Acessibilidade / Reportar erro

O real e seu imaginário

The real and its imaginary

RESUMO

Este artigo examina o caráter simbólico da nova moeda brasileira, o Real, cujo nome sugere sua ambição de não apenas representar um valor, mas ser a própria realidade. Além disso, a utilização de imagens naturais, em vez de históricas, no carimbo das novas notas indica o desejo de dar o caráter de realidade à moeda lançada em 1994, enquanto mostra a inflação como produto de uma imaginação desordenada. Portanto, a nova representação simbólica da moeda combina muito bem com o discurso político que sustenta o real.

PALAVRAS-CHAVE:
Real; estabilização; inflação

ABSTRACT

This paper examines the symbolic character of the Brazilian new currency, the Real, whose name suggests its ambition of not only represent a value, but to be the reality itself. Also, the utilization of natural pictures instead of historical ones on the stamp of the new bills points the wish of giving the character of reality to the currency launched in 1994, meanwhile shows the inflation as product of a disordered imagination. Therefore, the new currency symbolic representation matches very well to the political discourse that sustains the Real.

KEYWORDS:
Real; stabilization; inflation

INTRODUÇÃO

Uma das questões essenciais na doutrina econômica é a da moeda como representação, no caso, de riquezas. Mas a moeda também pode ter o papel de representar - ou simbolizar - conteúdos menos tangíveis, não econômicos, em especial os que constituem, por exemplo, uma nacionalidade. Este outro caráter representativo da moeda, estreitamente ligado à sua denominação, mas dependente, está óbvio, de sua eficácia propriamente econômica, constitui tema já não da economia, porém daquelas ciências humanas que lidam com a significação das ações, o que é o caso da antropologia, ou, se deixarmos de lado a aspiração científica, para enfatizar o exame dos pressupostos e significações, o da filosofia política.

As páginas que se seguem pretendem, assim, ao estatuto de um ensaio sobre o caráter simbólico da nova moeda que foi prometida aos brasileiros em fevereiro de 1994. Iniciadas em março daquele ano1 1 Uma primeira versão deste texto, com oitenta linhas, saiu na Folha de S. Paulo, em 11-3-1994, tão logo foram mostradas as cédulas da nova moeda. , remeterão, talvez, à antropologia na medida em que buscam as significações, porém mais certamente a filosofia, na medida em que lidam com pressupostos e implicações; mas, de todo modo, estarão tentando deslindar algo da complexa simbólica que tem sido proposta, estes meses ou anos, sobre a inflação e os modos de vencê-la.

I

Do simbolismo da nova moeda, o primeiro ponto a ressaltar tem de ser o fato de que ela retoma o nome de velha moeda, o real, de plural réis. Enfatizemos sua velhice, porque mesmo nossos pais ou avós conviveram, já não com o real, mas com o mil-réis, que foi substituído em 1942, no governo de Getúlio Vargas, pelo cruzeiro. Naquela época, o real deixara, havia muito, de constituir unidade de conta ou monetária, substituído que fora por seu múltiplo, o mil-réis. Não deixa de ser curioso que o Brasil tenha conhecido, como unidade de moeda, um milhar, e que em boa parte de nosso regime republicano a moeda evocasse a realeza extinta e banida.

Ora, o retorno a velhos nomes parece constituir um distintivo de nossa cultura monetária desde que, com a democratização e o governo civil, os “planos” substituíram os “pacotes” da ditadura militar. Tivemos primeiro o cruzado (1986), que já fora moeda em Portugal à época das Navegações. Voltamos, com a reforma Collor (1990), ao cruzeiro. Recentemente (1994), ao real, precedido, é verdade, do cruzeiro real (1993). Pode-se supor, nessa constante retomada de antigas denominações, uma mitificação do passado: tentar-se-ia, a cada série de fracassos, desfazer os erros recentes e propor um novo começo, que por ser na verdade um retomo a um antigo nome, literalmente viria zerar as vicissitudes, os percalços. Teríamos assim uma versão monetária da idade de ouro. Os nomes antigos deteriam alguma solidez, embora de natureza a mais variada. Collor recorreu ao cruzeiro, talvez por ter nascido e crescido sob sua égide; além disso, o cruzado ficara tão associado ao governo Sarney que suprimi-lo podia parecer o modo de pôr termo a uma fase melancólica da direção dos negócios públicos. Do real e do cruzado, porém, fica mais difícil entender o retorno, que à primeira vista até parece resultar de simples coincidência

