Acessibilidade / Reportar erro

Programas de estabilização, mistificação tecnocrática e câmaras setoriais* * O trabalho beneficiou-se dos comentários e sugestões de Paul Singer.

Stabilization programs, technocratic mystification and sectoral chambers

RESUMO

O presente artigo discute a natureza e as condições do plano de estabilização nas sociedades democráticas, criticando a abordagem dos tecnocratas que reduz esses planos a uma mera decisão técnica, escondendo suas consequências sociais e implicações em termos de ganhos e perdas. A ineficácia dos planos ortodoxos e heterodoxos dos últimos anos disse ser devido à sua falta de clareza, política e legitimidade. Um programa de estabilização não pode ser deixado nas mãos do mercado ou não pode ser retomado com um ajuste fiscal e restrições monetárias, mas deve ter políticas de renda, introduzidas pelo Estado e com a participação ativa das classes sociais. A experiência das câmaras setoriais em certos ramos das atividades industriais permite vislumbrar um novo mecanismo de coordenação de preços, salários e preços públicos, que possa desacelerar essa inflação inercial e manter sob controle o aumento de preços no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE:
Economia política; estabilização; tecnocracia

ABSTRACT

The present paper discusses the nature and the conditions of stabilization plan in democratic societies, criticizing the technocrats’ approach that reduces those plans to a mere technical decision, this hiding their social consequences and implications in terms of gains and losses. The inefficacy of orthodox and heterodox plans from in recent years said to be due to their lack of clarity, politics and legitimacy. A stabilization program cannot be left in the hands of market or cannot be resumed to a fiscal adjustment and monetary restrictions, but must have income policies, introduced by the State and with the active participation of social classes. The experience of the sectorial chambers in certain branches of industrial activities harbours an insight towards a new mechanism of coordination of prices, wages and public prices, that can slow down that inertial inflation and keep price increase in Brazil under control.

KEYWORDS:
Political economy; stabilization; technocracy

1. INTRODUÇÃO

Os programas de estabilização são difíceis de se implementar porque não se resumem a soluções técnicas de problemas econômicos que possam ser resolvidos nos gabinetes dos iluminados especialistas, mas são “políticas” de estabilização, vale dizer, estratégias que implicam ganhos e, sobretudo, perdas para determinados segmentos da sociedade, interferindo diretamente na luta política que se verifica incessantemente pelo excedente ou pelos favores do Estado. Nesse sentido não existe uma única solução, tampouco a solução correta, mas existem alternativas a serem discutidas pela sociedade, que devem reunir consenso ou o apoio necessário para sua viabilização.

Nas sociedades mais organizadas, as entidades representativas da sociedade civil sentam-se à mesa para examinar as propostas do governo, avaliar as consequências dos planos econômicos e convencer seus filiados da oportunidade ou não de absorver perdas durante um certo tempo, em troca de melhorias ou benefícios no período subsequente. Nesse caso, o jogo é aberto e o conflito econômico explicitado, estando os parceiros conscientes das consequências. Já nas sociedades menos organizadas, em que não se estabelecem mecanismos de negociação coletiva e administração pública dos conflitos, o Estado tende a impor os programas de estabilização e a apresentá-los como soluções técnicas para problemas supostamente comuns a toda a sociedade. Trata-se de uma mistificação, que encobre os reais efeitos do ajuste econômico e a forma como ele repercute em cada um dos segmentos sociais. Se o regime for autoritário, não haverá dificuldade em enfiar as medidas goela abaixo dos principais prejudicados, e de alcançar algum êxito nos indicadores econômicos. Mas, nos contextos democráticos, os que arcam com a crise e mesmo os que se saem melhor com ela acabam reagindo e comprometendo os planos do governo, conduzindo a impasses que podem se arrastar indefinidamente ou precipitar urna situação irreparável de caos e desorganização.

Imerso há mais de uma década numa crise de grandes proporções, o Brasil tem vagado ao sabor dos mais distintos experimentos de ajuste econômico, que parecem eficientes por um certo tempo, mas logo sucumbem à falta de consistência técnica, de legitimação política ou de apoio das principais partes envolvidas. Desde o programa ortodoxo de 1981, de Delfim Netto, até as tentativas de ajuste fiscal de Fernando Henrique Cardoso, já foi tentada uma dúzia de planos, inspirados tanto em princípios ortodoxos quanto em heterodoxos, que não deram certo e esbarraram em toda a sorte de dificuldades. Em que pesem a gravidade da crise da dívida e a natureza dos problemas que se apresentaram para o Brasil e para outros países em condições semelhantes nos anos 80, parte do fracasso dos programas de ajuste deve ser atribuída a erros de estratégia, à falta de sustentação política, à oposição das elites e, sobretudo, à incapacidade dos governos em explicitar os conflitos, em administrá-los juntamente com os órgãos de representação e organização da sociedade, e em fazê-los desembocar em acordos políticos em que imperem os interesses de uma maioria ou de uma coalizão majoritária.

Os países mais bem-sucedidos em termos de estabilização econômica foram aqueles que viabilizaram boas soluções técnicas a partir de acordos nacionais entre partidos, sindicatos de trabalhadores, associações patronais e governo. A falta de identificação ou de compromisso com as propostas dos governos leva mesmo os segmentos beneficiados ou menos prejudicados com as medidas a remar contra os planos, contribuindo para inviabilizá-los.

Neste trabalho sustento a hipótese de que é inviável implementar um ajuste econômico duradouro numa sociedade democrática, sem a explicitação dos conflitos, sem a delimitação de ganhos e perdas e sem o comprometimento dos principais segmentos da sociedade, orquestrados por um Estado dotado de legitimidade e credibilidade. Por isso, um programa dessa natureza não pode ser delegado ao mercado ou resumir-se a um bom ajuste fiscal e monetário, na maioria das vezes de caráter recessivo, mas deve alicerçar-se numa política de rendas ativa, implementada pelo Estado e com a participação das classes sociais. Na falta de mecanismos mais avançados de arbitragem e resolução de conflitos, devem-se incrementar e aperfeiçoar as câmaras setoriais, que podem tornar-se um fórum privilegiado de administração de preços, de controle de custos e margens de lucro, assim como de discussão de políticas de investimento, de emprego e de renovação tecnológica. Neste artigo procurarei analisar o papel que pode ser desempenhado pelo Estado e pelas câmaras setoriais em programas de estabilização no Brasil, suas limitações, potencialidades e o uso que vem sendo feito delas na atualidade. É uma estratégia de combate à inflação e de recuperação da economia que se contrapõe às propostas de estabilização ortodoxas e expectacionistas, que se limitam a fortes ajustes fiscais e monetários e colocam nas mãos do mercado a tarefa de equilibrar os preços. Além de ineficientes na contenção de preços, essas políticas ortodoxas mistificam o conflito distributivo, impõem sérias perdas aos assalariados e aos que não detêm moeda indexada, e resguardam os interesses dos oligopólios, do setor financeiro e dos segmentos especulativos da sociedade.

2. REORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE E CÂMARAS SETORIAIS

Certamente a sociedade brasileira não figura no rol das que dispõem do melhor sistema de organização e representação de interesses do mundo ocidental. Porém, após o final do regime militar, e mesmo antes do seu término, verificou-se um avanço sem precedentes do grau de articulação da sociedade civil e do sistema político, com a revitalização das entidades de classe de várias categorias e a constituição de um sindicalismo moderno, sem a marca do populismo dos anos 50, resultando na CUT e, em menor medida, na Força Sindical e na CGT. Essas entidades organizam cursos de formação de dirigentes sindicais, debates e palestras sobre vários aspectos da realidade brasileira, em instalações apropriadas para isso, como o Instituto Cajamar, o que indica o caráter sistemático dessas iniciativas. Não se trata de um avanço homogêneo, mas localizado em segmentos específicos da população trabalhadora, principalmente nos setores mais modernos da indústria, no setor estatal e em alguns ramos de comércio e serviços, que conseguem liderar e irradiar novas formas de organização aos setores mais atrasados da sociedade brasileira.

As federações e entidades patronais em geral também se modernizaram e foram compelidas a desempenhar um papel maior, tendo em vista o novo cenário democrático. Já não bastava atuar nos gabinetes ministeriais, era preciso também uma presença pública, fazendo campanhas, pressionando governos ou articulando seus interesses no Congresso, como na Constituinte de 1988. Para isso as grandes associações patronais, como FIESP, CNI, CIESP, ABDIB, PNBE, SIMPI e SIMPRO, tiveram de contratar assessorias, organizar debates e preparar os dirigentes com cursos de formação e palestras de especialistas. Entretanto, as associações patronais de âmbito nacional ou geral (que congregam um conjunto de sindicatos setoriais) permanecem voltadas para as questões gerais, ou estão sujeitas a interesses regionais menores, como no caso da CNI, o que enfraquece sua liderança sobre o empresariado. O fortalecimento se deu no nível das entidades setoriais, tais como a Associação Brasileira de Alimentos (ABIA), a Câmara Brasileira de Construção (CMC), a AGROBUSINESS, a Associação Brasileira da Indústria de Fundição (ABIFA), a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (ABIMAQ), o SINDIPEÇAS, a ABRINQ, sem falar das já mais bem estruturadas Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA) e Associação Brasileira da Indústria Eletroeletrônica (ABINEE), que congregam um empresariado mais coeso, pouco numeroso no caso da ANFAVEA, o que facilita o entendimento.

O próprio sistema partidário brasileiro, que é constituído por partidos novos e mutantes, com pouca tradição e enraizamento nas massas, e fragmentados pelos interesses regionais, também passou por algum amadurecimento, concebendo o Partido dos Trabalhadores (PT), um partido ideologicamente mais definido e vinculado ao movimento de massas (movimento sindical, movimentos de saúde, educação e moradia), e o Partido Social da Democracia Brasileira (PSDB), também com um caráter ideológico mais definido e representando segmentos da classe média. Entretanto, o avanço não foi maior, em termos de representação e legitimidade, entre outras coisas, devido à legislação introduzida no apagar das luzes do governo Geisel, que distorceu o sistema de representação, criando maiorias artificiais e dando maior peso aos estados menores e mais atrasados.

Mas se houve um certo avanço da organização e da representação política da sociedade brasileira, em que pesem às limitações assinaladas, nunca houve real empenho dos governos em aproveitá-lo para celebrar entendimentos políticos em torno de programas econômicos. Em vez disso, as equipes que estiveram à frente do Executivo preferiram trilhar caminhos tortuosos e impor programas de ajuste gestados nos gabinetes da área econômica, mais preocupados em salvaguardar os interesses das elites ou dos credores estrangeiros do que propriamente em equacionar os problemas da crise brasileira.

Durante esse período particularmente fértil para o avanço da democracia no Brasil, surgiram no país as câmaras setoriais, o embrião de um novo canal de negociação e equacionamento de conflitos de parte dos agentes organizados da sociedade, que foi pouco amadurecido, mas demonstrou possuir um grande potencial para a politização dos conflitos econômicos e de seu equacionamento. De fato, as câmaras setoriais constituem formas inovadoras de representação das relações capital-trabalho, e podem transformar-se num fórum privilegiado de articulação e encaminhamento de conflitos, de arbitragem e mesmo de regulação das relações entre público e privado.

Surgidas no final do governo Sarney, tiveram papel irrelevante no governo Collor, que preferiu deixar os preços flutuarem ao sabor das forças de mercado, conforme os preceitos da ortodoxia. Na verdade, essas câmaras poderiam constituir-se no canal privilegiado de administração de preços, salários e tarifas públicas, e ainda atuar na elucidação de conflitos, na explicitação de interesses, na definição de políticas de investimento e de emprego e no estabelecimento de metas de longo prazo para os principais segmentos da economia brasileira.

Parto do pressuposto de que a inflação brasileira é, sobretudo, o resultado da guerra de preços que se estabelece entre os agentes econômicos (assalariados, empresários, funcionários públicos) para preservar ou aumentar sua fatia de renda, num bolo reduzido pela recessão, gerida de forma caótica pelo mercado.1 1 V. a respeito Bresser-Pereira, L. C. e Y. Nakano. “As elites têm medo”, Folha de S.Paulo,31/10/93. Nessa disputa entra também o setor público, que, premido pela crise fiscal, também procura aumentar seus recursos por meio da elevação de tarifas e de impostos, ajudando, assim, a alimentar a espiral inflacionária. Esse círculo vicioso da inflação, em que cada um repassa para o outro os custos ascendentes que recebeu, dificilmente pode ser estancado apenas por medidas de caráter fiscal e monetário, mas requer uma política de rendas ativa e permanente, acertada pelos principais contendores do conflito distributivo juntamente com o Estado.

Nesse caso não se trata de congelamentos de preços, salários e tarifas, baixados unilateralmente pelo governo, que têm sua eficácia reduzida a um curto prazo de duração, após o qual a guerra de preços retorna a um patamar ainda superior àquele no qual se encontrava antes do congelamento, mas sim de uma gestão sistemática dos principais preços da economia, fundamentada no acompanhamento dos custos e das margens de lucro e no estabelecimento de metas para o setor público e privado a serem fiscalizadas pelos empresários, trabalhadores e governo.

