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O risco da privatização das telecomunicações no Brasil

The risk of privatizing the telecommunications sector in Brazil

RESUMO

Este artigo discute as políticas de privatização do setor de telecomunicações no Brasil. Levanta algumas questões relacionadas com o impacto dessas políticas e apresenta algumas características de um modelo econométrico/computacional que pode ser usado para analisar esse impacto. Alega que, à luz da experiência internacional, a adoção de políticas de privatização, em geral, é necessária, mas não suficiente. Se análises estatísticas detalhadas a respeito da estrutura industrial dos setores envolvidos não forem realizadas de maneira adequada, é provável que a privatização não traga os ganhos de eficiência esperados. Esse argumento é baseado nas contribuições recentes à teoria dos monopólios naturais das modernas indústrias de produtos múltiplos.

PALAVRAS-CHAVE:
Privatização; telecomunicações

ABSTRACT

This paper discusses policies of privatisation towards the telecommunications sector in Brazil. It raises some issues connected to the impact of these policies and presents some characteristics of an econometric/computational model which can be used to analyse such an impact. It argues that, in the light of the international experience, the adoption of privatisation policies, in general, is necessary but not sufficient. If detailed statistical analyses in respect to the industrial structure of the sectors involved are not properly carried out, it is likely that privatisation could not bring about expected efficiency gains. This argument is based on the recent contributions to the theory of natural monopolies of the modem multi product industries.

KEYWORDS:
Privatization; telecommunications

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho discute políticas de privatização destinadas ao setor de telecomunicações no Brasil, que neste texto representam um amplo leque de iniciativas que podem vir a alterar o balanço entre as esferas pública e privada nesse importante segmento da economia. São levantadas aqui algumas questões relacionadas com o impacto dessas políticas, e se discutem algumas características de um modelo econométrico/computacional para análise desse impacto. À luz das experiências internacionais, argumenta-se que a adoção de políticas de privatização que estejam sendo (ou venham a ser) estimuladas no âmbito do governo federal são necessárias, mas não suficientes.

Se não forem realizadas análises estatísticas detalhadas a respeito das estruturas internas da organização industrial dos setores envolvidos, nas quais sejam apontadas as necessidades (ou não) de sua reestruturação e a influência dos direitos de propriedade em seu desempenho econômico, a mera privatização (em seu sentido mais básico, que é a transferência dos ativos da esfera pública para a esfera privada da economia), poderá não trazer os ganhos de eficiência econômica almejados por essa política pública. Tal argumento se baseia nas contribuições recentes da teoria dos monopólios naturais no âmbito das modernas indústrias de multiproduto.

O trabalho está organizado da seguinte maneira: após esta pequena introdução, a segunda parte apresenta algumas considerações preliminares sobre a emergência de políticas de privatização num contexto internacional, bem como sobre seu surgimento no Brasil. Na terceira parte, discute-se o que viria a ser uma análise da estrutura de organização industrial das telecomunicações no Brasil, e, logo em seguida, a quarta parte trata das características principais de um modelo que se presta a essa análise. O trabalho se encerra com alguns comentários.

2. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

O balanço da atividade econômica em grande parte dos países desenvolvidos e daqueles em desenvolvimento mudou dramaticamente nas últimas três décadas na direção do apoio do governo na provisão de bens e serviços, bem como na regulação do setor privado. Recentemente, no entanto, tem havido um crescente reconhecimento de que distorções causadas pela interferência do governo, como taxas, subsídios, déficits públicos e a pobre performance das empresas estatais, têm posto limites na legitimidade do papel que os governos podem exercer em estimular desenvolvimento (Conable, 1989CONABLE, Barber B. (1989). Foreword of “Developing the private sector: a challenge for the World Bank Group”. The World Bank. ).

Durante muitos anos economistas e outros cientistas sociais entenderam que em certas atividades econômicas a “mão invisível do mercado”, como uma vez reconhecida por Adam Smith, poderia não conduzir a uma alocação de recursos de um modo socialmente desejado. Daí, então, a necessidade da interferência do governo na superação de “falhas nos mercados” (para um recente tratamento dessa questão, v. Krueger, 1990aKRUEGER, A. O. (1990a). “Economists’ changing perceptions of government”. Review of World Economics, 126, pp. 417-31. ).

