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O narrador e a psicanálise nos diários de A consciência de Zeno e Os moedeiros falsos

Narrator and psychoanalysis in the diaries of A consciência de Zeno e Os moedeiros falsos

RESUMO

O presente artigo propõe uma análise comparativa entre A consciência de Zeno, de Italo Svevo, e Os moedeiros falsos, de André Gide, no que se refere à forma do diário como um elemento que contribui não só para a construção dos romances, mas, também, como uma técnica formal que expressa uma visão de literatura nos anos 1920. Para tanto, inicia-se com uma breve introdução problematizando a questão da forma do romance; em seguida, contextualizando as obras em análise ao público; e, por fim, refletindo como o diário e a psicanálise fundam um estilo em Svevo e em Gide que propõe um pacto com o leitor ao mesmo tempo que evidencia tanto a ficcionalidade dos romances quanto a relação entre os escritores e seus protagonistas.

PALAVRAS-CHAVE
Modernismo; psicanálise; diário

ABSTRACT

This article proposes a comparative analysis between Italo Svevo’s La conscienza di Zeno and André Gide’s Le faux-monnayeurs concerning the use of the diary form as an element that contributes not only to the construction of the novels but also as a formal technique that expresses a literary perspective in the 1920s. To do so, it begins with a brief introduction addressing the issue of novel form, proceeds to provide context for the works under examination for the readership, and finally reflects on how the diary and psychoanalysis form a style in Svevo and Gide that offers a pact with the reader while highlighting both the fictionality of the novels and the relationship between the authors and their protagonists.

KEYWORDS
Modernism; psychoanalysis; diary

Hoje, na segunda década do século XXI, a forma do romance parece ainda ser uma questão para a crítica literária e, sobretudo, para a literatura ela mesma. Narrar em um mundo altamente tecnológico, cujas barreiras de comunicação e de distância não representam mais um fator limitante para a presença do sujeito, ao mesmo tempo que cria novas representações da experiência humana, traz à tona vívidas problemáticas do passado, como a forma do romance.

Tanto isso é verdade que o crítico italiano Alfonso Berardinelli, em sua obra Non incoraggiare il romanzo (2011BERARDINELLI, Alfonso. Non incoraggiate il romanzo. Sulla narrativa italiana. Pádua: Marsilio, 2011.), afirma que o desgaste do romance como forma privilegiada da narrativa contemporânea italiana faz com que as obras literárias, ao receberem tal etiqueta, tornem-se apenas um produto entre outros. Outro nome importante da crítica na Itália, Raffaele Donnarumma, em consonância com Berardinelli, corrobora:

Berardinelli ha ragione: come abbiamo visto, è vero sia che ormai, con una confusione che talvolta si riproduce anche tra gli accademici, ‘romanzo’ vale a sesignare qualunque libro di prosa, neppure strettamente narrativa, lungo più di cento pagine; ed è vero anche che i romanzi-romanzi, riconoscibili come tali, sono sempre di più. (DONNARUMMA, 2014DONNARUMMA, Raffaele. Ipermodernità. Dove va la narrativa contemporanea. Bolonha: Il Mulino, 2014., p. 155)2 2 “Berardinelli está certo: como vimos, é uma verdade que agora, com uma confusão que às vezes se reproduz até entre acadêmicos, ‘romanzo’ significa designar qualquer livro de prosa, nem sempre estritamente narrativo, com mais de cem páginas; e também é verdade que os romances, reconhecíveis como tais, estão cada vez mais presentes” (tradução minha). .