Isso porque a retomada dos velhos nomes parece fazer-se ante uma inconsciência, se não generalizada, pelo menos dos economistas que propõem as denominações que, a eles, soariam novas. Em 1986 contou-se que o nome da nova moeda fora proposto ao presidente Sarney como sendo contração de “cruzeiro desindexado” (sic), e que teria cabido ao então chefe de Estado, jejuno em economia, porém culto em história, explicar a seus colaboradores que o cruzado foi moeda portuguesa nos primeiros tempos da colonização, circulando, portanto, em nosso território. Da mesma forma, em 1994, o nome “real” aparece como se constituísse novidade, tanto que sequer ocorreu, a quem quer que fosse, utilizar o velho plural réis: basta atentar para o que diziam as personagens dos folhetins televisados da Globo, as primeiras a usar a nova unidade e que a pluralizaram, desde então, em reais2 2 Desde fins de 1993, os personagens da novela Fera ferida falavam em reais, moeda que parecia forte o bastante para se denunciar a corrupção de políticos em termos de “milhares de reais” (e não em milhões ou bilhões) e fazer uma conta de quitanda pela ordem de “um real e tantos centavos” (revalorizando assim a fração, perdida, da moeda). Os dois exemplos inaugurais do discurso sobre uma moeda até então desconhecida são interessantes. Por um lado, trata-se da compra do que é mais simples, mais elementar: a comida; e ainda por cima um alimento natural, não-industrializado. Por outro, menciona-se a corrupção dos homens que deveriam ser públicos, mas distorcem seu papel legítimo. Temos já aqui, na inauguração ficcional da nova moeda, a oposição do simples e natural ao desvio, que desenvolveremos nesta análise: corrupção, aqui, ou inflação, ali, obedecem à mesma lógica do que, torto, foge à ortodoxia natural. Não deve ser por acaso que o simples se mede na unidade da nova moeda, e o corrompido em milhares: a corrupção inflaciona. (Deve ficar claro, a propósito desse exemplo, que não entendemos de forma alguma que uma trama tivesse presidido à constituição das representações do real. O autor da novela apenas compreendeu muito bem qual era o universo fantasmático da nova moeda. E é esse universo, tal como se compôs nos meses de sua introdução, o que aqui nos interessa apontar.) .

Esses fatos levam a duas considerações. A primeira é o possível desconhecimento de nossa história por parte daqueles que propõem nossa economia. Fica difícil, nesse contexto, saber o que é mais significativo - a retomada dos nomes antigos, ou o ignorar que sejam eles antigos. Diante de dois casos concretos, o do cruzado e o do real, a velha frase tão duvidosa, segundo a qual os que desconhecem a história se veem fadados a repeti-la, parece adquirir foros de verdade, pelo menos no plano imediato, o das aparências, o dos nomes3 3 O que toma duvidosa essa frase é o fato de entender a história como pedagogia. Foi essa a forma como se pensou a história até mais ou menos o fim do século XVIII -não como uma disciplina científica, dotada de inteligibilidade própria, mas enquanto uma listagem de exempla, os quais era possível e mesmo necessário expor e interpretar como portadores de lições morais. Ora, a partir do momento em que um estudo científico da história se toma possível, as “lições da história” passam a constituir uma forma de abordagem ao objeto histórico de valor reduzido, inferior: mera prudência, se comparada à inteligibilidade e à cientificidade que agora se podem, da leitura do passado, apreender. Em suma, a história deixa de ser domínio da prudência para sê-lo da ciência, embora permaneça algo da velha imagem numa sua imagem ou uso quase kitsch. Desenvolvi esse ponto no penúltimo ensaio de A Última Razão dos Reis (Companhia das Letras, 1993). . Se as denominações são retomadas na inconsciência dos que têm o poder, que sabemos sempre enorme, de conferir nome, e se isso sucedeu duas vezes nas três, em oito anos, em que se mudou por completo o nome da moeda4 4 Não incluindo, portanto, os nomes “cruzado novo” (1988) e “cruzeiro real” (1993). , abre-se amplo espaço para discutir porque retornariam as mesmas palavras.