É fato reconhecido que os mercados podem falhar. A grande mudança recente é que agora também se reconhece que pode haver falha do governo. Desenvolvimentos teóricos e experiências têm levado muitos a questionar se as atividades do governo são levadas a efeito “sem custo e sem interesse próprio” por funcionários públicos, os quais podem oniscientemente determinar exatamente o que constitui, de um ponto de vista socialmente “ótimo”, um conjunto de técnicas e volumes de produção de vários bens e serviços (Krueger, 1990aKRUEGER, A. O. (1990a). “Economists’ changing perceptions of government”. Review of World Economics, 126, pp. 417-31. , 1990b). Em outras palavras, o governo benevolente, sem custo, e guardião social, está desafiado.

O foco de atenção dessa postura crítica tem se dirigido de modo particular à expansão das empresas públicas, ou estatais, as quais representam uma parte significante da produção e do investimento em inúmeros países, fundamentalmente naqueles em desenvolvimento, como é reconhecido internacionalmente o Brasil. Essas empresas foram vistas pelos governos passados como um importante instrumento de fomento de rápido progresso técnico e mudanças.

Em muitos países, no entanto, a contribuição dessas empresas para o processo de desenvolvimento não tem correspondido às expectativas (Cook e Kirkpatrick, 1988COOK, P. e C. Kirkpatrick (1988). Privatisation in less developed countries. Londres,UK. Harvester Wheatsheaf. ). Criadas na expectativa de gerar superávits para os governos, que por sua vez seriam reinvestidos, essas empresas (salvo honrosas exceções) têm demandado massivos subsídios, impondo uma excessiva carga fiscal à economia. Fundamentalmente por essa razão, tem havido uma crescente preocupação com a performance econômica dessas empresas, e isso tem levado, além de outras considerações, à emergência das hoje famosas “políticas de privatização”.

Essa emergência tem sido motivada em países em desenvolvimento pelo exemplo de programas de privatização adotados na década de 80 em alguns países industrializados, notadamente na Grã-Bretanha. Sendo assim, a privatização de indústrias, serviços e agências controladas pelo governo tem sido vista como um mecanismo para beneficiar as finanças públicas e melhorar a performance econômica nos setores envolvidos, e, como consequência, a economia como um todo.

No Brasil, a tese da privatização, apesar de ter sido lançada pela primeira vez pelo economista Ignácio Rangel em 1978 (v. Cavalcanti, 1987CAVALCANTI, J. C. (1987). “O setor de saneamento no Brasil: estrutura, dinâmica e perspectivas”. Tese de mestrado. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ. ), ganhou efervescência com a eleição direta do presidente Fernando Collor, em dezembro de 1989. Como parte de um amplo programa de ajustes devido ao fraco desempenho da economia brasileira nos anos 80, visando a geração de condições necessárias para “ampliar a eficiência da economia, diminuir a pobreza e promover a integração do Brasil na economia internacional por meio da redução do papel do setor público na atividade econômica, da liberalização das transações internas” (Carta de Intenções ao Fundo Monetário Internacional, dezembro/1991Carta de Intenções ao Fundo Monetário Internacional, dezembro de 1991. Publicada na Gazeta Mercantil de 5/12/91. ), o programa de privatizações do atual governo federal vem recebendo a atenção de cientistas sociais, políticos e do público em geral.

Mesmo constituindo-se numa política pública no Brasil desde 1979 (Werneck, 1989WERNECK, R.L.F. (1989) “Aspectos macroeconômicos da privatização no Brasil”. Textos para Discussão n. 23. Departamento de Economia da PUC/Rio de Janeiro.), a ideia das privatizações como uma efetiva política de governo só recentemente vem adquirindo dinamismo em nível nacional, através do Programa Nacional de Desestatização do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. A evidência acumulada das privatizações em nível estadual ainda é incipiente para que se possa estabelecer qualquer comentário.

