurou por muito tempo como consenso na área e, de certa forma, legitimou divisões e fronteiras mais respeitadas pelos críticos do que propriamente pelos poetas. De Aristóteles ( 1966ARISTÓTELES, -. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.) a Emil Staiger (1997STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.), muitas questões foram problematizadas, muitas fronteiras foram rompidas diante dos limites não só das teorias críticas quanto das teorias da leitura. O campo expandido dos estudos da recepção marca um espaço importante rumo à crise dos parâmetros universais e globais que assolam o final do século XX. No contexto internacional, a área dos estudos comparados tem se revelado espaço decisivo no cruzamento não só das questões relacionadas aos gêneros, mas dos cruzos culturais cada vez mais explorados e dinamizados contra a herança positivista e cientificista que dominou parte dos estudos literários até o final do século XIX e início do século XX.

Nosso intuito, nesse artigo, não é realizar uma cartografia histórica dos principais marcos que determinaram as mudanças de rumo dos estudos comparados, mas analisar alguns aspectos importantes na mudança de rota da virada taxionômica às insurgências políticas que afetaram e continuam afetando o confronto entre textos, autores, obras, leituras e aproximações transdisciplinares. Os exemplos também não são analisados detalhadamente, uma vez que o objetivo não é o de fornecer uma leitura crítica sobre cada um deles, mas tão somente apresentá-los em relação às principais ideias aqui refletidas e confrontadas. Nessa perspectiva, o hibridismo de gênero passou a ser a regra e não a exceção da produção literária contemporânea, reclamando cada vez mais uma inversão hierárquica a partir da qual não mais o gênero determina a obra, mas a obra desterritorializa o gênero, esgarçando-o e diminuindo sua categoria e status universais. Acreditamos que não se trata exatamente de uma crise da representação, no sentido estético que esteja na base desse abalo sísmico, mas um despertar de consciência que advém do enfrentamento de culturas e de uma transformação da própria noção de história, de teoria e de crítica.

A fronteira e o campo expandido

Uma obra que marca esse divisor de águas é, sem dúvida, Orientalismo, de Edward Said, publicada em 1978 e traduzida no Brasil pela primeira vez em 1990. Trata-se de referência aos aportes que problematizam os mecanismos de colonização responsáveis pela anulação, subjugação e apagamento dos valores culturais do Outro, sejam eles reais e/ou simbólicos. Os dois grandes momentos do projeto colonialista, berço do capitalismo e da modernidade, apontados por Said, correspondem à expansão marítima do século XVI e à colonização da Índia pelos ingleses no século XIX. Esses dois momentos da alta e média história do capitalismo sedimentaram nas culturas “marginais”, fora do “centro”, uma cicatriz, espécie de fratura, trauma, cujas medidas ainda estamos a entender e a buscar, se não uma cura, uma leitura em diagonal. É importante que processo de adaptação, roubo, plágio e apropriações culturais não são filhos unicamente do século XVI e do século XIX: “O orientalismo era urna visão política da realidade cuja estrutura promovia a diferença entre o familiar (Europa, Ocidente ‘nós’) e o estranho (Oriente, Leste, ‘eles’)” ( Said, 1990, p. 54SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.). O autor, refere-se ao campo dos estudos literários da seguinte maneira:

Mas não há como escapar ao fato de que os estudos literários em geral, e os teóricos marxistas americanos em particular, têm evitado o esforço de fechar seriamente a brecha em ter os níveis básico e superestrutural na erudição textual e histórica; em outra ocasião, cheguei até a dizer que o establishment literário-cultural como um todo tinha declarado estar fora dos limites o estudo sério do imperialismo e da cultura. Pois o orientalismo põe-nos diretamente frente a esta questão - isto é, faz-nos perceber que o imperialismo político domina todo um campo de estudo, imaginação e instituições eruditas -, de tal modo que torna o fato impossível de ser ignorado intelectual e historicamente. No entanto, haverá sempre o perene mecanismo de escape de dizer que um erudito literário e um filósofo, por exemplo, são treinados, respectivamente, em literatura e em filosofia, não em política ou análise ideológica. Em outras palavras, o argumento especialista pode agir com muita eficácia para bloquear a perspectiva mais ampla e, na minha opinião, mais séria intelectualmente ( Said, 1990, p. 12SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.).

Outra perspectiva importante foi aberta pelos estudos de Cheickh Anta Diop. Sua obra aponta para essa “partilha” cultural desde os herdeiros do Nilo, referindo-se aos gregos que foram buscar no Egito a base de sua civilização e de sua cultura altamente contaminada, nem sempre admitida, pelo Outro. Os estudos do africanista apontam para uma crise no conceito de “fonte” e de “origem” que fundam os estudos comparados e que, em nossa concepção, são responsáveis pela criação de sistemas hierarquizantes e universais, reproduzidos ao longo do tempo e, em larga escala, balizadores dos parâmetros de legitimidade do discurso globalizante e hegemônico, seja em relação às obras literárias comparadas ou aos seus respectivos gêneros associativos.

É muito importante entender que estética como disciplina formulada por Alexander Baungarten (1993BAUNGARTEN, Alexander. Estética: a lógica da arte e do poema. Tradução de Míriam Sutter Medeiros. Petrópolis: Vozes, 1993.) no século XVIII não pode mais ser compreendida apenas como campo isolado de conhecimento, pautado no estudo da obra de arte e do belo. A estética, assim como a literatura comparada, enquanto disciplinas, têm paulatinamente exigido uma miríade política sobre as relações que as fundam. Tal necessidade aparece fortemente na noção de “dialogismo cultural” de Mikhail Bakhtin (2003BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) e de “différance” ou “quase-conceito” de Jacques Derrida (1971DERRIDA, Jacques. A escrita e a diferença. São Paulo: Perspectiva , 1971.). Autores que retomaram a exigência de perceber a singularidade de cada obra em seu respectivo contexto de enunciação. A noção de “polifonia” de Bakhtin, como sabemos, coloca sob suspeita a própria noção de originalidade e de fonte, marcando a consciência da pluralidade de vozes que habitam as obras de um(a) determinado(a) autor(a) e do jogo que cada um(a) deles(as) elabora frente à tradição. No prefácio à edição francesa de Estética da criação verbal ( 2003TODOROV, Tzvetan. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes , 2003.), Tzvetan Todorov destaca:

Mais do que construção ou arquitetura a obra é acima de tudo heterologia, pluralidade de vozes, reminiscência e antecipação dos discursos passados e futuros, cruzamento e pontos de encontros; ela perde de repente sua posição privilegiada. Portanto, Bakhtin reencontra a transtextualidade, não mais no sentido dos ‘métodos’ formalistas, mas no sentido de um pertencer à história da cultura ( Todorov, 2003TODOROV, Tzvetan. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes , 2003., p. 30). 1 1 Ver “Prefácio à edição francesa”. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Ver também o imprescindível The conquest of America: the question of the other. Oklahoma: University of Oklahoma Press, 1999.