Para isso seria criado um sistema de câmaras setoriais, representando os principais elos da cadeia produtiva e os setores mais importantes na formação dos preços, principalmente os oligopolistas, tais como alimentos, material de limpeza, remédios, eletrodomésticos, automobilística e construção civil, a serem coordenados por uma câmara setorial geral ou por um Conselho da República, onde teriam assento desde os líderes dos principais partidos políticos até as federações e confederações patronais e dos trabalhadores, bem como os altos escalões do governo credenciados pelo presidente da República a celebrar acordos, criar regras e fazer cumprir metas. Nesse Conselho da República seriam estabelecidos os grandes parâmetros da economia, como as regras de correção de tarifas, salário-mínimo, taxas de câmbio e juros. A primeira medida desse Conselho seria postergar os reajustes dos principais itens econômicos que tivessem auferido aumentos num prazo de até 30 dias, permitindo apenas a correção de preços de bens e serviços que tivessem permanecido inalterados nesse período. Esses parâmetros constituiriam os principais custos das câmaras setoriais, que, com base neles, estabeleceriam as possíveis elevações de preços e salários específicos de seu setor, dentro de um raio de flutuação que não poderia ultrapassar, digamos, uma margem mensal preestabelecida de 5%.

O adiamento simultâneo do reajuste de preços, salários e tarifas representa, num primeiro momento, um ataque frontal à inflação inercial, porém com a vantagem em relação aos congelamentos de não engessar o sistema de preços, tolerando uma certa flutuação nos meses sucessivos, a partir da demonstração cabal, no interior de cada câmara setorial, de aumentos efetivos de custos. Por exemplo, a elevação do preço de uma matéria-prima importada pela indústria farmacêutica justificaria uma elevação proporcional dos preços dos remédios, a menos que o governo pudesse tomar alguma medida que viesse a compensar esse aumento (redução de tarifas de importação ou de impostos). Nesse caso a elevação de preços seria pequena e localizada em alguns itens específicos, com pouca repercussão no conjunto da economia, permitindo manter a taxa inflacionária num patamar abaixo dos dois dígitos.

Porém, essa sistemática de administração de preços depende fundamentalmente de um estrito controle da evolução dos custos da economia, o que esbarra em duas ordens de dificuldade. Por um lado, é preciso equipar as câmaras setoriais com a assessoria indispensável para o levantamento de dados e acompanhamento de custos. Por outro lado, é preciso conhecer as planilhas de custos das empresas, para acompanhar suas mudanças e avaliar as necessidades de aumentos. As assessorias poderiam ser fornecidas pelo governo ou constituídas também com técnicos destacados pelas assessorias das associações sindicais e patronais, cada vez mais equipadas para isso. Ou poderiam ser contratadas assessorias de institutos de pesquisa independentes, ligados a fundações e a universidades. O mais difícil é obter as planilhas de custo das empresas, que são guardadas a sete chaves e nunca foram fornecidas de bom grado.2 2 No final de 1991 o governo de São Paulo e a prefeitura da capital tentaram constituir um conjunto de câmaras setoriais que deveriam fazer acordos de preços e salários, promover políticas setoriais, rever tributos e estabelecer outras iniciativas conjuntas. Porém, na hora de assinar o termo de compromisso, a FIESP recuou e “pulou fora” do acordo, preferindo optar pelo caminho da plena liberalização do mercado e livre flutuação de preços, que lhe era oferecido pelo recém-empossado ministro da Fazenda Marcílio Marques Moreira. Afinal, essas planilhas revelariam as margens de lucros e outros dados considerados incômodos pelas empresas, o que diminuiria seu poder de argumentação ante certas negociações com o governo e os trabalhadores.

3. ESTADO E CREDIBILIDADE

Enquanto regente dessa grande orquestração de preços, cabe ao Estado criar os instrumentos não só para fiscalizar o cumprimento das políticas estabelecidas, mas também para aplicar sanções e utilizar o aparato institucional no desestímulo às práticas oligopolistas e demais violações aos acordos. Quem não se submeter aos acordos consensualmente estabelecidos deve ser enquadrado em controle de preços, normas rígidas e severa vigilância fiscal. Para tanto devem ser reconstituídos os mecanismos de acompanhamento e fiscalização de preços que foram desmontados na gestão Collor de Mello, sem os vícios que acompanhavam o CIP, o SEAP e outros órgãos semelhantes, que privilegiavam o interesse privado mais do que o público. E o poder de persuasão do Estado não deve se restringir ao controle de preços, mas pode abranger a concessão de incentivos, créditos e outros benefícios, que estariam vedados aos recalcitrantes. Para isso é preciso um Estado determinado, confiável e legitimado pelo apoio de boa parte da sociedade civil. E aqui reside uma dificuldade importante, porque os governos que têm passado pelo poder têm carecido justamente de credibilidade e demonstrado irresponsabilidade, irracionalidade e falta de compromisso com o interesse público. Essa é uma questão central da crise brasileira e determina, em grande medida, a perda de confiança na moeda nacional e na habilidade administrativa do Estado em gerir a dívida pública e implementar as reformas que se fazem necessárias para desprivatizar o Estado e torná-lo mais forte e eficiente.

Em contrapartida, o Estado também deve ser fiscalizado e submetido ao mesmo crivo por que devem passar as empresas privadas. Para começar, podem fazer parte dos acordos celebrados no Conselho da República metas de desempenho orçamentário do governo, que não precisam resultar em equilíbrios operacionais, como querem os ortodoxos e o FMI, uma vez que há muitos anos nem mesmo a maioria dos países mais avançados consegue obtê-los, mas pode-se obter um equilíbrio primário ou ainda um pequeno déficit primário, que implicará um ajuste do setor público, sem a irracionalidade professada pelos conservadores, que gostariam de usar a tesoura indiscriminadamente, inclusive cortando os escassos recursos destinados a áreas sociais e a infraestrutura. Pode-se reduzir, isso sim, sem maiores danos à população, despesas com subsídios, transferências a estados e municípios com destinação clientelística, despesas a fundo perdido e destinadas a associações de caridade, e despesas com serviço da dívida interna e externa, mediante a redução dos juros no mercado doméstico e uma melhor negociação dos pagamentos feitos aos credores internacionais. Deve-se ainda objetivar uma redução geral das despesas do setor público, sem corte de serviços ou metas físicas, mas mediante a racionalização ou otimização de todas as despesas (comprando melhor, aperfeiçoando as licitações, não deixando os estoques de alimentos apodrecerem nos armazéns, diminuindo a corrupção).

A credibilidade governamental é um elemento central da crise brasileira, uma vez que a falta dela se superpõe ou fala mais alto até mesmo do que os indicadores das contas públicas, que no Brasil chegam a ser melhores do que se pensa, quando comparados aos de outros países que conseguem um desempenho muito melhor que o nosso em termos de inflação ou de confiança na moeda. O déficit operacional brasileiro tem sido, nos últimos anos, semelhante ao de vários países industrializados, em sua maioria permanentemente no vermelho e nem por isso com inflação superior a um dígito. Para 1993 é estimado um déficit operacional de 2,5% do PIB, que vem a ser menor do que o déficit operacional projetado para a Itália, a Espanha, os EUA e boa parte dos países industrializados. E a dívida pública brasileira tem estado estacionada, já há um bom par de anos, em torno dos 30% do PIB, num patamar muito inferior, por exemplo, ao da maioria dos países da OECD, que oscila entre 45% e 100% do PIB. Entretanto, a falta de credibilidade no governo e a esperteza do setor financeiro foram reduzindo o perfil de vencimentos da dívida interna em poder do público (que representa cerca de 1/3 desses 30%), tornando-a exigível quase à vista, com um vencimento médio de 90 dias, ante um vencimento médio de 10 anos nos países avançados.