Enquanto muitos países como o Brasil embarcam em seus programas de privatização, muito se debate acerca da eficiência (ineficiência) das empresas públicas, mas muito pouco é extraído no âmbito de tais discussões. Na realidade, os debates sobre a eficiência de empresas públicas são só ocasionalmente enriquecidos com estatísticas detalhadas sobre análises comparativas entre performances de empresas públicas e de empresas privadas atuando no mesmo momento, no mesmo país e na mesma indústria. Mesmo na Grã-Bretanha, país que liderou nos anos recentes as mais controversas vendas de empresas estatais em toda a história econômica recente, principalmente daquelas ligadas aos setores econômicos de telecomunicações, fornecimento de gás, eletricidade e saneamento, pouco ainda se tem de concreto a respeito da comparative performance da propriedade pública e da propriedade privada.

Um dos principais motivos pelos quais tais análises são limitadas se deve ao fato de que são poucas as oportunidades em que empresas públicas operam (operaram) conjuntamente com empresas privadas num mesmo setor e país. Nos EUA, a pujança econômica dessa nação permite uma grande variedade de casos em que empresas públicas e privadas coexistem em vários setores. No caso da Grã-Bretanha, o primeiro país urbano-industrial e uma das sete maiores potências econômicas do globo, a realidade é outra. E no que diz respeito aos setores de telecomunicações, gás, eletricidade e saneamento, somente no período anterior à Segunda Guerra Mundial é que análises comparativas entre empresas públicas e privadas podem ser efetivamente tratadas, já que no pós-guerra esses setores estiveram (ou estão) completamente na esfera pública ou na esfera privada. Observando esse último período, as análises comparativas de produtividade, custos unitários e políticas de preço se tornam praticamente sem sentido (v. Millward e Ward, 1987MILLWARD, R e R. Ward (1987). “The costs of public and private gas enterprises in late 19th century Britain”. Oxford Economic Papers 39, pp. 719-37. ).

Resumindo, mesmo que, desde a eleição do presidente Collor, venha ganhando corpo no Brasil a ideia de que a privatização é uma política pública visando o aumento de eficiência em certos segmentos econômicos (como é o caso do setor de telecomunicações), pouco ainda se tem de concreto (mesmo em países líderes nessa política como é a Grã-Bretanha) a respeito dos benefícios oriundos da passagem dos direitos de propriedade de indústrias, serviços e agências do setor público para o setor privado da economia.

3. A ANÁLISE DA ESTRUTURA DE ORGANIZAÇÃO INDUSTRIAL DAS TELECOMUNICAÇÕES NO BRASIL

Mesmo que seja fato que ainda se tem pouco de concreto a respeito dos benefícios oriundos de políticas de privatização (entendidas neste texto como um amplo leque de iniciativas que alterem o balanço entre os setores público e privado da economia; v. Cook e Kirkpatrick, 1988COOK, P. e C. Kirkpatrick (1988). Privatisation in less developed countries. Londres,UK. Harvester Wheatsheaf. ), a experiência dos anos 80, bem como a literatura econômica internacional a esse respeito, demonstra que mesmo desse pouco algo pode ser aprendido.

Nesse sentido, é possível arrolar alguns aspectos já absorvidos com relação à privatização em países desenvolvidos, os quais são discutidos em Cavalcanti (1991CAVALCANTI, J. C. (1991). “Economic aspects of the provision and developments of water supply in 19th century Britain”. PhD Thesis. University of Manchester/UK. ):

  • a propriedade das empresas, serviços e agências, por si mesma, tem pouco impacto em custo-eficácia;

  • a concorrência efetiva, mais que a propriedade, é a maior fonte de melhorias em custo-eficácia;

  • os monopólios naturais nos serviços de utilidade pública permanecem um problema. Se, por um lado, em indústrias em que a concorrência “no campo” prevalece, a potencial vantagem em custo é minimizada pela duplicação das instalações implantadas, por outro lado a presença de sunk costs (custos irrecuperáveis) elimina a concorrência “pelo campo”;

  • a privatização pode melhorar a eficiência alocativa, isto é, induzir um alinhamento maior dos preços em relação aos custos.

Sendo assim, é possível argumentar que, à luz dessa experiência, a política de privatizações que começou a ser estimulada pelo governo Collor é necessária, já que o estrangulamento do setor público é visivelmente percebido por amplos setores da sociedade brasileira. No entanto, é também necessário que se argumente que as constatações acima arroladas só puderam ser observadas após um exame de alguns estudos estatísticos que tanto compararam as performances econômicas de empresas públicas e privadas atuando num mesmo momento, setor e país como as dos setores que foram privatizados (em suas fases pré e pós-privatização).