Essas noções articulam-se diretamente com a perspectiva tomada por Edward Said ao confrontar o papel do “Outro” na constituição do “Nós”. O processo de subjugação de uma cultura por outra foi naturalizado ao longo do tempo e defendido sob a égide de um suposto progresso coletivo e global. Se a busca por princípios universais coincide com o que ficou conhecido como globalização e, mais recentemente, como unificação/conexão através da noção de rede, percebemos que a base de sustentação do propósito universalizante e globalizante é o mesmo, a saber: o poder sobre determinada obra-povo-cultura. Afirmar-se como “fonte” e como “origem”, nesse contexto, não é apenas uma forma de ser honesto intelectualmente, mas uma estratégia de guerra, cuja linguagem passa a operacionalizar uma dinâmica fundamental na divisão hierárquica e nos dispositivos de controle.

À medida que o Outro é “encontrado”, sua comparabilidade passa a se dá por colisão forçada aos desígnios do Pai que o adota como provedor e, muitas vezes, determinador de seus limites. Desse modo, a máxima de que “o bom filho sempre à casa torna” passa a ser o parâmetro da colisão agora não mais forçada, mas, paradoxalmente, cada vez mais requerida pelo oprimido. Essa fratura é a base de uma fissura que sedimenta o patriarcado de um texto sobre outro texto, de um(a) autor(a) sobre outro(a) autor(a), de uma leitura sobre outra leitura, de uma civilização sobre outra civilização e assim por diante. Um dos primeiros, dentre os importantes estudos traduzidos e publicados no Brasil em 1995, foi Qu’est-ce que la littérature comparée (1983), de P. Brunel, CL. Pichois e A. M. Rousseau. A obra divide-se em sete partes, a saber: nascimento e desenvolvimento da disciplina literatura comparada; os intercâmbios literários internacionais; a história literária geral; história das ideias; uma reflexão sobre a literatura; temática e tematologia; poética. Nela, é importante observar o aspecto central que relaciona a função do comparatista ao campo relacional, assim como os desdobramentos de suas atividades, sobretudo àquelas que envolvem não apenas um olhar sobre a continuidade da tradição, como também o espírito das obras e dos autores comparados.

A preocupação com a obra, ainda que aponte para uma vertente estruturalista, muito forte nos estudos literários das décadas de 1960 e 1970, afastando-se da periodicidade e das condições enunciativas, ainda está condicionada por uma espécie de manutenção do caráter global e universal da literatura comparada como sendo um macro sistema ancorado em um conjunto de regras e de modelos previamente estabelecidos, ou seja, de uma pseudo-irmandade a partir da qual as obras ligam-se e matricialmente vinculam-se, seja tematicamente ou por seus efeitos de sentido quase sempre alicerçados por questões de gênero, de motivos, de traduções, de estilo, etc. Nesse sentido, os autores privilegiam, obviamente, o contexto ocidental, e mais especificamente o europeu, elegendo e destacando como exemplo o Romantismo e os seus respectivos desdobramentos enquanto movimento de corte e ruptura com a tradição. Evidentemente, não se trata de uma ruptura qualquer, mas aquela ancorada não só na ideia de influência como na de retomada das ligações de familiaridade, ou dito de outra forma, dos “conjuntos literários” e dos “quadros naturais” sempre passíveis de atualizações em um eterno presente. Para eles:

A qualidade de uma obra que a literatura universal considerará não é devida inteiramente ao gênio de seu criador: está ligada à sua universalidade original. O classicismo francês, graças ao seu racionalismo aparente, foi adotado sem dificuldade pela Europa e oferece ainda ao conjunto do mundo um valor de pensamento e de arte que desperta e estimula a reflexão. O Romantismo alemão não tem um menor valor absoluto; entretanto, o que contém de típico e de individual se chocou e se choca ainda contra resistências estrangeiras. A estreita associação de uma literatura e de uma civilização hegemônica favorece o acesso desta literatura ao nível da literatura universal. As dificuldades de tradução a prejudicam como, geralmente, também o fato de pertencer a uma minoria linguística. Falta, pois, bastante para que a qualidade seja o fator determinante. Porém, a literatura universal ideal deve procurar por toda a parte as obras que, por suas qualidades merecem uma audiência internacional, mas que não a obtiveram ainda. ( Brunel; Pichois; Rousseau, 1995, p. 63-64BRUNEL, Pierre; PICHOIS, Claude; ROUSSEAU, André-Michel. Que é literatura comparada? Tradução de Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva, 1995.).

Atentemos para o perigo dessa ideia já contundentemente colocada e criticada pelos estudos culturais e pela estética da recepção. O que caracteriza uma obra universal parece ser para os autores o sucesso internacional garantidor de uma certa qualidade duradoura e inquestionável a partir de uma certa blindagem que a obra supostamente universal adquire contra o tempo. Global, universal, mundial e internacional parecem tornar-se sinônimos, palavras unidas pelo propósito quase cristão de tornar visível aquilo que continua no anonimato ou na melhor das hipóteses na clandestinidade. A dificuldade de manutenção desse tipo de raciocínio e de sua aceitação na atualidade advém da própria incoerência de seu argumento, fundado no encontro e no reconhecimento. Um encontro não pode ser regido pela balança de um único lado, mas pelo diálogo intermitente com o outro. Ou seja, o ato de pensar a comparação e os sistemas de troca como forma de tornar visível, retirar da invisibilidade uma determinada obra circunscrita a uma “minoria linguística” anula o poder da obra no exato momento em que pretende socorrê-la do anonimato, salvá-la do ostracismo e inseri-la no tão almejado circuito “global”. O encontro exige, contrariamente e criticamente, uma escuta sobre a obra que se apresenta como o outro do discurso. Essa escuta não pode ser passiva sobre o objeto, mas interativa e interacionista. Tal visão também reduz o papel da tradução ao espaço fático da linguagem, despotencializando seu poder de criação. 2 2 Para mais argumentos sobre o papel da tradução, além dos estudos de Haroldo de Campos, ver o excelente ensaio A viagem de traduzir (2023), de Dominique Grandmont. Sobre o assunto, explica Dominique Grandmont:

Por conseguinte, é o tradutor que fabrica o original, que o constitui como tal, tomando-o como objeto do seu trabalho, o qual consiste, se me fiz entender, em produzir um segundo original (e assim por diante: pois isso também não é suficiente para parar de escrever). A tradução seria - compete-vos julgá-lo - um segundo original, desfigurado ou transfigurado, mas igualmente autêntico que, ao substituir a origem, compensaria a sua perda - que acusaria esta perda e a transferência de autoridade que arrasta consigo -, uma vez que o tradutor é o segundo autor, o refundador do discurso. Traduzir é, pois, conseguir fazer - com ou sem razão - o luto original. ( Grandmont, 2013, p. 66GRANDMONT, Dominique. A viagem de traduzir. Tradução de João Domingues e Maria de Jesus Cabral. Coimbra: Edições Pedago, 2013. ).

É importante perceber que a ideia de globalização e de universalização do objeto estético está impregnada de exclusão estrutural, mesmo quando repleta de boas intenções. Exclusão, racismo e colonialismo estão sempre fortalecidos pela ideologia salvacionista de rendição e alforria. Tanto as Américas quanto as Índias vivenciaram na pele o peso dos exércitos da salvação, cujo objetivo principal era e continua, de algum modo, sendo uma forma de controle sobre o outro. O global, enquanto sistema dinâmico e unificador, dá exatamente o contrário do que promete oferecer, uma vez que sempre se trata de unir para dominar. Evidentemente, faz-se mister entender que a Europa não é um todo homogêneo, mas um espaço heterogêneo, multilíngue e repleto de contradições, muitas delas inclusive advindas dos sucessivos processos de deslocamentos, viagens, migrações, diásporas forçadas, exílios etc. Um sempre violento e fantasmagórico encontro entre Próspero e Caliban.