O montante das despesas governamentais enquanto porcentual do PIB situa-se no patamar dos 30%, também abaixo do da maior parte dos países industrializados. Os gastos com funcionalismo federal, que costumam ser responsabilizados pelos déficits orçamentários, fecharão 1993 por volta de US$ 19 bilhões, portanto abaixo de 5% do PIB, também num patamar inferior aos gastos dos países industrializados com esse item. O crescimento dos gastos com funcionalismo, verificado nos últimos dois anos, deveu-se à recomposição dos salários, violentamente arrochados pelo governo Collor, que fez de tudo para destroçar o setor público e justificar seu desmantelamento. Sob essa perspectiva, a previsão de uma despesa de US$ 28 bilhões com funcionalismo, contida na proposta orçamentária federal para 1994, não é exagerada, mesmo levando em conta a hipótese de superestimação praticada pelas autoridades econômicas, e representa pouco mais que 6% do PIB, praticamente no mesmo patamar de 1980 enquanto porcentual do PIB, e inferior aos 8,2% do PIB que essa despesa representou em 1970.

Outro item importante do Orçamento Federal é o serviço da dívida, este sim engolindo hoje cerca de 4% do PIB, que representa um gasto superior ao do padrão dos países avançados (mas já foi pior, e chegou a 6% na década passada), e pode ser reduzido ainda mais, com uma adequada política monetária e com menos concessões aos credores internacionais. Além disso, o país possui hoje um excelente superávit comercial, um nível elevado de reservas internacionais e um razoável ingresso de capital estrangeiro. Os preços do petróleo importado pelo Brasil estão na faixa de US$ 17 o barril, há bastante liquidez no mercado internacional e as taxas de juros desse mercado encontram-se em patamares razoáveis.

Como se vê, os agentes econômicos acabam atribuindo credibilidade ao governo não exclusivamente pelos números das finanças públicas, que evidentemente expressam, em parte, a eficiência da equipe governamental, mas levando em consideração outros fatores, tais como capacidade de iniciativa, determinação, condições de elaborar um projeto de desenvolvimento, coerência, honestidade, equilíbrio emocional do chefe do Executivo e outros fatores subjetivos e objetivos.

O momento mais adequado para a implementação de programas de estabilização é a troca de governo, quando o novo chefe do Executivo costuma desfrutar a máxima credibilidade e o mais alto grau de legitimidade, que o credencia a celebrar acordos nacionais, promover mudanças significativas e mesmo impor perdas aos setores derrotados nas eleições.3 3 Sobre essa questão da credibilidade, v. a respeito Barrionuevo Filho., A, “A ‘credibilidade’ da política econômica antiinflacionária e sua consistência temporal”. EAESP-FGV, mimeo., 1993. V. também Pechman, C.R. Grandi, e A. Martins, “Credibilidade e inflação: uma análise empírica do caso brasileiro”. Revista Brasileira de Economia nº 43. O governo Itamar dissipou rapidamente a credibilidade e o apoio político que desfrutava após o afastamento do presidente Collor, com uma sucessão de trapalhadas, critérios menores para a seleção do primeiro escalão, explosões temperamentais e trocas frequentes de ministros, o que lhe angariou níveis de credibilidade inferiores aos do governo Sarney, e até mesmo aos do governo Figueiredo. Além disso, não foi capaz de esboçar qualquer projeto de médio prazo que estabelecesse um horizonte mínimo e viesse a nortear um programa de estabilização. Nem mesmo o ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que assumiu investido de confiança ímpar, parece ter encontrado as condições necessárias para uma ação mais decidida, e vai sendo engolido no marasmo da indecisão e da obsessão do ajuste fiscal. Entretanto, a gravidade da crise brasileira, que se expressa menos nos dados financeiros do que no elevado desemprego, na crescente marginalização da população trabalhadora, na perda de efetividade do Estado4 4 Para uma análise da efetividade do Estado, v. O’Donnell, G., “Estado, democratização e alguns problemas conceituais”. Novos Estudos CEBRAP, nº 36, jul. 1993. , do exercício da força e da aplicação da justiça, no avanço da criminalidade e da violência urbana, consequências da recessão e da falta de capacidade do Estado, exige medidas imediatas, sem se esperar a sucessão de 1995, sob pena de se pôr em risco a sobrevivência das instituições democráticas e dos parcos vestígios de cidadania, conquistados a duras penas nos últimos anos no Brasil.

4. MISTIFICAÇÃO TECNOCRÁTICA E EXPECTATIVAS RACIONAIS

As diferentes interpretações sobre as causas da inflação brasileira que circulam nos meios intelectuais podem ser agrupadas, grosso modo, em duas correntes principais. De um lado estão os analistas que atribuem a aceleração dos preços principalmente ao déficit público e a suas consequências. De outro lado estão aqueles que veem a inflação como a expressão do conflito distributivo, ou da disputa entre as classes e frações de classe pelo excedente, que se agudiza durante a recessão e a crise, quando há menos excedente para disputar. Praticamente todos reconhecem a crise fiscal do Estado, porém por razões distintas e com consequências diferentes, conduzindo a alternativas discrepantes de políticas de estabilização. Os primeiros acreditam que o descontrole das contas públicas implica um comportamento do Estado que gera expectativas inflacionárias e condiciona elevações defensivas e preventivas dos preços por parte dos agentes econômicos. É a mais nova versão da ortodoxia, baseada na teoria das expectativas racionais, com numerosos adeptos no Brasil, sempre bem representados nas equipes que têm frequentado a área econômica do governo. Essa corrente, que não pode ser chamada de criativa, prescreve o clássico tratamento de ajuste fiscal drástico, política monetária austera e redução da interferência do Estado na economia, sem qualquer política de rendas, uma vez que ignora a inflação inercial, e os preços livres caminhariam espontaneamente para o equilíbrio. Já os heterodoxos julgam insuficiente o acerto das contas públicas, que não irá suprimir o conflito distributivo e muito menos eliminar o caráter inercial da inflação, e poderá até agravá-los, uma vez que implica redução de gastos e investimentos públicos, com desaceleração das atividades, aumento da capacidade ociosa das empresas e consequente elevação de preços para compensá-lo, e ainda aumento da carga fiscal e das tarifas públicas, elevando os custos das empresas, que tentarão repassá-los aos preços. Daí a necessidade de uma intervenção direta sobre preços, salários e tarifas com políticas de renda que ataquem o caráter inercial da inflação e arbitrem o conflito distributivo.