Portanto, como a experiência de privatizações no Brasil é bastante recente, e como são raros neste país estudos detalhados a esse respeito, torna-se prematura a manifestação de opiniões sobre os reais benefícios da privatização como política pública. E foi na perspectiva de contribuir para superar essa lacuna que foi pensado o desenvolvimento de uma pesquisa (v. Cavalcanti, 1991bCAVALCANTI, J. C. (1991b). “Modelo econométrico para análise de impacto de políticas de privatização em estruturas industriais de serviços de utilidade pública: o caso do setor de telecomunicações no Brasil”. Projeto de pesquisa apresentado ao CNPq. ) em que se testasse a seguinte hipótese: “O sistema de telecomunicações no Brasil não tem a característica de monopólio natural”.

A justificativa da necessidade de se testar essa hipótese está baseada em dois importantes aspectos. Em primeiro lugar, apesar de o sistema de telecomunicações no Brasil ter sido preservado pela Constituição de 1988 como sendo um monopólio estatal, caracterizado hoje pela holding Telebrás, acionista majoritária das empresas-polo estaduais (que por sua vez contam ainda com a participação dos respectivos governos estaduais e de uma série de outros acionistas - v. Villela, 1984VILLELA, A. V. (1984). “Empresas do governo como instrumento de política econômica: os sistemas Siderbrás, Eletrobrás, Petrobrás e Telebrás”. Rio de Janeiro: IPEA. Coleção Relatórios de Pesquisa N. 47. Rio de Janeiro. ), não há no Brasil, aparentemente, qualquer estudo que indique que esse setor é um monopólio por natureza, ou melhor, um monopólio natural.

Em segundo lugar, em alguns países denominados “de primeiro mundo” a indústria de telecomunicações vem se transformando rapidamente, sob a influência de inovações tecnológicas e das reações políticas a essas inovações. As respostas das organizações nacionais a esses desenvolvimentos vêm sendo determinadas em larga medida pelo aproveitamento das oportunidades proporcionadas pelas novas tecnologias de informação (Foreman-Peck e Muller, 1988FOREMAN-PECK, J. e J. Muller, (1988). European telecommunication organizations. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft. ). Essas inovações têm posto em xeque conceitos econômicos historicamente arraigados, os quais estão diretamente correlacionados com a questão da mais apropriada estrutura para uma indústria tradicionalmente dominada por uma única firma, como é o caso da Telebrás no Brasil, e como era o caso da AT&T nos EUA até 1982.

O teste da hipótese mencionada é na realidade a análise da estrutura de organização do sistema de telecomunicações no Brasil. Em outras palavras, para se avaliar a estrutura mais apropriada para uma indústria como a de telecomunicações no Brasil é necessário analisar as condições de produção e de custo prevalecentes no seio dessa indústria. Sendo assim, é de fundamental importância avaliar até que ponto a função de custo dessa indústria exibe a propriedade de subaditividade. Como salientado por Hunt e Lynk (1991HUNT, L. C. e E. L. Lynk, (1991). “Industrial structure in US telecommunications: some empirical evidence”. Applied Economics, 23, pp. 1655-64. ), até recentemente a sabedoria convencional ditava-nos que a existência de substanciais economias de escala para um determinado nível de demanda para uma dada indústria era condição suficiente para conferir o status de monopólio natural a essa indústria. Indústrias como as de telecomunicações, que são caracterizadas pela alta intensidade de capital, pelo rápido progresso tecnológico e por um largo grau de organização através de redes, são as mais óbvias candidatas.