Caliban
Tenho que jantar.
A ilha é minha, herdei-a de minha mãe Sycorax,
E você a tirou de mim. Quando chegou
Era todo afagos e lisonjas, me trazia
Água com framboesas e me ensinou
A nomear a luz maior e a menor,
Que queimam de dia e de noite; e assim lhe amei
E lhe mostrei todas as qualidades da ilha,
Fontes frescas, poços salgados, lugares férteis e estéreis -
Maldito seja por ter feito isso! Que todos os sortilégios
De Sycorax, sapos, escaravelhos, morcegos lhe alcancem!
Agora sou seu único súdito,
Mas antes era meu próprio rei, e me mantém maltratado,
Nesta rocha nua, interditando-me
O resto da ilha. ( Shakespeare, 2014, p. 61SHAKESPEARE, William. The tempest/A tempestade. Tradução de Rafael Raffaelli. Edição bilingue. Florianópolis: Editora da UFSC , 2014.).

Muito se tem produzido a respeito da tendência assumida pela literatura comparada tradicional em privilegiar o estudo das influências. Essa perspectiva, embora não seja mais hegemônica, ela ocupa uma vertente do pensamento ainda bastante arraigada às metodologias e aos sistemas comparativos em uso. Isso ocorre devido a um comportamento sedimentado na ideia de similitude, semelhança que norteou e continua norteando muitos dos estudos inter e extraliterários. É inevitável entender que não há mais espaço para as teorias literárias fora do campo das teorias da leitura, consequentemente dos meios e procedimentos de análise que incorporam, em sua hermenêutica, modos diferenciados e cruzamento de abordagens. O esforço em manter a especificidade da disciplina literatura comparada no esteio dos formalistas russos causou algumas posturas radicais diante das possibilidades de seu objeto. Os comparatistas mais conservadores têm muitas vezes negligenciado inúmeras possibilidades de percebê-la na relação com outras linguagens artísticas e em um campo cada vez mais expandido, a partir do qual a própria ideia de literário é performatizada. Sandra Nitrini, em seu livro, obrigatório para quem se interessa pelo assunto, assinala:

O comparatismo tradicional existe ainda e, de certo, será cultivado por muito tempo, mas acha-se hoje relegado à periferia das pesquisas. Uma das tendências atuais da literatura comparada é antes de tudo transcender as fronteiras nacionais e linguísticas, a fim de examinar as questões literárias gerais de um ponto de vista internacional. Daí seu empenho em detectar leis comuns às literaturas nacionais ou, pelo menos, àquelas cujas histórias apresenta analogias, para descobrir sob que linha de força geral as literaturas evoluem. Tal procedimento necessita não somente de uma terminologia isenta de qualquer conotação nacional, mas também de princípios aplicáveis a um grupo de literaturas. ( Nitrini, 2010, p. 117NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e cultura. São Paulo: Editora da USP, 2010. ).

A autora, após perpassar pelas principais linhas de pensamento que constituíram a trajetória da literatura comparada nas últimas décadas, descarta uma única teoria que constituiria a base da literatura comparada, defendendo como princípio o cruzamento de metodologias e o caráter plural do comparatismo atual. Ainda que se mantenha dentro do escopo de uma visão utópica “examinar as questões literárias gerais de um ponto de vista internacional”, sem detalhar precisamente como realiza-la, a autora evidencia a necessidade de revisão das bases que sustentam o campo da literatura comparada. Claro está que qualquer método que preserve a honestidade intelectual nos estudos comparativos necessita passar inevitavelmente por duas áreas a priori, a saber: a dos estudos literários e o dos estudos linguísticos. Por mais óbvio que pareça esse critério, ora ele tem sido negligenciado, ora servido de resistência a voos mais abertos, como a comparação entre linguagens artísticas distintas ou as migrações de signos verbais para outros campos da representação, tais quais: visual, gestual, performático, etc.

Quando se compreende a obra de arte como um signo social, criada e recepcionada em um determinado contexto enunciativo, mais evidente se torna seu caráter relacional. Mais do que pensar a análise, interpretação e leitura como fenômenos voltados para uma imanência do texto/obra, torna-se importante compreender o dinamismo que a coloca em movimento, suas linhas não só de analogia e articulação com as que a antecederam, mas sua capacidade de desvio da influência, de alteração na marcha própria do gênero que a absorve em seu sistema de classificação. O corte necessário com o pai e a mãe, nesse caso sempre adotivos. A obra adotada torna-se órfã, à deriva de uma leitura que a ressignifique. Há obras que alteram a própria moldura do gênero, a exemplo das obras de Bertolt BrechtBRECHT, Bertolt. Antígona de Sófocles. In: BRECHT, Bertolt. Teatro completo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993 [1947/1948]. p. 191-251., que, ainda que se inscrevam na tradição dramática, sustentam-se a partir da estrutura épica. Podemos pensar também, no jogo que Wole Soyinka estabelece entre os mitos gregos e os mitos africanos, em sua reescrita baseada em encontros culturais revisitados. Sobre o escritor, Eliana Lourenço de Lima Reis explica:

Em lugar de opor duas divindades de tendências contrárias, Soyinka define Ogun como “a totalidade das virtudes dionisíacas, apolíneas e prometeicas”. Como Dionísio, Ogun enfrenta a experiência da desintegração e da sobrevivência ao atravessar o abismo/caos da transição; daí ser ele não só trágico, mas também o modelo de todos os heróis. Como Apolo, Ogun simboliza a essência da criatividade: é ele quem efetua a passagem do caos para a cultura, introduzindo o ferro, ação que inspirou a arte trágica. Segundo Soyinka, ‘Ogun é a personificação da ousadia, o instinto prometeico do homem, constantemente a serviço da sociedade para sua autorrealização’. Como Prometeu, que sofreu por ter criado o homem e lhe ter dado o fogo divino, fonte de vida, inteligência e vontade, Ogun ousou abrir o caminho entre os deuses e os homens através de sua iniciativa. Por isso, esse orixá encarna a vontade de poder da comunidade. Embora Soyinka descreva Ogun como abrangendo em si os atributos de Apolo, Dionísio e Prometeu, sua tendência é enfatizar a ligação entre o deus Prometeu e a importância da vontade que leva a ação. ( Reis, 1999, p. 161REIS, Eliana Lourenço de Lima. Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem cultural: a literatura de Wole Soyinka. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999.).

O diálogo intercultural entre duas ou mais obras também prescinde uma escuta baseada não nas respostas que um dos lados deseja/impõe escutar, mas de um jogo que Ute Heidmann cunhou de “pergunta e resposta”. A autora - que critica a visão folclorista dos gêneros, defendida pelos comparatistas tradicionais que fundamentaram seus argumentos em relações de aproximação, de semelhança e de continuidade entre contos, poemas, dramas e autores, de preferência da mesma época e entre obras dentro de um mesmo gênero - funda o método da comparação diferencial com base nas relações de diferença e de descontinuidade. Uma obra literária é sempre uma resposta a uma outra obra, fundada não no princípio de semelhança e de homenagem, mas de diferença.