Donnarumma e Berardinelli convergem em relação ao tipo de categorização da crítica que ainda não está aberta o suficiente para pensar outras formas que não recaiam sobre as tradicionais, chamando tudo de “romance”. Esse debate torna-se cada vez mais relevante se se considera que o próprio Donnarumma representa uma linha da crítica atual que vê na literatura contemporânea, dentre outras características, o retorno da voz do “eu” como ponto de vista fundante da narrativa ao colocar-se, além de protagonista, como observador, mediador, testemunha; trata-se de um “eu” insuficiente e que exibe as suas feridas (DONNARUMMA, 2014DONNARUMMA, Raffaele. Ipermodernità. Dove va la narrativa contemporanea. Bolonha: Il Mulino, 2014., p. 142) ao leitor, de modo que o pacto da leitura se estabelece a partir da verossimilhança com a condição humana do personagem. Para fazê-lo, enfim, as formas do romance italiano contemporâneo - ao menos aqueles que servem de análise a Donnarumma - apostam no caráter híbrido entre a ficção e a não ficção, chegando a confundir criador e criatura na autoficção (como nos romances de Walter Siti, Helena Janeczek, Antonio Franchini, Antonio Moresco, Roberto Saviano).

Seja como for, o quanto foi dito até aqui não quer abrir a discussão da narrativa contemporânea, mas, sim, demonstrar como um debate sobre a forma do romance se faz presente ainda hoje assim como fora para os contemporâneos do Modernismo há cem anos. Na ocasião, Virginia Woolf, por exemplo, defendia Ulysses (1923), de James Joyce, ao dizer que o escritor irlandês estava realmente próximo da apreensão da vida em sua obra, pois:

In contrast with those whom we have called materialists, Mr. Joyce is spiritual; he is concerned at all costs to reveal the flickerings of that innermost flame which flashes its messages through the brain, and in order to preserve it he disregards with complete courage whatever seems to him adventitious, whether it be probability, or coherence, or any other of these signposts which for generations have served to support the imagination of a reader when called upon to imagine what he can neither touch nor see. (WOOLF, 1984, p. 161)3 3 “Em contraste com aqueles que chamamos de materialistas, o Sr. Joyce é espiritual; ele está preocupado a todo custo em revelar os lampejos da chama mais interna que lança suas mensagens através do cérebro, e, para preservá-la, ele despreza com coragem total o que lhe parece adventício, seja probabilidade, coerência ou qualquer outro desses indicadores que por gerações serviram para apoiar a imaginação de um leitor quando chamado a imaginar o que ele não pode tocar nem ver” (tradução minha). .

O argumento de Virginia reage, justamente, aos críticos de Joyce, que viam na forma caótica de seu romance uma quebra do paradigma até então aceitável da experiência literária. Mais do que a transposição total da experiência da vida ao romance, obras como as de Joyce, Virginia (Rumo ao farol, 1927), Alfred Döblin (Berlin Alexanderplatz, 1929), F. Scott Fitzgerald (O Grande Gatsby, 1925), entre outras, demonstram como, nos anos 1920, a forma narrativa do romance passava por uma experimentação importante aos vários Modernismos na Europa. Nesse sentido, há dois casos cuja relação está, justamente, no uso da forma não só como estrutura da narrativa, mas principalmente como fundadora da arquitetura que permite que exista enredo: A consciência de Zeno (1923), de Italo Svevo (1861-1928); e Os moedeiros falsos, de André Gide (1869-1951).

Em ambos os casos, como ficará demonstrado, os protagonistas são personagens e autores do livro que os leitores têm em mãos, pois, tanto Zeno quanto Edouard escrevem diários. Assim, a forma diarística - a qual, diga-se, dialoga com a preposição de Donnarumma à qual se aludiu anteriormente da escrita do “eu” - funda a forma do romance, em uma experimentação inovadora à época, que expõe a maquinaria interna, o limiar entre realidade e ficção no enredo que se constrói a partir da escrita do próprio personagem.

Contudo, cabe ainda assinalar que há um fator fundamental na relação da escrita dos diários por seus autores: a psicanálise. Ora motivado por ela (em Zeno), ora refletindo sobre ela (em Edouard), os protagonistas-escritores dão forma a um discurso marcadamente pessoal e controverso, corroborando o diário como a forma por excelência da apreensão da subjetividade em palavras. Os pontos de vista dos romances de Zeno e de Gide devem ser encarados pelo leitor com desconfiança, pois não há mediação senão aquela de seus espelhos no interior das obras; porém, sendo esses os únicos pontos possíveis de acesso, há de se perscrutar a relação entre o narrador e a psicanálise em tais livros que são os diários; em tais diários que são os livros.