Uma segunda consideração estabelece, porém, mais distância, pelo menos entre a moeda anunciada para 1994 e aquela que teve, outrora, a mesma grafia e som. É que real, plural réis, referia-se a el-rei de Portugal; era um caso, como tantos, daqueles em que a moeda tem como nome o do soberano. Podem-se citar os “luíses” e “napoleões” na França, o “soberano”, na Inglaterra, embora nesses casos o nome se dê a um determinado valor, e não à própria moeda, enquanto tal. Mas, de toda forma, o singular de réis remetia ao governante monárquico. Já real, plural reais, remete à realidade. A significação aqui instituída é extremamente rica, justamente por pretender a um grau zero de conotação, à singeleza da identificação com as coisas mesmas.

O que o novo nome indica é que a moeda pretende sair da fantasia e ingressar no mundo das coisas como elas são. O real, moeda que representa riquezas, isto é, bens existentes na realidade, pretende ter a mesma densidade ontológica que seu representado. Almeja assim estabelecer uma relação de razoável transparência - tanta quanta for possível - entre si mesmo e os bens ou riquezas do País. Evidentemente, seria absurdo pretender uma identidade entre o nome e a coisa, entre a moeda e a riqueza; mas o que se quer é ao menos uma transparência, pela qual, depois de anos fortemente inflacionários, em que o significante foi perdendo a significação, com a relação que o constitui com o significado se desvalorizando mais e mais, ele proclame de novo o fato, básico, de somente significar na medida em que remete a um significado.

II

Se essa ambição não parece insensata, nem estranha, vejamos, porém, o que ela pressupõe ou implica: que a inflação, à qual se pretende pôr termo instituindo-se uma nova moeda, seja declarada sinônimo de fantasia. O real terá a positividade das coisas mesmas, e assim marcará o fim da deriva inflacionária, que em última análise passa a remeter a uma gigantesca e auto-alimentada deriva da imaginação. Ao mesmo tempo em que se conota o plano de estabilização pelos traços característicos da realidade, propõe-se, implicitamente (mas o caráter implícito, como o inconsciente é, em relações humanas, fundamental), que nossa economia, enquanto sobredeterminada pelo fenômeno inflacionário, estaria dominada pela irrealidade.

Esse pode ser o pressuposto mais duvidoso no imaginário do real. Mesmo ao não-economista, soa pouco sustentável teoricamente a tese de que a inflação seja, em tão ampla medida, fenômeno de fantasia ou imaginação. É claro que ela tem um forte componente imaginário, que se nota em boa medida na sua própria inercialidade: o fato de que nos acostumamos a contar com a desvalorização do dinheiro que prometemos pagar em um ou dois meses, assim pervertendo o sentido de toda negociação a prazo, seja com cartões de crédito, seja com cheques pré-datados; ou o fato de que, ao mesmo tempo em que nos irrita o aumento dos preços ou das prestações a pagar, alegra-nos a correção monetária da poupança, como se não tivessem, um e outra, íntima solidariedade; ou, ainda, a reação consumista que se seguiu a cada congelamento, em boa medida fruto da pouca disposição a deixar o dinheiro ser remunerado a l% ou 2% ao mês, taxa que, se real, é enorme. Todos esses traços definem, é certo, uma irrealidade de nossa postura ante a inflação. O problema, porém, aparece quando, mesmo que seja apenas ad usum populi, somente para o público externo e por efeito de propaganda, outros elementos essenciais do processo inflacionário, em especial os que dizem respeito aos conflitos em cena, são elididos. Dizendo de outro modo: em vez de se apresentar a inflação tendo como uma, pelo menos, de suas causas os conflitos entre distintos agentes econômicos, prefere-se expô-la como fruto de uma percepção irreal das coisas. O conflito, que é real, vê-se encoberto pela acusação dirigida à fantasia.