Naturalmente, os economistas neoliberais e expectacionistas repelem a aplicação de políticas de renda e abominam as câmaras setoriais, tidas como instrumentos corporativistas, que só atrapalham a ação redentora do mercado na regulação dos preços. São eles que mais se esmeram em apresentar propostas de ajustes fiscais draconianos e políticas monetárias austeras como as únicas soluções “técnicas” possíveis para debelar o flagelo da inflação. Segundo eles, os preços devem ser totalmente liberados e o Estado deve retirar-se para funções menores, reconstituindo-se as virtudes do mercado, que saberá encontrar o equilíbrio de preços e ampliar a concorrência, revitalizando as empresas brasileiras. Nessa arquitetura não cabem as câmaras setoriais ou quaisquer outros mecanismos de articulação de acordos ou de administração de conflitos, porque “trata-se de um mecanismo de substituição de relações de mercado por negociações no âmbito de uma economia organizada de forma corporativista através de sindicatos e entidades patronais”.5 5 Franco, G., “Alternativas de estabilização: gradualismo, dolarização e populismo”. Revista de Economia Política 13 (2), abr.-jun. de 1993. Franco não chega a ser o exemplo mais bem acabado de neoliberal expectacionista, apesar de sua verdadeira aversão pelas câmaras setoriais, uma vez que ele admite ter-se estabelecido, nos últimos anos, “um consenso sobre a necessidade de mecanismos de coordenação de expectativas ou políticas de rendas como um complemento indispensável ou uma condição necessária, mas não suficiente para o sucesso de programas de estabilização.” V. Franco, G., 1993, idem, p. 39. Entretanto, em seu artigo sobre “Alternativas de estabilização”, ele não deixa claro quais seriam esses mecanismos de coordenação de expectativas, passando a impressão de estar preocupado exclusivamente com a construção do que chama de as” precondições para uma iniciativa consequente”, quer dizer, um ajuste fiscal rigoroso e uma política monetária restritiva. “Apesar de todas as ruminações contra a ortodoxia na administração monetária e fiscal, é muito difícil perceber como seria a alternativa não ortodoxa à administração das políticas monetária e fiscal em condições de crise fiscal.” V. Franco, G., idem, ibidem, p. 44.

E o que garante que um choque fiscal, com redução de gastos e investimentos, e uma forte restrição monetária, com restrição de crédito, dificuldade na rolagem da dívida interna e juros altos, irão reduzir o patamar inflacionário? O que garante que a liberdade de preços, mesmo com as contas públicas equilibradas, induzirá os agentes econômicos a remarcações menores, por conta da expectativa de um comportamento mais equilibrado do governo? Sem um condicionamento político maior, o empresariado tende a adotar um comportamento individualista, que recomenda manter os preços acima da média inflacionária, se não houver constrangimentos maiores.

A observação das tentativas anteriores de políticas ortodoxas nos dá uma certeza. Elas são eficazes para gerar recessão, desemprego, concentração da renda, queda da arrecadação fiscal, redução de salários, empobrecimento da população e outras consequências sociais sérias. Não costumam, porém, baixar a inflação de forma significativa, pelo menos não a ponto de justificar os efeitos colaterais, que podem ser piores do que a doença. Quando muito, essas políticas de contenção drástica conseguem atenuar o ímpeto inflacionário em função de uma queda acentuada da demanda, que provoca uma certa redução, ou melhor, uma desaceleração das remarcações de preços. Entretanto, os oligopólios continuarão elevando seus preços acima da média mensal, de modo a compensar o aumento de capacidade ociosa e a elevação das tarifas públicas, que também deve situar-se acima da média mensal, em consonância com o ajuste fiscal. Dessa maneira, prossegue o processo de transferência de renda dos assalariados para o capital, dos pequenos e médios capitais para os segmentos oligopolistas, e destes para as empresas estatais. Numa economia altamente oligopolizada como a brasileira, a liberalização plena dos preços transfere para o mercado a incumbência de resolver o conflito distributivo. E como o mercado é dominado pelos oligopólios, cabe a eles a feliz tarefa de fazer a partilha. É como entregar a chave do galinheiro para as raposas. É a situação ideal para os oligopólios, banqueiros, rentistas e especuladores enfrentarem a crise, jogando-a nas costas dos assalariados, pequenos empresários, pensionistas, autônomos. Até mesmo o governo leva alguma vantagem com a inflação, se tiver indexado a arrecadação fiscal, auferindo os chamados ganhos de senhoriagem ou o imposto inflacionário, que advém do fato de ele colocar novas quantidades de moeda na economia.

A essa altura dos acontecimentos até mesmo os indivíduos menos preparados da sociedade brasileira sabem que nem todos perdem com a inflação. Pelo contrário, alguns até ganham, e outros dependem dela para sobreviver. É o caso dos bancos, que começam a ganhar a partir de uma inflação de dois dígitos. Para esses felizardos é o que se poderia chamar de mal menor. E os oligopólios não lucram propriamente com a inflação, mas com a liberalização total de preços, que foi implantada na gestão Collor. Até mesmo os gestores econômicos do período autoritário, que não se esmeravam em defender a renda dos assalariados, procuraram limitar os exageros dos setores monopolistas com algumas modalidades de controle de preços, por meio da SUNAB, do CIP e de outros órgãos similares, que mesmo capengas e vendidos estabeleciam algum patamar de preços.

E aqui reside uma das principais dificuldades para a adoção de programas de estabilização que administrem os preços, limitando os abusos dos oligopólios e pondo a nu as vantagens e desvantagens de cada segmento. Essa explicitação e controle do conflito distributivo pode esbarrar na resistência desses segmentos, que tenderão a se opor, a menos que sejam obrigados a colaborar com um governo identificado, sustentado e legitimado pela maioria da população ou por uma coalizão de interesses majoritários. Governos tíbios, mais preocupados em garantir os negócios privados do que os interesses sociais, certamente não irão empenhar-se em programas de estabilização dessa natureza, que contrariam certos interesses. Entretanto, não se trata também de assumir a ilusão de que se pode, de uma hora para outra, virar a mesa e jogar facilmente todo o ônus da crise nas costas dos banqueiros, oligopólios e rentistas, pela simples razão de que isso tende a contrariar a correlação de forças estabelecida na sociedade brasileira, mesmo diante de expressivo avanço das forças populares. Por melhores que sejam os próximos pleitos eleitorais, as elites do país continuarão controlando parte expressiva do Parlamento e do Poder Executivo em todas as esferas, o que permite sonhar com acordos não muito melhores que os feitos recentemente na Itália, na Espanha ou em Israel, que grosso modo trocam postergações de reajustes salariais por congelamentos temporários de preços e tarifas.