O narrador e o diário

Zeno Cosini, protagonista de A consciência de Zeno (1923), de Italo Svevo, é o caso mais evidente da literatura italiana no qual o procedimento psicanalítico não é tema do romance e, sim, o romance. No caso de Zeno, porém, a psicanálise aparece às avessas, pois, desde o prefácio suis generis do psicanalista de Zeno, o Dr. S., fica claro o tom jocoso do romance, a começar pela anunciada quebra de sigilo ético entre analista e analisando, já que o doutor resolve publicar, por vingança, as memórias de seu paciente escritas por este, uma vez que ele abandonou o tratamento. Como se isso não bastasse, a ironia, presente em todo o livro, encerra as palavras do Dr. S., que afirma: “Seja dito, porém, que estou pronto a dividir com ele os direitos autorais desta publicação, desde que ele reinicie o tratamento. Parecia tão curioso de si mesmo! Se soubesse quantas surpresas poderiam resultar do comentário de todas as verdades e mentiras que ele aqui acumulou!...” (SVEVO, 2001SVEVO, Italo. A consciência de Zeno. Trad.: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 7).

Esse primeiro contato provoca, de partida, alguns questionamentos no leitor sobre a veracidade do que está lendo, pois, se são memórias publicadas por vingança pelo psicanalista, elas podem contar uma história adulterada em tantas maneiras, a começar pelo próprio fato de que são memórias, ou seja, estão desgastadas pela passagem do tempo (Zeno ultrapassa os 50 anos quando começa a escrevê-las). Ainda, a ideia de fidelidade é questionável não só pela irrupção irônica do Dr. S., mas, também, por ser uma reelaboração posterior do analisando de maneira escrita, o que, por princípio, fere a práxis da psicanálise, ou seja, de deitar-se no divã e falar livremente - em teoria - para, por lapsos e atos falhos, descobrir a “verdade” para que o cerne do problema venha à tona. A partir do momento em que Zeno rememora e escreve aquilo que deveria ser falado, qualquer possibilidade de “honestidade” é tolhida a priori por uma preocupação formal e estética inevitável que o filtro da linguagem escrita exige, e aqui não importa a malversação do psicanalista, porque o fenômeno da constituição narrativa a partir do presente da enunciação (ANDRADE, 2018ANDRADE, Fábio de Souza. O último cigarro, o primeiro lápis: a vida como rascunho em A consciência de Zeno, de Italo Svevo. Literatura e sociedade, São Paulo, n. 28, p. 139-162, jul.-dez. 2018., p. 144) a precede. Logo, percebemos que a forma diarística adotada por Zeno a partir do pedido do Dr. S. é controversa mesmo que admitamos que ambos estivessem dispostos a levar o tratamento a sério, pois podemos classificar o narrador, segundo Norman Friedman (2002, p. 175-176)FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção. O desenvolvimento de um conceito crítico. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 166-182, março-maio, 2002., ora como testemunha, ora como protagonista, mas que sempre pratica algum tipo de subversão - ou recalque, diria Sigmund Freud - naquilo que narra, seja ela consciente ou inconsciente. Nas palavras de Fabio Souza Andrade (2018, p. 147)ANDRADE, Fábio de Souza. O último cigarro, o primeiro lápis: a vida como rascunho em A consciência de Zeno, de Italo Svevo. Literatura e sociedade, São Paulo, n. 28, p. 139-162, jul.-dez. 2018., Zeno é:

[...] um narrador-narrado, personagem para o qual não há real sem sua contraparte inventada, nem confissão sem ficção. Nele, a escrita representa uma negação do princípio da realidade vitorioso, espécie de tímida e vicária rebelião possível, reversão dos limites em vantagens. No caminho de reexame da acidentalidade da vida, soma de momentos esparsos e desconexos, na tentativa de compreensão da origem dos males, na busca pela caixa de Pandora, a fabulação literária insinua a estreita margem de ultrapassagem da mera constatação das pernas curtas das boas intenções, ao que se resumiria a recomposição retrospectiva de Zeno, fosse-lhe cassada a esfera potencial aberta pela palavra. (ANDRADE, 2018ANDRADE, Fábio de Souza. O último cigarro, o primeiro lápis: a vida como rascunho em A consciência de Zeno, de Italo Svevo. Literatura e sociedade, São Paulo, n. 28, p. 139-162, jul.-dez. 2018. p. 147).