O resultado desse deslocamento é evidente. Se a inflação for considerada fruto, ao menos em parte, de conflitos, esses conflitos terão realidade. Fica evidente que há forças que militam pela inflação e/ou que têm algum interesse em sua continuidade. Não se trata de culpar pessoas específicas pela inflação, nem de recair num maniqueísmo simplório, a opor os maus, como inflacionistas, aos bons, que desejam a estabilidade da moeda - mas de indicar que a inflação tem alguma raiz n’ “a realidade”5 5 Aqui não é o caso de discutir o que seria “a realidade”, mas apenas de assinalar que ela, em vez de se opor como locus da racionalidade, aos desvarios da inflação, mantém com esta vínculos, que são da ordem do conflito e não da fantasia. . Portanto, uma solução “neutra” - aquela que simplesmente traduz por algum indicador o que cada um estava ganhando antes de um determinado momento, e a partir daí estabiliza os ganhos respectivos por algum tempo, o necessário para que negociações futuras se deem em novo patamar, realista desta vez -, embora muito desejável, corre o risco de ignorar o fato essencial de que o aumento constante dos preços e assimilados não decorre de uma ilusão na mente dos agentes econômicos, porém expressa um conflito por vezes bastante áspero, e como tal deve ser tratado.

Já, se a inflação decorre de equívocos, em especial da fantasia de que subindo os preços ou salários se ganha mais, o que se pede da política econômica são medidas ou planos, que beneficiarão a todos, ainda que de início importem sacrifícios, sendo, portanto, neutros no começo, e positivos a seguir. Dessa perspectiva, não há confronto entre distintos interesses: há apenas a vitória da razão sobre as paixões, ou das Luzes sobre desejos mal elaborados. Ou, ainda, os interesses tenderão, se bem administrados, a convergir todos, estando por enquanto tolhidos, todos ou quase todos, pela fantasia. Assim, entre todos os que usam a moeda se institui uma certa comunidade, no sentido que assume esse termo (Gemeinschaft) na teoria social: o de um agrupamento cujos membros não estão divididos por interesses, mas de certa forma irmanados pelos mesmos interesses, desde que bem compreendidos.

Talvez o problema teórico que aqui tenhamos seja o indício de como um iluminismo, ou seja, uma teoria tão refinada das relações humanas com o conhecimento, pode gerar uma postura assim ingênua no tocante ao que é a sociedade: com efeito, a crítica das ilusões e do papel que elas têm na produção da infelicidade humana é um dos traços essenciais a nós legados pelas Luzes do século XVIII, que assim abriram espaço para que se deixasse de pensar a política segundo a repetição do Mesmo, e passasse ela a ser considerada como espaço de instituição do Novo, do Diferente. Mas, aqui, a atividade iluminista aparece como reduzindo o sintoma mais grave de nossa economia a um mal-entendido, a algo que poderá ser suprimido a custo relativamente baixo, dado que, a rigor, não contraria interesses relevantes de ninguém. Essa unanimidade possível das medidas, esse consenso que elas podem gerar na medida em que a todos beneficiam, são o que apresenta o Brasil, na perspectiva da moeda criada em 1994, como uma comunidade, na qual todos os esforços poderão convergir (eventuais divergências sendo, portanto, fruto de ignorância ou má-fé). Por atraente que seja essa perspectiva, é dever de quem medita as significações ou os pressupostos alertar para seu caráter, teoricamente, falho.