Tudo indica que o ponto de partida de Heidmann está ancorado na proposição dialógica defendida por Mikhail Bakhtin. 3 3 Em 2015 no Congresso de Literatura Comparada em Viena, defendi uma aproximação entre o método da comparação diferencial, proposto por Ute Heidmann, e o princípio de “differance”, presente em Jacques Derrida. A autora não reconheceu de imediato a aproximação, apontando a necessidade de um aprofundamento melhor entre as abordagens. No mesmo grupo de estudos estava a poeta, dramaturga e ensaísta Sylvie Depuis, que apontou a importância de paralelamente aos conceitos de “differance” e “quase-conceito”, atentar para o de “assinatura”, ou seja, da repetição e da interabilidade, pois aquilo que se repete não se repete da mesma forma. O dialogismo cultural, nesse sentido, problematiza a ideia de “fonte” como origem e de “influência” como submissão. Constatar que um texto está sempre em diálogo com outro texto, evidência bastante acolhida pela maioria dos comparatistas contemporâneos, estimula-nos a perceber quais os níveis estabelecidos pelo diálogo proposto, bem como força-nos a investigar qual a natureza desse diálogo.

Nesse sentido, o ato de comparar não constitui um fim em si mesmo. Ele abre horizontes intralinguísticos e extralinguísticos à obra, mobilizando uma série de valores e de efeitos de sentido a partir dos quais e com os quais entra-se em redes cada vez mais amplas de conexão. A duplicidade estabelecida por Julia KristevaKRISTEVA, Julia. La révolution du langage. Paris: Seuil, 1974. entre escritura e leitura que funde a base da interdisciplinaridade abre inevitavelmente o campo não só para relações entre obras literárias, mas para sistemas intersemióticos. A relação entre uma obra e outra ocorre também a partir de uma relação de alteridade, ao ler um texto e reescrevê-lo opera-se uma relação de outridade. Vejamos, por exemplo, a rescrita de Antígona por seis óticas distintas: Antígona, de Jean Anouilh (2008 [1942] ANOUILH, Jean. Antigone. Paris: La Table Ronde, 2008 [1942].); Antígona de SófoclesSÓFOCLES, -. Antígona. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. ( 1947/1948SÓFOCLES, -. Antígone. In: SÓFOCLES, -; ÉSQUILO, -. Três tragédias gregas: Antígone, Prometeu prisioneiro, Ajax. Tradução de Guilherme de Almeida e Trajano Vieira e Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva , 1997.), escrita por Bertolt Brecht; Antigone, de Henry Bauchau (1997BAUCHAU, Henry. Antigone (roman). Paris: Actes Sud-Papiers, 1997. ); Antígone’s Clain ( 2014BUTLER, Judith. O clamor de Antígona. Tradução de André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.), de Judith Butler; Antigone, de Slavoj Zizek (2016ZIZEK, Slavoj. Antigone. New York: Bloomsbury, 2016.) e Antígona: a resistência está no sangue, de Sophie Deraspe (2019DERASPE, Sophie. ANTÍGONA: a resistência está no sangue. Direção: Sophie Deraspe. Produção: Marc Daigle. Canadá: ACPAV, 2019. Drama. 1 DVD (109 min).). As duas primeiras obras aproximam-se em termos de contexto, inserindo-se no mesmo critério de gênero, mas diferenciam-se completamente em termos de estilo. Já a obra de Bauchau, um romance de 356 páginas, escrito em 1997, dilata a paixão da heroína, detalhando sua vida anterior ao confronto com Creonte, sempre sob o alicerce de sua natureza incorruptível.

A obra de Butler, um ensaio que não só problematiza a questão familiar em Antígona, bem como confronta as leituras acerca da personagem empreendidas por Hegel e por Lacan, revitaliza o mito literário à luz da problemática de gênero. Em outra perspectiva, temos a Antígona de Sophie Deraspe, que opera, no cinema, a temática do estrangeiro, do imigrante ilegal, ressignificando o protagonismo da heroína trágica frente ao problema da migração. Por fim, a obra de Zizek aponta uma terceira via na tensão entre a defesa humana de Antígona e a defesa do Estado por Creonte, inserindo o povo, ausente nas tragédias, como uma linha possível de intervenção capaz de introduzir uma saída fora da polaridade entre as duas formas de justiça: theía dikaiosýni e anthrópini dikaiosýni. Já havíamos chamado atenção para esse duplo movimento em que o texto de base também é alterado pelas inúmeras possibilidades que abre no campo leitoral, impossibilitando uma fixação em um único sentido universal, cuja herança se perpetua indefinidamente.

O discurso não pode ser confundido com a obra, com o enunciado. O discurso atravessa a obra e a impulsiona para fora de seus limites de gênero; não se trata de um sistema de continuidade, mas de sucessivas rupturas. Ao se constituir o discurso primeiro, nunca original, institui-se uma falta a ser preenchida por meio de diversas formas e variantes. ( Beigui, 2023, p. 44BEIGUI, Alex. Antígona como dispositivo conceitual em tempos de guerra. In: LOPES, Cássia; SANCHES, João (org.). Veredas do drama. Salvador: EDUFBA, 2023. p. 37-55. ).

O texto trágico de Sófocles torna-se itinerante menos pela temática do que por sua capacidade enunciativa e agenciadora de questões que emergem não da obra propriamente dita, mas das insurgências sociais (individuais e coletivas), reabrindo no texto de base linhas, veredas, conexões e movimentos disruptivos.

Ênfase na comparação diferencial

Os estudos comparatistas parecem aos poucos e em uma velocidade cada vez maior se distanciarem da noção de filiação para adentrarem-se no mundo dos órfãos. As modalidades apropriativas permitem pensar atravessamentos cada vez mais crísicos e críticos em relação à originalidade ou ao suposto original. Trata-se de processos de desleituras da tradição, mas também de reagrupamentos e pistas que levam à transformação do legado recebido. Menos que entender ou diferenciar os níveis de influência e de originalidade ou mesmo de detectar se tal influência/ou imitação é servil, emancipada ou decolonial, vale ressaltar o caráter dinâmico da linguagem e de sua política de empréstimos e intercâmbios, além dos aspectos editoriais envolvidos e quase sempre negligenciados na análise literária. Uma contribuição importante do método da comparação diferencial é a atenção que este dá aos processos de editoração das obras. Nesse sentido, é importante observar que tanto a tradução quanto a edição são responsáveis por desvios de sentido; gravuras e ilustrações colaboram com o imaginário da obra e com certos tipos de códigos de leitura. Os processos autorais, editoriais e leitoriais apontam para o que Jean-Michel Adam e Ute Heidmann compreenderam como categorias dinâmicas em variação. Para os pesquisadores:

Os procedimentos livres ‘de caráter não obrigatório que permanecem próprios de certas obras, certos escritores, certas escolas etc.’, situam-se nas margens variacionais de um ou de vários gêneros. Além disso, no movimento da evolução histórica inelutável de um gênero, ‘a aspiração a uma renovação’ (Tomachevski, 1965) toca, geralmente, os procedimentos canônicos, tradicionais, estereotipados, levando-os mesmo até a passar, às vezes, do grupo dos procedimentos obrigatórios ao dos procedimentos proibidos. A existência, a evolução e a contestação das normas fazem parte da definição mesma dos gêneros e de seu reconhecimento. Os gêneros são - como as línguas - convenções consideradas entre dois fatores mais complementares que contraditórios: o de repetição e o de variação. ( Adam; Heidmann, 2011, p. 25HEIDMANN, Ute; ADAM, Jean-Michel. Textualiaté et intertextualité des contes: Perrault, Apulée, La Fontaine, Lháritier. Paris: Éditions Classiques Garnier, 2011. ).