Em relação à psicanálise e ao diário, podemos citar outro exemplo, fora da Itália, que corrobora a proposição de Donnarumma, mas de outra maneira. O escritor francês André Gide, ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1947, escrevera Os moedeiros falsos em 1925, romance que se destaca em sua obra pela grande complexidade formal proposta: radicalizando a concepção já presente anteriormente da mise en abyme (CAMPOS, 2006CAMPOS, Regina Salgado. André Gide e o questionamento do romance. Lettres Françaises. Araraquara,n.7, p.27-38, 2006. Disponível em:https://periodicos.fclar.unesp.br/lettres/article/view/2012/1641. Acesso em: 6 jul. 2023.
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, p. 28). Gide constrói camadas entre escritor, leitor e personagens, pois o personagem Edouard pretende escrever um livro homônimo do romance de Gide e, assim como o escritor, mantém um diário4 4 Gide escreveu diários por toda a sua vida e, no caso de Le faux-monnayeurs, há um volume intitulado Journal des faux-monnayeurs (GIDE, 2009b), no qual temos acesso ao processo de escrita e às considerações do autor sobre o livro de 1925. ; por sua vez, o leitor lê o romance de Gide e, ao mesmo tempo, trechos do romance de Edouard e de seu diário; não obstante, o leitor ainda tem acesso ao que conta um narrador que permeia todo o livro, mas que não tem um ponto fixo. Conforme sintetiza Campos, em Os moedeiros falsos:

Há um narrador, testemunha anônima que circula como uma sombra no romance, enquanto o segundo foco, formado pelo Diário de Edouard, não apresenta somente o esforço do romancista para fazer um livro com isso, mas também uma outra narração, complementar da primeira. Assim Gide passa da estética da narrativa, para a do romance polifônico, e volta a praticar a mise en abyme (composição em abismo) que já caracterizava outras obras sobretudo os Cahiers d’André Walter e Paludes. (CAMPOS, 2006CAMPOS, Regina Salgado. André Gide e o questionamento do romance. Lettres Françaises. Araraquara,n.7, p.27-38, 2006. Disponível em:https://periodicos.fclar.unesp.br/lettres/article/view/2012/1641. Acesso em: 6 jul. 2023.
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, p. 31)

Como fica evidente, o leitor encontra uma dificuldade estruturante no livro, confirmando a necessidade de buscar na forma, para além do conteúdo, uma reflexão sobre o romance ele mesmo, certa autorreflexividade das camadas que se sobrepõem. Por isso a obra de Gide apresenta um desafio ao leitor, pois é o diário que toma a forma da metáfora das moedas falsas a partir das inúmeras versões e vozes que se misturam, mas que se limitam por haver um único acesso a elas: Edouard.