III

Daí, também, as reticências que esse discurso iluminista - apesar de terem as Luzes uma tradição progressista - suscita na esquerda, entendida em seu sentido mais amplo. Ela é avessa a toda fala que aposte na união nacional, ou na constituição de um espírito comunitário a despeito das diferenças sociais. Isso não implica que a esquerda seja ou deva ser reticente, por definição, ao diálogo ou acordo; apenas, que não pode admitir que tais operações se efetuem como se não houvesse antagonismos profundos. Esse é um princípio teórico consubstancial à própria esquerda, o seu mínimo essencial, sem o qual ela deixa de ser esquerda. Negociar é possível, o que não se pode é fingir que os interesses, na sociedade, são convergentes. Ora, esse princípio teórico parece mais adequado que a mítica do real, para pensar o que hoje vivemos na economia. Não seria sensato reduzir os conflitos de renda encenados na peça inflacionária ao simples roteiro dos ricos contra os pobres, dos empresários contra os assalariados, do Capital contra o Trabalho; na verdade, os conflitos conhecem inúmeras transversalidades, pelas quais, por exemplo, distintos setores empresariais competem entre si de forma até áspera. Por isso, estará errada a esquerda sempre que fizer, do conflito inflacionário, uma representação reducionista, maniqueísta.

A questão teórica interessante que aqui surge é a seguinte: como sucede que o discurso iluminista, em suas origens uma fala de esquerda - se nos remetermos às Luzes do século XVIII-, hoje não apele mais tanto, justamente, a essa família política? Não será este, em boa medida, o problema que hoje enfrentamos, na medida em que uma fratura ocorre no seio da própria esquerda, dividindo, por um lado, os que sustentam discursos e práticas de feitio iluminista, e por outro, os que defendem práticas e discursos que denunciam os primeiros como enganosos, ideológicos, comprometidos com as classes dominantes? A terem razão os segundos, que afinal se mostram mais ligados às definições que costumamos ter da esquerda, os iluministas estarão hoje sendo presa da própria ideologia que tanto, sempre, denunciaram.

Haver-se-ia de pensar se não ocorre, por um lado, o esgotamento do iluminismo enquanto política de esquerda, e por outro, o esgotamento da esquerda enquanto política do iluminismo.

IV

Se retomamos nossa análise, a pretensão da moeda a coincidir com a riqueza, do significante a fazer-se realidade, encontra, nas figuras que ornam a moeda, confirmação. As notas em reais figuram animais de nossa fauna: beija-flor, onça pintada, garça, arara, jaguar.

Recordemos que nas últimas décadas nossas notas - e por vezes as moedas metálicas - alternaram três principais famílias de imagens: grandes personagens da história brasileira, tipos regionais e uma natureza basicamente animal. Isso ocorreu sobretudo depois que se esgotaram as imagens alegóricas, que estiveram presentes nos primeiros decênios do cruzeiro, melhor dizendo, até o advento do cruzeiro de 1970 (ex-cruzeiro novo)6 6 Resumo aqui referências que devo ao livro de Manoel Camassa, Catálogo de Bolso: Cédulas Brasileiras, “Cruzeiro” e “Cruzado”, 1942-1991, Edições Camtel, 1991. . Nas cédulas, desde 1950 as alegorias perdem destaque, ao mesmo tempo em que ressaltam as figuras históricas. Aos poucos, a primeira família de motivos, que a despeito de seu caráter ufanista e grandiloquente dava a medida de uma história, foi cedendo lugar às outras duas, das quais a primeira consolida identidades regionais como sustentáculo de uma suposta identidade nacional (que deveria expressar-se, entre outros suportes, na moeda) e a segunda erige em emblema nossa natureza. Em outras palavras: nos três gêneros temos uma identidade nacional sendo proposta, como, aliás, sempre é o caso quando se trata da moeda de um país. Mas muda o tipo de identidade que se propõe. Detenhamo-nos aqui.