Entretanto, se no curto prazo os segmentos oligopolistas podem sair perdendo de uma política de rendas, em contrapartida poderão interessar-se em compensar as perdas de margem unitária de lucros com uma elevação do volume de vendas, a partir de uma política de retomada das atividades e de constituição de um mercado de massas. Em outras palavras, os programas de estabilização poderão estar articulados com um programa de desenvolvimento, que retome o crescimento e amplie a produção, absorvendo a capacidade ociosa e ampliando as vendas, de modo a conciliar uma redução da margem de lucro auferida sobre cada mercadoria vendida com a ampliação da massa de lucros das empresas, obtida com o aumento da escala. As economias do Pacífico são exemplos importantes de modelos de desenvolvimento com taxas elevadas de crescimento, compatíveis com distribuição de renda e baixa inflação.

5. COORDENAÇÃO DE EXPECTATIVAS E A CÂMARA DA INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA

Até hoje não se praticou no Brasil uma política de rendas ativa com coordenação de expectativas e pactos políticos entre as classes, como os que foram estabelecidos em Israel, na Espanha e mais recentemente na Itália. O programa de estabilização israelense, da segunda metade dos anos 80, abrangia desde um ajuste fiscal, que reduzia despesas e aumentava tributos, até a unificação do câmbio e a desvalorização do shekel israelense (em 18,8%), passando pelo congelamento de preços, salários e taxas de câmbio. Não foi um plano inventado pelo governo e imposto à sociedade, mas foi minuciosamente discutido e acertado com a Federação Trabalhista e com a classe patronal, implementado por uma coalizão dos dois grandes partidos, o Trabalhista e o Likud, que se revezaram no poder ao longo de quatro anos em que ele vigorou. Os empresários concordaram em manter os preços congelados por um ano, sem adicionar os aumentos de custos ocasionados pela desvalorização do câmbio e pelo ajuste de tarifas, e os trabalhadores aceitaram suspender a indexação automática de salários (vigente com o acordo COLA, que previa recomposição de 80% do aumento do índice de preços em datas predeterminadas), absorvendo perdas acumuladas no período, e um programa de recomposição escalonada dos salários, após um certo período.6 6 V. a respeito Bruno, M., “A estabilização da economia israelense: o programa de emergência em seu estágio inicial”. In A rida, P. org. Brasil, Argentina, Israel - Inflação Zero, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. A composição desse acordo não foi tranquila e dependeu de intenso debate entre as partes. Foi precedida até mesmo por greves, e contou com apoio apenas parcial da população no primeiro momento (45% no primeiro mês), mas foi se ampliando assim que o plano foi entendido e começou a dar resultados (64% no segundo mês). Uma vez aparadas as arestas, os acordos foram cumpridos, a inflação debelada, o congelamento gradativamente suprimido, e os salários recompostos ao longo do tempo.

A Espanha já passou pelo conhecido Pacto de Moncloa, que também fixava limites para elevação de preços e reajustes de salários, e, atualmente, o governo socialista de Felipe González, reeleito em 1993, empenha-se em firmar um acordo de três anos entre empresários e líderes trabalhistas, não propriamente para reduzir a inflação, que em 1993 estava na marca dos 4,5% ao ano, mas para enfrentar o desemprego, a recessão e uma suposta rigidez dos custos salariais, que estariam reduzindo a competitividade da Espanha. O governo propõe o afrouxamento das normas trabalhistas restritivas (na Espanha existe forte estabilidade no emprego desde a ditadura de Franco) e a redução de custos trabalhistas, em troca da retomada do crescimento, com a criação de novos empregos, a partir de um mercado de trabalho mais flexível. Propõe também a supressão dos aumentos nominais de salários (de cerca de 7% ao ano), que vêm se verificando nos últimos anos, e seu atrelamento aos aumentos de produtividade, à semelhança do acordo firmado na Itália entre os sindicatos e a federação dos empresários, em julho de 1993, daquele verificado na Alemanha em 1993. Em resumo, trata-se de pactos sociais que estabelecem vantagens e desvantagens, e principalmente alguma renúncia, ora maior para os trabalhadores, ora maior para os empresários, dependendo da correlação de forças, por meio de normas e procedimentos a serem cumpridos pelas partes envolvidas para se alcançar certos objetivos no médio e no longo prazo. Note-se que não se trata da mistificação de conflitos entre capital e trabalho ou de sua eliminação, haja vista as difíceis negociações e confrontos (inclusive com greves) que precedem a celebração dos acordos mencionados, mas de sua explicitação e administração de forma organizada e orquestrada pelo Estado.

Os pactos políticos intentados nos últimos anos no Brasil foram acordos pífios, mal costurados, com objetivos dúbios e articulados por governos fracos e destituídos de legitimidade. Foram meros arremedos de políticas de rendas negociadas, com parcos resultados, e apenas serviram para desmoralizar esse tipo de estratégia. E as câmaras setoriais, criadas no final do governo Sarney, tiveram um desempenho modesto, resumindo-se a reuniões dos empresários com o governo, sem qualquer consequência. A única exceção foi a câmara setorial da indústria automobilística, que, por iniciativa do sindicato dos metalúrgicos do ABC, furou a resistência do governo e conseguiu firmar um acordo com ampla repercussão no setor automobilístico. Essa câmara estabeleceu um acordo tripartite, em que os governos federal e estaduais baixaram as alíquotas do IPI e do ICMS, o que significou uma diminuição de 12% nos preços, enquanto as empresas (montadoras, de autopeças e revendedoras) rateavam entre si uma redução das margens de lucro que deveria alcançar 10% do preço, havendo assim uma redução total de 22% sobre os preços dos veículos. E os trabalhadores postergaram momentaneamente alguns reajustes, em troca de aumentos reais de salários, escalonados ao longo dos próximos anos, da manutenção do nível de emprego e da definição de uma política de investimentos, de melhoria tecnológica e de fixação de metas de produção. A redução de preços causaria um aumento de vendas, que compensaria a renúncia fiscal e a redução da margem unitária de lucros. Os inúmeros backward e forward linkages do complexo automobilístico garantiriam um amplo efeito multiplicador sobre um conjunto de atividades, responsáveis por cerca de 10% do PIB.