E como isso se liga à psicanálise? Tendo ilustrado a complexa estrutura do romance de Gide, podemos eleger o diário de Edouard como o foco que nos permite fazer um paralelo entre a sua escrita diarística e a de Zeno, pois, tal qual na obra de Svevo, a psicanálise aparece não só como tema, mas é a própria escrita daquele que assume o papel de “eu”, propositor, comentador e árbitro da narrativa, a revelar e a dar forma à consciência. E a comparação continua: talvez no caso do italiano a consciência fique mais evidente, pois está anunciada desde o título do romance como um termo ambíguo (LITERATURA..., 2015LITERATURA Fundamental 69: A consciência de Zeno - Roberta Barni. Ederson Granetto entrevista a professora Roberta Barni do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. São Paulo: Univesp TV, 2015. Entrevista. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aJfAWfjjRxs. Acesso em: 4 jun. 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=aJfAWfjj...
) que pode tanto significar a faculdade mental quanto o julgamento moral; porém Edouard faz o mesmo trabalho de rememoração, ainda que mais recente no tempo cronológico (diferente do tempo da memória), ao narrar episódios, conversas, sensações e, por isso, dar espaço a uma escrita subjetiva querida, mas que admite lapsos, atos falhos e é tão inconfiável quanto a de Zeno, uma vez que não sabemos se lemos as coisas como “realmente aconteceram” ou se foram manipuladas por Edouard; ainda, por outro lado, Zeno compartilha do fato de ser ele o autor de sua “autobiografia” e que, por fim, acaba sendo o romance que lemos e, por isso, a figura do escritor é comum àquela de Edouard, que duplamente escreve o diário e o romance Os moedeiros falsos. Nesse sentido, quando consideramos a figura de Edouard, também se pode admitir que exista um jogo no ponto de vista da narração, pois ora ele é personagem, ora testemunha (FRIEDMAN, 2002FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção. O desenvolvimento de um conceito crítico. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 166-182, março-maio, 2002., p. 175-176) ao reportar sua subjetividade e o que observa ao seu redor em seu diário; enfim, um narrador-narrado, como Zeno.

Tomemos dois trechos, um de cada obra em análise, para tentar demonstrar como, afinal, a forma diarística se propõe a organizar as narrativas de Zeno e de Edouard e como a psicanálise é utilizada em sua construção. O primeiro é do capítulo “Psico-analisi”, de A consciência de Zeno, no qual a progressão de datas é mais constante e deixa clara a forma do diário e, enfim, é o momento em que Zeno revela o que o levou a deixar o tratamento, muito embora o tenha feito ainda escrevendo como parte de seus registros:

Mas eu não dava, na verdade, grande importância a isso nem seria esta a razão de abandonar o tratamento. Se as horas de reflexão junto ao médico tivessem continuado a ser portadoras de surpresas e emoções interessantes não o teria abandonado ou, para abandoná-lo, teria aguardado o fim dessa guerra que me impede qualquer outra atividade. Agora, no entanto, que conheço o tratamento, quando sei que não passa de uma tola ilusão, de um truque capaz de comover apenas solteironas histéricas, como poderia suportar a companhia daquele homem ridículo, com um olhar que se pretendia escrutador e uma presunção que lhe permite agrupar todos os fenômenos deste mundo em torno de sua grande e nova teoria? [...]

Rio-me satisfeito. A melhor prova de que eu não tinha aquela doença decorre do fato de não estar curado. Esta prova convenceria inclusive o doutor. Ele não precisa preocupar-se: suas palavras não conseguiram conspurcar a recordação da minha juventude. Cerro os olhos e vejo imediatamente, puro, infantil, ingênuo, o amor por minha mãe, e meu respeito e grande afeto por meu pai. (SVEVO, 2001SVEVO, Italo. A consciência de Zeno. Trad.: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., 473-474).

O segundo, este de Os moedeiros falsos, é parte do segundo capítulo da segunda parte, momento no qual Edouard conversa com a enfermeira do menino Boris, Sophroniska, e ela lhe diz como é o tratamento do menino, que sofre “de um grande número de pequenas perturbações, tiques, manias” (GIDE, 2009GIDE, André. Os moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009., p. 194):

- E em que ele consiste?

- Oh! Simplesmente em deixá-lo falar. Todos os dias passo uma ou duas horas junto dele. Faço-lhe perguntas, mas muito poucas. O importante é ganhar sua confiança. Já sei muitas coisas. Pressinto muitas outras. Mas o menino se defende ainda, tem vergonha; se eu insistisse com muita pressa e muita firmeza, se quisesse forçar sua confiança, eu iria de encontro ao que quero obter: um completo abandono. Ele iria se revoltar. Enquanto eu não tiver conseguido triunfar sobre sua reserva, sobre seu pudor...

A inquietação de que ela me falava pareceu-me a tal ponto ofensiva que tive dificuldade para reprimir um movimento de protesto; mas minha curiosidade levava a melhor. (GIDE, 2009GIDE, André. Os moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009., p. 195).