Por muito tempo, as personagens de nossa história que eram homenageadas nas cédulas de papel-moeda representavam sua vertente mais oficial. Eram Tamandaré, Caxias, a princesa Isabel, o barão do Rio Branco. Com a Nova República, porém, começou a ocorrer uma mudança nesse perfil. Começando com Juscelino Kubitschek, em nota de 1985, vieram depois dar o tom figuras salientes de nossa cultura: Cecília Meireles, Machado de Assis, Mário de Andrade, Augusto Ruschi. Foi-se saindo do oficialismo da história marcada pelo governo e pelas armas, construída em torno do Estado nacional e de seus poderes, para se entrar, gradualmente, numa história marcada pela cultura e por seus criadores. Essa história, assim, foi abandonando as efemérides em favor da evocação. Deixaram as notas de ostentar em lugar de destaque batalhas, por exemplo, para apresentar a memória de uma obra, de um bairro. O melhor exemplo talvez seja o Catete, evocado por Machado de Assis: aquela parte do Rio de Janeiro mais conhecida, durante muito tempo, pelo palácio e pelo poder presidencial passava por uma reelaboração afetiva, que convertia o que fora poder oficial em memória carinhosa, afetuosa. Com a nota celebrando Augusto Ruschi, por sinal, deu-se tom ecologista à produção da Casa da Moeda, que agora prestigiava o cultor de nossos beija-flores, o cientista que tentou salvar-se de uma enfermidade fatal recorrendo à pajelança indígena, estabelecendo assim vínculos entre a ciência e a cultura selvagem, entre a razão ocidental e aquilo que para uns é o saber sólido dos que têm sabedoria, e, para outros, mera superstição. Mas, seja como for, ao mesmo tempo em que a cultura no sentido tradicional das belas-letras, ia sendo honrada na figura de nossos grandes escritores, também se homenageava a cultura num sentido próximo ao antropológico, o dos costumes tradicionais, indígenas ou outros, por exemplo, negros, africanos.

Não destoa muito dessa vertente, assim, que os animais passem, de figuração que adorna a homenagem prestada a um Ruschi, a objeto, eles mesmos, do prestígio, o centro da nota. Parece até haver uma continuidade nessa passagem. Com frequência tivemos a natureza completando a exaltação do grande homem; agora, é ela que vemos exaltada. Mas, ainda assim, a mudança é grande e significativa.

Analisando nossa bandeira, recentemente Marilena Chauí lembrava7 7 Na obra mencionada de Evelina Dagnino (org.),Anos 90. que ela, ao contrário da francesa, que aponta para a história e as lutas, exibe um simbolismo inteiramente natural - no caso, vegetal e mineral. Nossa classe dominante, concluía ela, nega a história e tenta identificar seu domínio com a natureza.

Ora, é o mesmo naturalismo atávico, agora transposto ao mundo dos animais, que vai defender as cores do real. A opção pelas imagens da fauna tem vários sentidos. Começa pelo de beleza, de algo atraente, não-conspurcado. Pode, assim, ser um sinal de propaganda tanto interna quanto externa (vale dizer, internacional) do novo papel-moeda. E dessa forma funciona - este, o segundo sentido - como compensação por aquilo que se tomou nossa sociedade poluída, competitiva. Vem assim a encenar uma imagem de equilíbrio, harmonia, inocência - que costumamos associar à natureza virgem, não devastada pelo homem. Não é preciso dizer o quanto esse ideal, que sem dúvida muitos compartilham como meta, é ilusório se for entendido como tradução do que existe, correspondendo pouquíssimo ao que ocorre em nosso País ou mesmo ao que visam as políticas, pública e privada, hoje dominantes.