Tanto o texto quanto o mito podem participar de um ou de vários gêneros. Dito de outra maneira, não se pode tomar um modelo classificatório como perene ou fechado. Mesmo quando apontamos um texto ou um mito como unidade de sentido, o que Adam e Heidmann, seguindo Gérard Genette (1982GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982. ), entendem como “textualidade”, isto é, a “unidade e irredutível singularidade de um texto” e a “transtextualidade”, ou seja, “as forças centrífugas que abrem todo texto para vários outros textos” ( Adam; Heidmann, 2011, p. 26ADAM, Jean-Michel; HEIDMANN, Ute. O texto literário: por uma abordagem interdisciplinar. Tradução de João Gomes da Silva Neto e Maria das Graças Soares. São Paulo: Cortez, 2011.).

A arqueologia baseada em semelhanças e parentescos entre obras e autores define um modo colonialista de se perceber a gênese de uma obra literária e artística. A L.H.O.O.Q (1919), de Marcel Duchamp, parece responder a Mona Lisa del Giocondo (1503), de Leonardo Da Vinci, menos por sua semelhança que por sua resposta intempestiva a dois processos de composição distintos. Elementos aproveitados de uma obra dizem muito mais de seu contexto de enunciação que propriamente de sua fonte. O bigode e o cavanhaque inseridos, por Duchamp, na imagem referente despertam no leitor não só uma ironia, mas uma transtextualidade que pode inclusive implicar, hoje, entre tantas possíveis leituras, uma discussão de gênero.

O método da comparação diferencial, nessa perspectiva, é desafiado ao extremo, uma vez que não obedece a uma lógica discursiva por semelhança e obediência, mas por diferença e insubordinação. A contribuição do método da comparação diferencial proposto por Ute Heidmann apresenta vantagem e perigo ao mesmo tempo. A vantagem está na garantia de expansão do campo e da riqueza de atravessamentos que ele permite; o perigo, na ausência de limites e das competências por parte de alguns que com ele opera e se sente tentado a experimentar.

Como já afirmado anteriormente, é importante destacar que Ute Heidmann parte da noção de “dialogismo cultural”, proposta por Mikhail Bakhtin (2003BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), segundo a qual as relações de gênero e discurso devem necessariamente implicar uma dinamicidade, ao que ela acrescenta: “diálogo intertextual”. Tal dinamicidade pode ser compreendida em paralelo ao que Charles Peirce (2005PEIRCE, Charles S. Semiótica. Tradução de José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva , 2005.) denominou “objeto dinâmico”, cuja semiose se estabelece sobretudo a partir não apenas da singularidade do objeto-signo, mas de suas sucessivas contaminações e contágios ao longo do tempo e a partir das diferentes ações sobre ele.

Um aspecto importante dentro da pesquisa que desenvolvo no Brasil localiza-se na crítica contra a ideia perpetuada pela corrente da tradição comparatista que privilegia o método da semelhança/desvio, bem como da ideia de “origem” e de “fonte” para explicar a ascendência de um mito/texto/signo sobre outro, ou mesmo de uma cultura sobre a outra. No campo do mito, a história levantada por africanistas como Cheikh Anta Diop (1979DIOP, Cheikh Anta. Nations nègres et culture: de l’Antiquité nègre egyptienne aux problèmes culturels de l’Afrique Noire d’aujourd’hui. Paris: Presence Africaine, 1979. ), Marcus Garvey (2021GARVEY, Marcus. The philosophy and opinions of Marcus Garvey: Or, Africa for the africans. New York: Open Road Media, 2021.), Molefi Kete Asante (2024ASANTE, Molefi Kete. The history of Africa: The Ouest for eternal harmony. London: Routledge, 2024. ), entre outros, aponta para a necessidade de revisão/superação da tese de influência, de texto-original ou de texto-fonte defendida por alguns teóricos e estudiosos dos mitos, entre eles: Carl Jung ( 1964JUNG, Carl G. O homem e sues símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. ), Patrice Pavis (2008PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. Tradução de Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva , 2008.), Joseph Campbell (2019CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus: mitologia primitiva. São Paulo: Editora Pallas Athena, 2019.) e Mircea Eliade (1999ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o andrógino: comportamentos religiosos e valores espirituais não-europeus. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes , 1999. ).

No contexto diaspórico e da comparação diferencial, o mito e o texto enquanto signos corresponderiam a uma dinâmica, uma semiose infinita de possibilidades, funcionando em um eterno movimento de pergunta e resposta, mas também de um constante levantamento de tensões. Uma espécie de dinamizadores da própria cultura, a partir da qual a própria noção de cultura é possível. O mito/texto/signo viabiliza, nesse sentido, a possibilidade de ressignificação do próprio conceito de história, uma vez que agrega, expande e permite reler os acontecimentos, além de estabelecer novas perspectivas através de seus agenciamentos e estratégias de reescritas. É importante aqui destacar o notável estudo de Robert Darnton sobre a dificuldade em cartografar os processos de leitura no seio da cultura:

A leitura não se desenvolveu em um a só direção, a extensão. Assumiu muitas formas diferentes entre diferentes grupos sociais em diferentes épocas. Homens e mulheres leram para salvar suas almas, para melhorar seu comportamento, para consertar suas máquinas, para seduzir seus enamorados, para tomar conhecimento dos acontecimentos de seu tempo, e ainda simplesmente para se divertir. ( Darnton, 1992, p. 212DARNTON, Robert. História da leitura. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Unesp, 1992. p. 199-231.).

Consequentemente, explica o autor:

As diferenças parecem infinitas, pois a leitura não é simplesmente uma habilidade, mas uma maneira de estabelecer significado, que deve variar de cultura para cultura. Seria estranho esperar encontrar uma fórmula que pudesse considerar todas essas variações. Mas deveria ser possível desenvolver um modo de estudar as mudanças na leitura no interior da nossa própria cultura. ( Darnton, 1992, p. 212DARNTON, Robert. História da leitura. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Unesp, 1992. p. 199-231.).

O fato de haver invariantes na variação de determinados mitos e textos, ou seja, aspectos que permanecem, não significa dizer que tais aspectos estejam imunes a variações de elementos fora do sistema literário, cujos ruídos e interferências podem causar a própria transformação do signo. Desse modo, a reescritura de um mito ou de um texto em uma outra cultura estabelece uma relação de risco, causada justamente pelos atos apropriativos ou de reescrituras.

Uma vez que o mito e o texto obedecem a categorias de tempo, como bem pontuou Roman Jakobson (2007JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2007. ), tanto de ordem da diacronia (continuidade/sequencialidade) quanto da sincronia (corte/ruptura), pode-se pensá-lo a partir não apenas do que eles significam, mas como são ressignificados no plano da cultura e da história. A ressignificação provocada por um mito ou um texto na cultura e em uma determinada era ou época pode alterar a própria estrutura social de seu tempo. Tal movimento ativo do mito e do texto permite-nos pensar novos formatos enunciativos que revelam a natureza de um campo expandido, ou aquilo que Iuri Lotman (2020LOTMAN, Iuri; SCHÖNLE, Andreas. Culture and communication: Signs in flux. an anthology of Major and lesser-known Works. Tradução de Benjamin Paloff. London: Academic Studies Press, 2020.) já havia definido, referindo-se às semioses artísticas, como sendo “interações culturais geradoras de processos dinâmicos de sentido”.