Ambos os trechos trazem considerações acerca de como trabalha a psicanálise em termos de procedimento, ou seja, o modo pelo qual o analista busca provocar no analisando um caminho que o leve à cura. Lemos que Edouard confessa sentir e reprimir um desconforto quando a enfermeira fala em “triunfar sobre sua reserva” (GIDE, 2009GIDE, André. Os moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009., p. 195), porque ele deseja saber mais sobre o que Sophroniska pretende atingir no que se refere ao pequeno Boris, e o questionamento seguinte sobre as revelações impudicas deixa isso claro. O leitor, que confronta a declaração de Zeno com o que diz a personagem de Gide, sabe que Edouard está apontando para um dado problemático da relação estabelecida entre analista e analisando, ou seja, a possibilidade de que, na orientação do primeiro, o segundo seja levado a dizer não aquilo que é um problema, mas, sim, o que foi interpretado como problema que antes não gerava afetação; em outras palavras, Edouard age como uma espécie de observador externo que identifica alguma distorção possível no método de Sophroniska - o que, diga-se, ela rebate (GIDE, 2009GIDE, André. Os moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009., p. 196) -, algo que Zeno faz por si próprio só no último capítulo, compreendendo que seria o Dr. S. a ter um tipo de complexo de Édipo em relação a ele, seu paciente, no sentido de forçar um diagnóstico.

Não se pode afirmar, porém, que essa desconfiança pelo analista seja genuína e nem que Edouard e Zeno tenham motivo real para isso, e é aqui que a questão da forma diarística e o jogo do ponto de vista narrativo se fazem presentes: já que Edouard e Zeno escrevem em primeira pessoa em seus diários, rememorando, repropondo episódios e diálogos, o leitor jamais terá nada além de especulações sobre se as conjecturas e conclusões dos personagens se configuram como dados objetivos, pois a obra não prevê resoluções que nos deem modelos claros do que seja verdade ou mentira. Por exemplo, mesmo que o Dr. S. diga que publica as escritos de Zeno por vingança, ainda assim, é incerto afirmar que o analista estava errado em seu diagnóstico, pois ficam evidentes inúmeras passagens em que há uma questão edipiana, como no capítulo “A morte de meu pai”, no qual o confronto com o pai é permanentemente de competição e, segundo Eduardo Saccone (1973, p. 111)SACCONE, Eduardo. Commento a “Zeno”: Saggio sul testo di Svevo. Bolonha: Il Mulino, 1973., ditado pela constante procura pela substituição da figura paterna, pelos sentimentos ambíguos em relação ao pai e, por fim, pela culpa de achar ter sido responsável pela morte do progenitor.

Voltando à comparação com Os moedeiros falsos, Edouard fica inquieto quando pensa na possibilidade da invenção que Boris poderia promover como se fosse a confissão buscada pela enfermeira, ao que ela rebate dizendo: “- E se inventasse?... Toda invenção de uma imaginação doentia é reveladora” (GIDE, 2009GIDE, André. Os moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009., p. 196); e continua:

- Invenção, imaginação doentia... Não! Não é isso. As palavras nos traem. Boris, diante de mim, sonha em voz alta. Aceita ficar todas as manhãs, durante uma hora, nesse estado de meia-vigília em que as imagens que se propõem a nós escapam ao controle de nossa razão. Agrupam-se e associam-se, não mais segundo a lógica comum, mas segundo afinidades imprevistas; sobretudo, respondem a uma misteriosa exigência interior, a mesma que me importa descobrir; e essas divagações de uma criança me informam muito mais do que poderia fazê-lo a mais inteligente análise do mais consciente dos sujeitos. Muitas coisas escapam à razão, e quem, para entender a vida, serve-se somente da razão, é semelhante a alguém que pretendesse pegar uma chama com uma pinça. Tem diante de si apenas um pedaço de madeira carbonizado, que logo cessa de flamejar. (GIDE, 2009GIDE, André. Os moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009., p. 196-197).