No entanto, com as contribuições de Baumol, Panzar e Willig (1982BAUMOL, W. J., J. C. Panzar e R. D. Willig (1982). Contestable markets and the theory of industry structure. Harcourt Brace Jovanovich Publishers, USA. ), e após o refino do conceito de complementaridade de custos, ficou comprovada a inadequação dessa definição de monopólio natural no âmbito das modernas indústrias de multiproduto. Uma firma de multiproduto é monopolista natural se e somente se a função de custo, definida para todos os seus produtos, for globalmente subaditiva. Isto é, para um dado nível de produção de dois produtos Y1 e Y2, a seguinte condição prevalece:

C a Y 1 , Y 2 + C b Y 1 , Y 2 > C c Y 1 , Y 2

em que Ca (.), Cb (.) referem-se aos custos associados a duas firmas hipotéticas que produzem dois produtos. Sendo assim, uma indústria é um natural monopólio para um dado vetor de produtos se a produção por uma única firma formais eficiente do que uma produção em multifirma. Por isso, a simultânea existência de economias de escala e de escopo (economias de produção conjunta), para um dado conjunto de produtos, é a condição suficiente para assegurar a propriedade da subaditividade.

Um estudo com essa característica, isto é, que analise a condição de monopólio natural no sistema de telecomunicações no Brasil (que do ponto de vista da experiência internacional de privatizações ainda é um problema), requer o exame detalhado da estrutura de custos desse sistema, observando o fato de se estar tratando de uma indústria que opera em regime de multiprodução. O objetivo fundamental dessa análise é o de se avaliar as seguintes condições prospectivas:

  • Primeiro, caso o sistema de telecomunicações no Brasil seja de fato um monopólio natural, seria importante examinar o impacto da privatização na organização industrial desse setor, especificamente quantificar a perda de economias de escala e de economias de escopo, se a privatização implicar um sistema multifirma (descentralizado) de provisão de serviços.

  • Segundo, caso o sistema de telecomunicações no Brasil seja de fato um monopólio natural, seria importante examinar a sustentabilidade desse monopólio, se a privatização não implicar um sistema multifirma (descentralizado) de provisão de serviços.

  • Terceiro, se o sistema não for um monopólio natural, seria importante examinar as economias (de escala e de escopo) que podem vir a ser obtidas, caso a privatização implique um sistema multifirma de provisão de serviços.

  • Finalmente, se o sistema não for um monopólio natural, seria importante examinar a sustentabilidade da organização industrial oriunda da “planejada” privatização, que também não seja um sistema multifirma de provisão de serviços.

Mas, para que se observe se a privatização do sistema de telecomunicações trará de fato ganhos em eficiência econômica, faz-se necessário, além do exame da estrutura de custos (oferta), um exame também detalhado do lado da demanda pelos serviços de telecomunicações. Esses dois aspectos do setor têm que ser estudados simultaneamente, e isso pode ser visto através de um modelo econométrico/computacional, como o que é apresentado a seguir.

4. UM MODELO PARA A ANÁLISE

Entre os modelos que se prestam à análise anteriormente citada pode-se mencionar aquele desenvolvido em Cavalcanti (1991CAVALCANTI, J. C. (1991). “Economic aspects of the provision and developments of water supply in 19th century Britain”. PhD Thesis. University of Manchester/UK. ). A característica básica desse modelo é a possibilidade de se avaliar a eficiência econômica de empresas de multiproduto na provisão de serviços públicos levando-se em consideração os direitos de propriedade das empresas fornecedoras desses serviços. Nesse modelo são distinguidos dois aspectos da eficiência econômica em condições variadas de direitos de propriedade.

O primeiro aspecto diz respeito à eficiência produtiva nas condições acima citadas, e que se traduz no conceito de custo-eficácia. Por custo-eficácia nessas condições entende-se o grau pelo qual o custo de produzir uma dada quantidade (e qualidade) de bens e serviços varia com a propriedade e/ou ambiente regulador nos quais eles são produzidos. É importante também que se distinga nesse contexto a eficiência técnica e a eficiência no controle dos preços de insumos necessários à produção daqueles bens e serviços. Nesse último caso, importa definir em que medida os preços de insumos incorridos pela firma refletem custos sociais.

O segundo aspecto relaciona-se com a eficiência alocativa no leque de bens e serviços providos. Em outras palavras, o que se busca com esse conceito é analisar o alinhamento de preços com o custo marginal social na produção desses bens e serviços em diferentes condições de propriedade.

De uma maneira geral, o modelo é um modelo neoclássico econômico de equilíbrio parcial em que são examinadas as condições de oferta e de demanda de uma dada indústria e avaliado seu ponto de equilíbrio.