V

Podemos agora sintetizar o imaginário que se cristaliza na representação da nova moeda. Ela é, por seu nome, realidade, entendida como negação de tudo o que é errático e pernicioso na fantasia. Por sua imagem anunciada, ela pode então desconhecer, e recusar a história, que se passa a entender como uma sucessão multissecular de oportunidades perdidas. Nosso passado, assim, toma-se uma espécie de fantasia, de delírio coletivo e vão. Um passado terrível pode ser concebido, ao modo da psicanálise, como um legado que urge enfrentar, analisar, superar. Seria essa a perspectiva de nossa preferência teórica: um passado marcado pela colônia e pela escravidão não pode ceder lugar, sem maiores problemas, à igualdade e à liberdade, concedidas pelo herdeiro do trono português e pela herdeira da coroa imperial; nossa história sistematicamente deixa os conflitos irresolvidos, concilia o novo extirpando-o de seu gume, fazendo-o ser récupéré pelos condestáveis da forma política e social que se tomou indefensável mas se regenera sob novas vestes; ora, se essa perspectiva tem sentido, é o caso de pensar o passado como uma herança das mais densas, com a qual o trato político prioritário é o do ajuste de contas.

Mas o passado pode, também, ser lançado na conta do non-sense, do carente de sentido, daquilo que, mero balbuciar ou excesso de absurdo, carece de lógica; o problema dessa perspectiva, que é a que presidiu o lançamento do real, está, porém, em perder a compreensão do objeto assim desdenhado e desqualificado. Eis o que é grave na forma como os defensores do real leem, pelo menos em seu uso do discurso imaginário, o passado e a inflação. Tentando vencer o processo inflacionário, procuram fazê-lo passado, deitando-o então na mesma linha do sem-sentido, da desrazão. O perigo é, com isso, desconhecer as razões do que são processos sociais e históricos, sejam eles a inflação ou o passado. Aliás, o problema está justamente em identificarem-se inflação e passado; assim, tudo o que dissemos, nestes parágrafos, de um aplica-se ao outro: encontram-se ambos numa irracionalidade, num exagero de fantasias, nas ocasiões perdidas. Para se fazer passada a inflação, faz-se o passado fala vã, balbuciar de um louco.

Finalmente, a realidade agora invocada se mostra na figura da natureza virgem8 8 A natureza virgem é, sempre que evocada como solução imaginária por uma sociedade desigual e poluída, por uma sociedade francamente desnaturada, imagem de redenção. Pode significar, ao modo de Rousseau, a rejeição radical dessa sociedade. Mas pode, como é o caso em questão, significar antes o recurso ideológico a uma compensação imaginária, que não se propõe a modificar em suas bases o desnaturamento e a poluição. , do começo de tudo. Aqui talvez esteja o cerne ilusório do argumento pelo real, ao elidir o fato essencial de que - exceção feita a algumas referências ao desenvolvimento sustentável - tudo o que tem sido proposto em nossa economia vai na direção oposta à de um bucolismo natural. Mas, e ainda que nossa economia consiga juntar o desenvolvimento ao respeito da natureza, não deixa de ser curioso que as melhores imagens do real sejam as que mostram uma natureza prévia ao civilizado. Aqui, a invocação do novo começo, da partida pura, evidencia-se. Haverá, nesse anseio por uma natureza apenas nossa, e da qual nossos rastros estejam como que apagados, o pressuposto de que a realidade apontada como meta consista na negação mais cabal de nossa história, na denegação plena de nosso passado? Estar-se-á então fazendo da nova moeda um avatar a mais da Idade de - significativamente - Ouro, do passado ou, melhor dizendo, do grau ou ano zero, em que tudo é virgem, em que o mundo se mostra em sua pureza ainda não-conspurcada? E não estará aí, ainda, talvez a razão para a curiosa repetição ignorante dos velhos nomes de moedas? Vimos que se repetiam os nomes, mas que isso se fazia na inconsciência dos economistas; ora, esses dois fatos talvez não se contradigam: é possível que o desejo do grau zero, da pátria moldada a frio, seja tão intenso que precise denegar a história, por um lado, e recomeçá-la, por outro. São dois processos divergentes, mas que obedecem à mesma regra.