Tratava-se, pois, de um acordo setorial, de caráter anti-recessivo, que beneficiava principalmente os dois setores envolvidos, sem prejuízos para o governo e apenas com algum efeito indireto para o restante da economia, decorrente da ativação dos negócios em torno daquelas atividades. Porém, nada tinha a ver com uma estratégia global de combate à inflação ou com uma política de rendas ativa, que não poderia ser empreendida de forma isolada por uma única câmara setorial, mas resultaria da operação de um conjunto de câmaras, orientadas para urna ação comum e articuladas por uma instância central, que definiria os grandes parâmetros da economia. A ativação das demais câmaras, que hoje estão por volta de 50, não conta com o apoio do ministério da Fazenda, a despeito do interesse manifestado por empresários e trabalhadores de outros setores, porque não se enquadra na estratégia da equipe do ministro Cardoso, mais interessada num ajuste fiscal e nas soluções de mercado, que até agora não apareceram. Com essas limitações, a câmara setorial da indústria automobilística sequer preocupou-se com o controle de preços do setor, e ficou longe de exercer uma estratégia antiinflacionária. Nesse sentido deixou de ser cumprida uma das funções primordiais de uma política de rendas negociada, qual seja o controle do aumento de preços e das margens de lucro, por meio das planilhas de custos, que não foram exibidas e sequer entraram em discussão. Mesmo porque não teria sentido controlar isoladamente os preços da indústria automobilística enquanto os demais preços da economia flutuariam livremente ao sabor dos interesses de cada setor. Quando muito poder-se-ia esperar um controle mais rigoroso do governo sobre a redução de 10% das margens de lucro das empresas, para eliminar o risco de ficar tudo nas costas da renúncia fiscal. Mas isso só seria possível com o acompanhamento da evolução de preços com a checagem de descontos e de outros expedientes que alteram os preços relativos dos veículos. Com um controle frouxo do governo, nada garantiu as reduções da margem de lucro, e, recentemente, as montadoras tentaram introduzir reajustes a cada dez dias (numa flagrante remarcação acima da inflação), para se aproveitar do boom de vendas que o acordo proporcionou. A despeito dessas limitações, o acordo setorial da indústria automobilística representa um avanço importante na organização da sociedade brasileira, e constitui um passo decisivo na abertura de canais para a explicitação do conflito entre capital e trabalho e de seu encaminhamento de forma organizada, de modo a evitar a anarquia do mercado.

Entretanto, os adversários de políticas de renda, que acham inviável a celebração de pactos sociais no Brasil, rejeitam acordos setoriais dessa natureza e acusam-nos de servir apenas aos grupos organizados, em detrimento do restante da sociedade. Segundo esses críticos, o acordo da indústria automobilística não trouxe os resultados desejados em termos de aumentos de vendas, não compensou a renúncia fiscal e apenas beneficiou os trabalhadores e empresários ligados à indústria automobilística, à custa do erário público. O economista Gustavo Franco chega a afirmar que “é duvidoso que tenha havido redução real nos preços dos automóveis, tendo em vista os aumentos prévios; é duvidoso que tenha havido mais que um aumento estatístico de vendas, tendo em vista o represamento anterior; e , se houve, é duvidoso que tenha sido causado por uma redução de preços provavelmente de natureza fictícia”.7 7 V. a respeito Franco, G.,op.cit, p. 42. Em tese, prossegue Franco, “uma redução de impostos indiretos tem efeito expansionista no setor beneficiado, ainda que muito pequeno: é percentualmente da mesma ordem da redução no preço (e, no caso em pauta, é duvidoso que tenha ocorrido tal coisa)”.8 8 Idem, p.42. De acordo com esse raciocínio, teria havido apenas redução de impostos (uma vez que a redução da margem de lucro foi uma impostura), que provocaria uma elevação de vendas de, no máximo, 12%, proporcional à redução de preços. Como explicar, então, o aumento de vendas de quase 40% (do primeiro semestre de 1993 em relação ao primeiro semestre de 1992) e a produção recorde de 1,3 milhão de veículos a ser alcançada até o final de 1993? O aquecimento da economia a partir do segundo semestre de 1992 pode explicar parte desse crescimento das vendas, porém não o suficiente para justificar 40%. Além disso, esse aumento de vendas trouxe também um aumento do IPI sobre automóveis (que passou de 8,6% da arrecadação total do IPI, em 1992, para 9,4% nos primeiros seis meses de 1993) e do ICMS, de modo a compensar folgadamente a renúncia fiscal.

Nesses termos, não é correto afirmar que o acordo beneficiou apenas sindicalistas e empresários do setor automobilístico, à custa do erário público, uma vez que houve aumento de arrecadação. De resto, proporcionou, sim, vantagens especiais para os integrantes do acordo, porque os empresários desfrutaram de uma massa maior de lucros trazida pelo aumento das vendas, e os trabalhadores já auferiam aumentos reais de salários e passaram a ganhar mais do que trabalhadores de outros setores. São vantagens devidas, em parte, ao fato de ter sido um acordo isolado, que não foi generalizado para outros setores e não foi alicerçado num acordo geral de preços e tarifas, aliás por falta de vontade do governo. Não resta dúvida que o setor automobilístico se beneficia de um efeito substituição, que desapareceria com a redução de preços de outras mercadorias, que ficariam tão atraentes quanto os veículos.

Por outro lado, não se pode pensar numa renúncia fiscal generalizada, a ser praticada em todos os setores, que não possuem uma carga tão elevada quanto a do setor automotivo. É possível, entretanto, reduzir provisoriamente alíquotas de alguns setores, após estudos de perdas e ganhos para a arrecadação fiscal, em face das respectivas elasticidades rendas, desde que resultassem numa elevação da carga fiscal no médio prazo, que se daria com o aquecimento das vendas. Aliás, a melhor maneira de elevar a carga fiscal é aumentando a produção, melhorando a fiscalização e combatendo a sonegação. E não criando novos impostos de afogadilho, numa estrutura fiscal tumultuada por anos de casuísmo tributário, como quer a equipe econômica do ministro Fernando Henrique Cardoso, para depois fazer uma reforma fiscal em regra no país, de preferência quando a economia estiver recuperada. Os neoliberais expectacionistas, que continuam frequentando o governo, insistem num ajuste fiscal recessivo, com cortes de gastos essenciais e aumento da carga fiscal, numa política insensata, que só leva à contração das atividades e consequente redução da arrecadação do governo, perpetuando o círculo vicioso de inflação, recessão, crise fiscal e empobrecimento da população.

A celebração de acordos gerais de preços, tarifas e salários, reforçada por uma redução provisória de alíquotas, contém o ímpeto inflacionário e cria as condições para a retomada do crescimento e para a recomposição das finanças públicas, a serem saneadas sem os cortes obsessivos dos neoliberais. A postergação sincronizada de aumentos de preços, reforçada pela redução de margens de lucro e pela diminuição de alíquotas, pode, já nos primeiros meses do acordo, resultar numa queda significativa dos reajustes, e produzir até mesmo uma deflação em alguns setores. Basta imaginar a generalização, num mês determinado, de reduções de preços semelhantes às do setor automobilístico, combinadas com a postergação dos reajustes mensais. E o governo teria de munir-se das condições para zelar pelo cumprimento desses acordos, assegurando a redução das margens de lucro, caso contrário o circuito inflacionário se realimenta.