É no dinamismo da relação que podemos nos aproximar do mito e do texto como sistemas de grande complexidade, a partir dos quais o que é apontado como “semelhança” pode ser lido como regularidade na estrutura, permitindo o reconhecimento, isto é, a invariável do sistema, mas procurando sempre evitar a sua subordinação. Pelo contrário, textos e mitos vistos como potências de expansão, permitindo relacionamentos entre sistemas, sem hierarquizá-los, atentando sempre ao funcionamento social da obra.

Nem tudo no mito e no texto, por exemplo, é coincidente. No movimento de codificação e de decodificação reconhece-se no mito, também no texto literário, um dispositivo pensante externo ao homem, causando modificações profundas em nosso modo de pensar. Podemos pensar o mito no sentido de uma experiência partilhada, de uma cartografia, ou como aponta Jorge Dubatti (2020DUBATTI, Jorge. Teatro y territorialidade: perspectivas de filosofia del teatro y teatro comparado. Barcelona: Gedisa Editorial, 2020.), zonas de subjetivação tanto individuais quanto de grupalidade/coletividade. Ao pensar uma mitocrítica comparada a partir da Comparação Diferencial proposta por Ute Heidmann, estamos pensando uma relação fora da visão de universalidade própria do modelo substancial e instrumental, pautado na descrição e na comparação por semelhança. Contrariamente, abordar o mito e o texto pela ótica da diferença, permite-nos entender a reescrita como um “comportamento restaurado”, no sentido de Richard Schechner (1973SCHECHNER, Richard. Environmental Theater. New York: Hawthorn, 1973. ), um material performado, reorganizado sempre em função de uma negociação entre alteridade(s).

Os mitos de violência, por exemplo, que não só ilustram, mas nos ajudam a refletir sobre os processos coloniais que evolvem a travessia do Atlântico, Europa, África e América - e que marcam aspectos decisivos na cultura de uma nação e de um povo -, permite-nos pensar arquivos carregados de memória e de imagens (Exílio, Corte, Sangue, Família, Morte, Travessia, Encruzilhada). Entender o signo artístico como arquivo leva-nos a horizontalizar os critérios de comparação, permitindo adensar nas camadas e nos ângulos pouco explorados quando balizados por modelos fixos de análise. Os mitos e os textos são trabalhados como operadores que performatizam a situação enunciativa e a impulsionam para aquilo que John Austin (1990AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.) denominou “ato ilocucionário”. Trata-se de um impulso em direção ao real que distancia a tendência global, unificadora e uiversalizante do mito e do texto como mera ficção.

No contexto contemporâneo e dentro de uma postura decolonial, tanto os mitos quanto os textos permitem deslocamentos políticos e a convivência de poéticas diversas, opostas e contraditórias. Desse modo, desenha-se um método não apenas de comparação, mas de cruzamentos, de (re)encenações performativas do cânone em diferentes contextos, definidas não apenas por convenções, mas por pautas, necessidades e urgências. O caráter performativo dos textos e dos mitos questiona os limites e as convencionalidades, denunciando estruturas políticas de subjugação do outro a uma identidade homogênea e autocentrada. O mito e o texto literário, nesse sentido, promovem, através de leituras e reescritas, um desabituar, assombrando noções clássicas e realizando cortes profundos em superfícies. Nunca é demais lembrar que o trabalho de reescritura de um mito ou de um texto passa por diversas edições, configurações textuais, modulações de gênero e variações das formas poéticas, verbais e visuais que integram essas migrações. Segundo Claude Calame:

Em verdade, se os discursos míticos são eficazes é por causa da forte relação que a ficção narrativa e o mundo do texto mantêm com um mundo de representações culturais, correspondentes a um universo de crenças marcadas no espaço e no tempo; e, em razão das formas poéticas e práticas de comunicação em geral que os inserem neste universo, por meio do viés estético e emocional. ( Calame, 2013, p. 212CALAME, Claude. Pour une anthropologie historiques des récits héroïques grecs: Comparaison différentielle et pragmatiques poétiques. In: CALAME, Claude. Mythes (re)configurés: création, dialogues, analyses. Lausanne: CLE - Unil, 2013. p. 201-223. ). 4 4 “A vrai dire, si les discours mythiques sont efficaces, c’est en raison de la relation forte que la fiction narrative et le monde du texte entretiennent avec un monde de représentations culturelles qui correspond à un univers de croyance marqué dans l’espace et dans le temps; c’est en raison des formes poétiques et pratiques de communication en général ritualisées qui les insèrent dans cet univers, par le biais esthétique et par le biais émotionnel” ( Calame, 2013, p. 212, tradução nossa).

Nessa perspectiva, nosso trabalho de pesquisa e investigação sobre os mitos africanos se afasta da ideia do “mito” como simples intriga/fábula e se revela mais próximo da investigação dos elementos peritextuais e iconográficos presentes em uma generecidade discursiva mais ampla. Assim, podemos observar que, se cada gênero de certa forma pertence a um ou mais gêneros e as categorias genéricas se apresentam de forma aberta a outras formas iconográficas, o mesmo ocorre com o mito em suas diferentes metamorfoses. Trata-se de pensar a produção e a recepção não só dos textos clássicos e dos mitos, mas de qualquer texto, dentro dos diferentes tipos de discurso em que tais códigos são reapresentados, reconfigurados, apropriados e em última instância experimentados.

Se o mito é uma ação narrativa, no processo de reescritura, interessa-nos pensá-lo pela sua ação performativa e pela sua capacidade de transformação a partir do diálogo com iconografias e dispositivos culturais. Dito de outra forma, é preciso atentar para a perspectiva sincrônica que envolve a escrita e a leitura de mitos para a cena, sobretudo a cena clássica, o que Claude Calame denominou de “um esquema de ação ritual”. Ao analisar os esquemas estruturais propostos por Lévi-Strauss, Greimas e Propp, Calame chama atenção para o rito de passagem presente nos mitos gregos.

Com o objetivo de ver as variantes do mito em cada obra, é importante compreender, como bem aponta o autor, a língua como expressão concreta do sentido e o mito como forma de pensamento, como expressão de um eu e de um coletivo. A partir da ideia do mito como uma estratégia de ação, é possível expandir suas fronteiras e territórios. Pensar o mito no Brasil, no Chile, na Argentina, nos Estados Unidos, enfim, nas Américas, é diferente de pensar o mito na Europa e na África, assim como na Ásia, na Antártica ou na Oceania.

A própria cultura através da qual o mito se reorganiza insere-nos em uma zona de autonomia, ainda que temporária, permitindo detectar correntes migratórias intertextuais capazes de interferir nas três eras do discurso (a Retórica, a Poética e a Estética) espaços de captura e de devolução. Nesse sentido, mas do que uma questão de gênero e de sua determinação sobre a obra, podemos observar que algumas obras e mitos modificam a própria estrutura de gênero. Muitas vezes, entre dois mitos está a própria estrutura relacional envolvendo uma ou mais culturas, não no que elas se assemelham, mas no modo como divergem e respondem uma à outra.