Do lado da oferta, parte-se da definição de uma função de produção. Usando os postulados da teoria da dualidade (v. Diewert, 1974DIEWERT, W. E. (1974). “Applications of duality theory”. In Intriligator e Kendrik (orgs.). Frontiers of Quantitative Economics, vol. II, North-Holland Publishing Company. , e MacFadden, 1978), passa-se a representar essa função de produção através de uma função de custo. Para que essa função de custo obedeça a uma bem-comportada função neoclássica de produção, observa-se se ela satisfaz certas condições de regularidade (v. Varian, 1984VARIAN, H. R. (1984). Microeconomic analysis. Norton, EUA. ), tais como monotonicidade, concavidade, homogeneidade linear, simetria e homoteticidade (Cavalcanti, 1991CAVALCANTI, J. C. (1991). “Economic aspects of the provision and developments of water supply in 19th century Britain”. PhD Thesis. University of Manchester/UK. ).

A partir dessas condições, estima-se essa função de custo através de uma função Translog, uma contração de Função Transcendental Logarítmica, a qual foi apresentada pela primeira vez por Christensen e outros (1971CHRISTENSEN, L. R., Jorgensen, D. W. Jorgensen e L. J. Lau (1971). “Conjugate duality and the transcendental production function”. Econometrica, julho, pp. 255-6. ). Essa função pertence a uma família de formas que fornecem aproximações de segunda ordem para funções duplamente diferenciáveis, e pela sua flexibilidade ela tem sido amplamente utilizada no exame de diversos setores econômicos, tais como indústrias automobilística e petrolífera, bancos, hospitais, ferrovias, gás, eletricidade, transportes e outros.

Com a estimação da função Translog, a qual é realizada através de pacotes econométricos computacionais, tais como o ECOS (Econometric Estimation Package), desenvolvido pelo Departamento de Econometria da Universidade de Manchester (Grã-Bretanha) e utilizado nos cálculos de Cavalcanti (1991CAVALCANTI, J. C. (1991). “Economic aspects of the provision and developments of water supply in 19th century Britain”. PhD Thesis. University of Manchester/UK. ), bem como o PC-GIVE, desenvolvido na Universidade de Oxford, também na Grã-Bretanha, passa-se à determinação das economias de escala e de escopo. A determinação dessas economias é de fundamental importância na verificação da condição de produção de bens e serviços em regime de monopólio natural.

Do lado da demanda, parte-se da definição dos parâmetros de equação(ões) de demanda. Em seguida, essa(s) equação(ões) é(são) estimada(s) através de função(ões) Translog, em que então são examinadas as condições necessárias para um dimensionamento ótimo dessa(s) equação(ões) de demanda, fundamentalmente a propriedade de simultaneidade dos parâmetros. Por definição, quando simultaneidade está presente, uma ou mais variáveis explicatórias numa equação, ou num sistema de equações, são endógenas.

Uma vez encontrada a(s) equação(ões) de demanda, passa-se a verificar as condições de formação de preços (pricing). Nesse sentido, são analisadas as condições de equilíbrio da(s) firma(s) em questão, isto é, se as receitas marginais de um produto adicional se igualam aos custos marginais desse produto (os quais são um resultado do exame das condições de oferta).

5. CONCLUSÃO

Como foi argumentado neste artigo, a política de privatização (que foi estimulada no governo Collor) para o setor de telecomunicações no Brasil não deixa de ser necessária. Isso pode ser corroborado pela experiência internacional nessa política, que, mesmo ainda incipiente, apresenta alguns indicativos de ganhos de eficiência.

No entanto, há sérios riscos nessa política. Caso não sejam executados estudos estatísticos detalhados como o aqui descrito, que digam respeito ao exame da efetiva estrutura interna da organização industrial dos setores a serem privatizados (como nas telecomunicações nacionais), prevê-se que a sociedade brasileira terá que ser chamada a compensar pela perda dos benefícios conferidos pela potencial existência de economias internas aos setores em questão. Ao não se optar por esse rumo, muito em breve deixaremos de ouvir o atual coro da privatização, para mais uma vez (e lamentavelmente) clamarmos por estatização.

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  • 1
    JEL Classification: L33; L96.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1994
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