O surgimento de atitudes corporativas de alguma câmara setorial seria neutralizado pela ação do governo, representando em cada câmara os interesses dos consumidores e do coletivo, e também pela ação do Conselho da República ou da câmara geral, que teria de conciliar o conjunto de interesses em jogo - dos produtores, dos consumidores, do setor público, etc. Até mesmo as elevações salariais do funcionalismo, da administração direta ou das empresas estatais seriam discutidas e decididas na câmara geral ou na respectiva câmara setorial, uma vez que esses salários representam custos importantes para setores diversos, e, no caso dos serviços públicos, afetam o conjunto da população. A neutralização de interesses particulares nas câmaras setoriais seria garantida pela contratação de fundações e institutos de pesquisa de reconhecida isenção e capacidade, tais como a Fundação Getúlio Vargas (FGV), a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), o Centro de Estudos e Pesquisas Contemporâneas (CEDEC), o Departamento Intersindical de Economia e Estatística (DIEESE), só para ficar nos mais conhecidos, encarregados de estudar planilhas de custos, definir critérios ou identificar aumentos, que atuariam em conjunto com as assessorias dos sindicatos e do governo, e também com os técnicos do IPEA, da FUNDAP, do IESP e de outros órgãos dos governos federal e estadual, todos dotados de profissionais habilitados para esse trabalho.

A queda da inflação, combinada com acordos de manutenção do emprego, com metas de investimento e com o estabelecimento de regras mais estáveis e duradouras, elevará o poder aquisitivo dos salários, ampliará a demanda e detonará um círculo virtuoso do crescimento. Deve-se, entretanto, ter o cuidado de garantir uma elevação da produção, proporcional ao aumento dos salários, para evitar um descasamento entre oferta e demanda, conforme aconteceu na época do Cruzado. Basta graduar a expansão da demanda e fazê-la acompanhar-se de ajustes no setor público, de aumento da oferta com base na ocupação da capacidade ociosa, de aumento de algumas importações com cotas e critérios e, sobretudo, da retomada dos investimentos em busca de saltos de produtividade. Aliás, atualmente as condições internas e externas são muito mais favoráveis que aquelas do Cruzado, em meio à crise do endividamento. Hoje as tarifas públicas estão ajustadas, parte das empresas privadas foram racionalizadas e aumentaram sua competitividade, o serviço da dívida é menor, os superávits comerciais são elevados, as reservas internacionais são muito maiores, as pressões dos credores internacionais são menores e o capital estrangeiro está em busca de novas possibilidades de valorização, em vista da recessão e das baixas taxas de juros do mercado internacional.

Evidentemente não é fácil implantar no Brasil um programa de estabilização centrado numa política de rendas ativa e num grande acordo nacional que reúna uma coalizão majoritária de interesses e forças políticas. Para alcançar um acordo dessa magnitude devem-se superar inúmeros obstáculos, tais como a falta de liderança e representatividade de alguns setores, principalmente do empresariado, a fragilidade do sistema partidário e a falta de credibilidade do Estado, corroída por uma sucessão de desacertos, corrupção e irresponsabilidades. Ao Estado cabe a tarefa de desenhar novo projeto de desenvolvimento, adequadamente articulado e sincronizado com o programa de estabilização, e preencher as lacunas do setor privado. Às elites cabe substituir uma ótica imediatista e individualista por uma visão mais ampla e um horizonte mais alargado. E as forças mais retrógradas e reacionárias devem ser identificadas, penalizadas e neutralizadas.

Sem dúvida é mais fácil realizar pactos políticos em sociedades avançadas e organizadas. Mas essa organização e essa representação não nasceram prontas, e foram forjadas justamente no intenso processo de discussão, negociação e articulação de problemas como esses que se quer resolver. Está em curso, no Brasil, um processo de depuração política talvez sem precedentes na história de nossa jovem República, que pode passar a limpo muitas mazelas de nosso sistema político, promover a conscientização da população mais atrasada, estimular a depuração das estruturas partidárias e incentivar a participação mais ativa da sociedade civil e de órgãos representativos das classes e seus segmentos, que terão que se organizar para isso. A renovação dos principais poderes da República (Presidência da República, governos estaduais e Legislativo) em 1994, com a possibilidade de vitória da esquerda em vários níveis, garantirá o amadurecimento do quadro político brasileiro e imporá o avanço da organização das classes e o surgimento de projetos alternativos, de direita ou de esquerda, que poderão viabilizar a implementação de programas de estabilização.

  • 1
    V. a respeito Bresser-Pereira, L. C. e Y. Nakano. “As elites têm medo”, Folha de S.Paulo,31/10/93.
  • 2
    No final de 1991 o governo de São Paulo e a prefeitura da capital tentaram constituir um conjunto de câmaras setoriais que deveriam fazer acordos de preços e salários, promover políticas setoriais, rever tributos e estabelecer outras iniciativas conjuntas. Porém, na hora de assinar o termo de compromisso, a FIESP recuou e “pulou fora” do acordo, preferindo optar pelo caminho da plena liberalização do mercado e livre flutuação de preços, que lhe era oferecido pelo recém-empossado ministro da Fazenda Marcílio Marques Moreira.
  • 3
    Sobre essa questão da credibilidade, v. a respeito Barrionuevo Filho., A, “A ‘credibilidade’ da política econômica antiinflacionária e sua consistência temporal”. EAESP-FGV, mimeo., 1993. V. também Pechman, C.R. Grandi, e A. Martins, “Credibilidade e inflação: uma análise empírica do caso brasileiro”. Revista Brasileira de Economia nº 43.
  • 4
    Para uma análise da efetividade do Estado, v. O’Donnell, G., “Estado, democratização e alguns problemas conceituais”. Novos Estudos CEBRAP, nº 36, jul. 1993.
  • 5
    Franco, G., “Alternativas de estabilização: gradualismo, dolarização e populismo”. Revista de Economia Política 13 (2), abr.-jun. de 1993. Franco não chega a ser o exemplo mais bem acabado de neoliberal expectacionista, apesar de sua verdadeira aversão pelas câmaras setoriais, uma vez que ele admite ter-se estabelecido, nos últimos anos, “um consenso sobre a necessidade de mecanismos de coordenação de expectativas ou políticas de rendas como um complemento indispensável ou uma condição necessária, mas não suficiente para o sucesso de programas de estabilização.” V. Franco, G., 1993, idem, p. 39. Entretanto, em seu artigo sobre “Alternativas de estabilização”, ele não deixa claro quais seriam esses mecanismos de coordenação de expectativas, passando a impressão de estar preocupado exclusivamente com a construção do que chama de as” precondições para uma iniciativa consequente”, quer dizer, um ajuste fiscal rigoroso e uma política monetária restritiva. “Apesar de todas as ruminações contra a ortodoxia na administração monetária e fiscal, é muito difícil perceber como seria a alternativa não ortodoxa à administração das políticas monetária e fiscal em condições de crise fiscal.” V. Franco, G., idem, ibidem, p. 44.
  • 6
    V. a respeito Bruno, M., “A estabilização da economia israelense: o programa de emergência em seu estágio inicial”. In A rida, P. org. Brasil, Argentina, Israel - Inflação Zero, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
  • 7
    V. a respeito Franco, G.,op.cit, p. 42.
  • 8
    Idem, p.42.
  • *
    O trabalho beneficiou-se dos comentários e sugestões de Paul Singer.
  • 10
    JEL Classification: E31; P13.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1994
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br