Mais importante, nessa diretriz, é pensar o que um mito ou texto lê ou o que uma determinada situação mítica ou discursiva reconstrói. Tais situações demonstram tanto movimentos sutis até radicais inversões temáticas. Em autores clássicos como Catulo, Virgílio e Sêneca, sejam em episódios que evoca mitos heroicos ou a ruína familiar, verifica-se o uso abusivo de inversões. Se, por um lado, o mito sugere uma ordem primitiva no mundo, ele sempre aponta para um caráter de renovação. Um mito fundador em uma determinada cultura pode não assumir essa mesma função em uma outra. Contudo, a natureza selvagem é sempre presente em alguns mitos que se impõem pela transgressão: Prometeu, Medeia, Antígona, Fausto; religiosos: Hórus, Isis, Osíris, Exu, Ogun, entre tantos outros. Nesse sentido, Ute Heidmann afirma:

Na história milenar da sua exegese, ganhamos o hábito de atribuir aos mitos gregos e às suas múltiplas reescritas significações pretensamente universais ou arquetípicas que o uso comercial ou ideológico tende a transformar em estereótipos. Ao contrário, desses usos universalizantes dos mitos, a comparação diferencial empenha-se em mostrar que as reescritas dos mitos gregos não se limitam a reproduzir um tal sentido supostamente universal ou arquetípico, e que não são redutíveis a estereótipos, antes criam efeitos de sentido diferentes e novamente pertinentes pelos seus modos, frequentemente complexos e inventivos, de entrar em diálogo com estas ‘velhas histórias’ gregas, de as reconfigurar relacionando-as com as preocupações de outras épocas, de outras culturas e de outros destinatários. ( Heidmann, 2014, p. 11HEIDMANN, Ute. Diálogos intertextuais e interculturais. Tradução de Maria de Jesus Cabral João Domingues. Coimbra: Edições Pedago , 2014.).

A iniciação grega herdada dos egípcios permite questionar e colocar em crise a ideia de fonte, de matriz ocidental. Os processos de migrações que datam de 7 mil anos a.C apontam para uma permanente trama e troca cultural, entre o mundo africano dos egípcios e o mundo helênico. É importante destacar que o processo de iniciação ao mundo mítico de alguns eminentes pensadores gregos como Tales de Mileto, Plutarco, Sólon, Demócrito Isócrates, Pitágoras, entre outros, ocorreu no continente africano. Os gregos conheciam profundamente a mitologia dos faraós, como bem descreveu Earle de MotteMOTTE, Earle de. Egyptian religion and mysteries. Bloomington: Editora Xlibris, 2013. em sua obra colossal Egyptian Religion and Mysteries. 5 5 O autor afirma que Pitágoras permaneceu por 22 anos no Egito.

É curioso constatar que a própria construção dos mistérios órficos e báticos apontam para os gregos como um povo ou civilização “herdeiros do Nilo”. A cosmogonia africana aparece como parte essencial inclusive na divisão dos calendários solar e lunar, bem como nos sistemas complexos de divisão entre os regimes diurno e noturno das imagens ( Durand, 1989DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arqueologia geral. Tradução de Hélder Godinho. Lisboa: Editorial Presença, 1989.), também nos dramas ritualísticos e em algumas personificações animais, como é o caso do Minotauro, que traduz o sistema de representação antropomórfica corpo de homem-cabeça de touro. Esse processo de dinamicidade aponta para algumas peculiaridades, por exemplo: os egípcios utilizavam a palavra “neteru”, traduzida normalmente como “deuses”, para designar poderes, princípios e funções específicas do universo e do homem. A maioria dos egiptólogos/africanistas trata os “neteru” egípcios como leis, princípios e poderes cósmicos. O mesmo princípio sistêmico é encontrado na tradição politeísta yoruba, grega e romana. A personificação dos “neteru”, deuses com qualidades humanas, pode ser entendida como a base que sustenta os mitos de ligação entre o céu e a terra, bem como os processos iniciáticos, não sendo exclusivos de um dado lugar ou cultura.

A partir de tais estudos, faz-se necessário repensar o sistema comparativo por semelhança, fortemente apoiado em uma tese de “influência” ou de “origem/fonte”. As evidências apontam para um campo diaspórico e expandido do mito e do texto, estabelecido sobretudo por migrações, trocas e contaminações entre culturas que envolvem a reflexão sobre a natureza humana, animal e divina em sistemas que foram se complexificando ao longo do tempo por um permanente esquema de trocas, acréscimos e supressões que coloca o discurso em permanente movimento.

Entre o derradeiro e o sobrante

Procuramos apontar neste artigo alguns dos desdobramentos contidos no método da comparação diferencial a partir da relação entre as noções de global, original e influência no seio da tradição comparatista. Claro que não se pode esgotar o campo das possibilidades quando se debruça sobre o comparatismo e seus diferentes modos de realização, leitura e confronto. No entanto, é importante enfrentar o esgarçamento cada vez mais evidente no campo da literatura comparada, sobretudo a partir do corpo a corpo com as obras em seus diferentes contextos de enunciação. Vale ressaltar que obras díspares podem ser aproximadas de acordo com a proposta de leitura apresentada, assim como obras cuja tradição aproximou por similaridades explícitas ou implícitas podem hoje encontrar resistência e até mesmo incompatibilidade em sua mediação material. Ainda que possamos afirmar, não sem cuidado, que o regime autoral é mais estável que os regimes editoriais e leitoriais, ele não está imune às afetações de suas múltiplas formas de recepção.

O comparatista contemporâneo, imbuído de suas múltiplas competências, leitor, crítico, tradutor, deve procurar para além do corpo a corpo com as obras, cartografar as instâncias enunciativas presentes nos processos de contágio, migração e contaminação que uma determinada obra realiza ao longo de sua história. Acredito que a perspectiva atual ao evitar falar de literário, textual, gênero como substância, para uma dimensão mais aberta como literariedade, textualidade e generecidade, evidenciam a tentativa de resposta crítica a um modelo de leitura fundado nas categorias familiares. A inserção do estranho como partícipe do movimento heterogêneo cada vez menos global e menos dependente, e, consequentemente de modelos internacionais unificadores, potencializa a obra para novas modalidades intertextuais discursivas. A literatura comparada assemelha-se a uma base porosa, por demais fragmentária em suas linhas de atuação, cujos objetos dançam à luz de uma diversidade tanto diacrônica quanto sincrônica.

O próprio funcionamento da língua em discurso altera e subverte obras e gêneros, fazendo com que no campo da comparação quase tudo seja relativizado, inclusive a própria estabilidade de gênero. Assim, nem obra e nem gênero, muito menos autores e leitores, podem ser vistos fora de sistemas socioculturais em permanente variação. Para Heidmann e Adam:

O julgamento de participação de um texto a um (ou vários) gênero(s) é, ao mesmo tempo, flutuante e sistêmico, como a maioria das outras operações humanas de categorização. A categorização e a definição de categorias são operações fundamentais que permanecem, na maior parte do tempo, intuitivas. A identificação de um gênero não é um raciocínio abstrato, fundado na recuperação de conjuntos de propriedades definidas. ( Adam; Heidmann, 2011, p. 25HEIDMANN, Ute; ADAM, Jean-Michel. Textualiaté et intertextualité des contes: Perrault, Apulée, La Fontaine, Lháritier. Paris: Éditions Classiques Garnier, 2011. ).