  • 1
    Uma primeira versão deste texto, com oitenta linhas, saiu na Folha de S. Paulo, em 11-3-1994, tão logo foram mostradas as cédulas da nova moeda.
  • 2
    Desde fins de 1993, os personagens da novela Fera ferida falavam em reais, moeda que parecia forte o bastante para se denunciar a corrupção de políticos em termos de “milhares de reais” (e não em milhões ou bilhões) e fazer uma conta de quitanda pela ordem de “um real e tantos centavos” (revalorizando assim a fração, perdida, da moeda). Os dois exemplos inaugurais do discurso sobre uma moeda até então desconhecida são interessantes. Por um lado, trata-se da compra do que é mais simples, mais elementar: a comida; e ainda por cima um alimento natural, não-industrializado. Por outro, menciona-se a corrupção dos homens que deveriam ser públicos, mas distorcem seu papel legítimo. Temos já aqui, na inauguração ficcional da nova moeda, a oposição do simples e natural ao desvio, que desenvolveremos nesta análise: corrupção, aqui, ou inflação, ali, obedecem à mesma lógica do que, torto, foge à ortodoxia natural. Não deve ser por acaso que o simples se mede na unidade da nova moeda, e o corrompido em milhares: a corrupção inflaciona. (Deve ficar claro, a propósito desse exemplo, que não entendemos de forma alguma que uma trama tivesse presidido à constituição das representações do real. O autor da novela apenas compreendeu muito bem qual era o universo fantasmático da nova moeda. E é esse universo, tal como se compôs nos meses de sua introdução, o que aqui nos interessa apontar.)
  • 3
    O que toma duvidosa essa frase é o fato de entender a história como pedagogia. Foi essa a forma como se pensou a história até mais ou menos o fim do século XVIII -não como uma disciplina científica, dotada de inteligibilidade própria, mas enquanto uma listagem de exempla, os quais era possível e mesmo necessário expor e interpretar como portadores de lições morais. Ora, a partir do momento em que um estudo científico da história se toma possível, as “lições da história” passam a constituir uma forma de abordagem ao objeto histórico de valor reduzido, inferior: mera prudência, se comparada à inteligibilidade e à cientificidade que agora se podem, da leitura do passado, apreender. Em suma, a história deixa de ser domínio da prudência para sê-lo da ciência, embora permaneça algo da velha imagem numa sua imagem ou uso quase kitsch. Desenvolvi esse ponto no penúltimo ensaio de A Última Razão dos Reis (Companhia das Letras, 1993).
  • 4
    Não incluindo, portanto, os nomes “cruzado novo” (1988) e “cruzeiro real” (1993).
  • 5
    Aqui não é o caso de discutir o que seria “a realidade”, mas apenas de assinalar que ela, em vez de se opor como locus da racionalidade, aos desvarios da inflação, mantém com esta vínculos, que são da ordem do conflito e não da fantasia.
  • 6
    Resumo aqui referências que devo ao livro de Manoel Camassa, Catálogo de Bolso: Cédulas Brasileiras, “Cruzeiro” e “Cruzado”, 1942-1991, Edições Camtel, 1991.
  • 7
    Na obra mencionada de Evelina Dagnino (org.),Anos 90.
  • 8
    A natureza virgem é, sempre que evocada como solução imaginária por uma sociedade desigual e poluída, por uma sociedade francamente desnaturada, imagem de redenção. Pode significar, ao modo de Rousseau, a rejeição radical dessa sociedade. Mas pode, como é o caso em questão, significar antes o recurso ideológico a uma compensação imaginária, que não se propõe a modificar em suas bases o desnaturamento e a poluição.
  • 9
    JEL Classification: Z13; Z19.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1996
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br