Um aspecto importante que tem contribuído para o revisionismo histórico do campo dos estudos comparados no que diz respeito a apropriações e a reescrituras é a limitante ideia de que o único motivo que leva um autor a se apropriar de outro é o objetivo de criar novos efeitos de sentido. Em verdade, ao eleger um autor ou uma obra, cada autor entra e se insere em um “diálogo intergenérico” (Heidmann; Adam, 2010). Não há como compreender o modo de inscrição de um texto em outro texto sem observar atentamente as variantes culturais, cadeias de citações, comentários, conectores, além das diferenças, muitas vezes disfarçadas pela semelhança de motivos (Heidmann; Adam, 2010). Os exemplos escolhidos por Adam e Heidmann contemplam os contos de Andersen, dos irmãos Grimm, além de mitos gregos da Antiguidade Clássica e autores como Goethe, Kafka, entre outros. A diversidade de exemplos utilizada pelos pesquisadores reforça a ideia da diferença não como algo que separa, mas que fundamenta a relação entre os comparáveis. O que presenciamos ao nos aprofundar no método da comparação diferencial é a indissociabilidade entre língua e invenção, ou seja, por serem diferentes, as línguas forçam os escritores a encontrar novas formas de dizer em contextos discursivos distintos. Desse modo, tanto a língua quanto a obra, quando tomadas pela arte, resistem à globalização:

O apagamento das diferenças culturais em favor de estereótipos faz parte integrante da lógica e da busca de proveito que subjaz à globalização dos mercados e dos media. Na verdade, é mais fácil vender os mesmos produtos no mundo inteiro se os consumidores visados forem do ‘mesmo tipo’ e se for possível dirigirmo-nos a eles através de uma linguagem única, calibrada a partir de necessidades pretensamente universais. Diferentemente do que acontece com os estudos que buscam universais, a comparação diferencial opera o mais próximo possível das obras no momento em que emergem nos contextos linguísticos, discursivos, socioculturais e históricos específicos. Consideramos, de fato, que uma obra literária (tal como um filme ou um ensaio filosófico) constrói os seus efeitos de sentido ao referir-se de modo significativo aos dados do contexto discursivo no qual é realizada. Quando essa obra é reescrita, reeditada, traduzida ou de qualquer outra forma re-enunciada ou reconfigurada, seja pelo seu autor, seja por outros criadores que a ela se referem intertextualmente, seja ainda por outros atores culturais (editores, tradutores, encenadores, cineastas), ela cria por sua vez efeitos de sentido em relação com o contexto discursivo no qual ela é deste modo novamente, ou de outra forma, realizada. Os efeitos de sentido produzidos ulteriormente diferem assim significativamente daqueles produzidos pela obra no momento do seu primeiro aparecimento. ( Heidmann, 2014, p. 15HEIDMANN, Ute. Diálogos intertextuais e interculturais. Tradução de Maria de Jesus Cabral João Domingues. Coimbra: Edições Pedago , 2014.).

Para Ute Heidmann, esse processo ocorre tanto na produção quanto na recepção de uma determinada obra. É o leitor que constrói os efeitos de sentido dentro de seu contexto próprio. Vale ressaltar que muitas vezes os modos de recepção variam não só de categoria, mas, temporalmente, em escalas. Os exemplos advindos do mito literário Antígona, dados no início desta reflexão em forma de artigo, constatam essa diretriz. Nesse ponto, a abordagem de Heidmann se distancia da perspectiva de Gérard Genette (1982GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982. ) e de suas categorias de “hipotexto” e “hipertexto”, justamente porque em tais categorias não se enfatiza o deslocamento, as inversões, prendendo-se muitas vezes tão somente ao tema e aos motivos. Em contrapartida, é preciso afirmar o caráter inesgotável do dialogismo intercultural e transcultural, sua quase ausência de moldura.

Mais do que identificar sentidos na linha do tempo, o método da comparação diferencial permite pensar as configurações do ponto de vista da invenção e da diminuição de categorias binárias que sustentam falsas oposições, como entre a literatura oral e a literatura escrita, negligenciando, segundo Heidmann, o permanente jogo de justaposição entre palavra escrita e palavra oral. Acreditamos que o método da comparação diferencial, por estar sustentado fortemente na noção de interculturalidade discursiva, pode e deve dialogar com os estudos decoloniais e contracoloniais que colocam em xeque velhos problemas à luz de novas respostas ou mesmo à busca de obras clássicas e da tradição para novas e emergentes questões.

REFERÊNCIAS

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  • JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2007.
  • JUNG, Carl G. O homem e sues símbolos Tradução de Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
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  • REIS, Eliana Lourenço de Lima. Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem cultural: a literatura de Wole Soyinka. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999.
  • SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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  • SHAKESPEARE, William. The tempest/A tempestade Tradução de Rafael Raffaelli. Edição bilingue. Florianópolis: Editora da UFSC , 2014.
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  • STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
  • TODOROV, Tzvetan. Estética da criação verbal São Paulo: Martins Fontes , 2003.
  • ZIZEK, Slavoj. Antigone New York: Bloomsbury, 2016.
  • 1
    Ver “Prefácio à edição francesa”. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Ver também o imprescindível The conquest of America: the question of the other. Oklahoma: University of Oklahoma Press, 1999.
  • 2
    Para mais argumentos sobre o papel da tradução, além dos estudos de Haroldo de Campos, ver o excelente ensaio A viagem de traduzir (2023), de Dominique Grandmont.
  • 3
    Em 2015 no Congresso de Literatura Comparada em Viena, defendi uma aproximação entre o método da comparação diferencial, proposto por Ute Heidmann, e o princípio de “differance”, presente em Jacques Derrida. A autora não reconheceu de imediato a aproximação, apontando a necessidade de um aprofundamento melhor entre as abordagens. No mesmo grupo de estudos estava a poeta, dramaturga e ensaísta Sylvie Depuis, que apontou a importância de paralelamente aos conceitos de “differance” e “quase-conceito”, atentar para o de “assinatura”, ou seja, da repetição e da interabilidade, pois aquilo que se repete não se repete da mesma forma.
  • 4
    “A vrai dire, si les discours mythiques sont efficaces, c’est en raison de la relation forte que la fiction narrative et le monde du texte entretiennent avec un monde de représentations culturelles qui correspond à un univers de croyance marqué dans l’espace et dans le temps; c’est en raison des formes poétiques et pratiques de communication en général ritualisées qui les insèrent dans cet univers, par le biais esthétique et par le biais émotionnel” ( Calame, 2013CALAME, Claude. Pour une anthropologie historiques des récits héroïques grecs: Comparaison différentielle et pragmatiques poétiques. In: CALAME, Claude. Mythes (re)configurés: création, dialogues, analyses. Lausanne: CLE - Unil, 2013. p. 201-223. , p. 212, tradução nossa).
  • 5
    O autor afirma que Pitágoras permaneceu por 22 anos no Egito.

Editado por

editor-chefe:

Cássia Maria Bezerra do Nascimento

editora executiva:

Rachel Esteves Lima

editor associado:

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    17 Dez 2023
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