A ideia da invenção e a da imaginação como antagonistas da razão são elementos caros à psicanalise, pois remetem ao sonho, que, segundo Freud (2019, p. 115)FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (I) (1900). Rio de Janeiro: Imago Editora, 2019. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Volume IV)., “é uma realização (disfarçada) de um desejo (suprimido ou recalcado)”. Logo, o que Sophroniska quer dizer ao opor os sonhos a uma análise clara e consciente tem a ver, justamente, com o grau de fluidez que um sonho ou uma construção imaginativa (sonhar de olhos abertos) poderia revelar não só pelas “confissões”, mas, principalmente, pelos recuos, ou melhor, pelo não dito ou dissimulado. O que há de comum nas duas formas (“real” versus “sonho”/“imaginação”) é como Boris irá construir o seu discurso e o que Sophroniska irá captar dele.

Nesse ponto, a enfermeira versa sobre a relação entre a linguagem e a psicanálise, pois toda expressão do consciente/inconsciente é formulada utilizando a língua, que, por sua vez, não é pura e carrega significações que transcendem o sujeito e, ao mesmo tempo, limitam-no; com isso, queremos dizer que o pequeno Boris só conseguirá formular suas “afinidades imprevistas” à medida que o faça expressando-se em uma língua e, por isso, o grau de conhecimento desta é que irá determinar o grau de expressão do menino. É interessante notar como essa ideia tem progressão na teoria lacaniana, que se utiliza de um arcabouço freudiano e estruturalista (oriundo de Ferdinand de Saussure e de Roman Jakobson) para dizer, em síntese, que a linguagem constitui o sujeito e, logo, o seu inconsciente (RÊGO; CARVALHO, 2006RÊGO, Fabiana Lins Browne; CARVALHO, Glória Maria Monteiro de. Aquisição de linguagem: uma contribuição para o debate sobre autismo e subjetividade. Psicologia, Ciência e Profissão, Brasília, v. 26, n. 1, p. 12-25, 2006. https://doi.org/10.1590/S1414-98932006000100003.
https://doi.org/10.1590/S1414-9893200600...
, p. 14). Tanto é assim que, pouco a pouco, através de uma passagem que vai da concretude da língua/linguagem ao abstrato, ao metafórico, a criança, em seu processo de aquisição de linguagem, vai se tornando independente (da figura) de seus pais e construindo conceitos sobre si e sobre o mundo. E é por isso que:

A perspectiva estruturalista-lacaniana vem subverter essa concepção [construtivista, de acordo com Jean Piaget], introduzindo, no campo de estudo da linguagem, o sujeito do inconsciente, destruindo a noção de sujeito da filosofia clássica, reflexivo, psicológico, que tem controle sobre si e sobre o mundo. O indivíduo não usa a língua como instrumento, mas sim, é assujeitado por ela, deixando-se muitas vezes surpreender pelos chistes, atos falhos e lapsos. Nessa perspectiva, o inconsciente é estruturado como linguagem, ou seja, “O inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem” (Lacan, 1986, p. 139). (RÊGO; CARVALHO, 2006RÊGO, Fabiana Lins Browne; CARVALHO, Glória Maria Monteiro de. Aquisição de linguagem: uma contribuição para o debate sobre autismo e subjetividade. Psicologia, Ciência e Profissão, Brasília, v. 26, n. 1, p. 12-25, 2006. https://doi.org/10.1590/S1414-98932006000100003.
https://doi.org/10.1590/S1414-9893200600...
, p. 15).

A questão da linguagem e da expressão, introduzida pelo binômio invenção versus razão, remete-nos, novamente, à forma como preocupação base no Modernismo e, no caso de Svevo e de Gide, a como o tema da psicanálise e a alternância do ponto de vista narrativo dos autores de diário (Zeno e Edouard) contribuem para que a nossa leitura rompa a camada ficcional do romance. Isso porque há elementos nas obras em questão que ampliam, hermeneuticamente, a interpretação que podemos dar a passagens como, por exemplo, aquela seguinte à fala de Sophroniska, última citação de Os moedeiros falsos: a partir desse momento e até o final do capítulo, o leitor se depara com considerações acerca do próprio romance e acerca daquilo que deveria buscar o romancista, mas o faz através da voz de um personagem que também é escritor. A razão, para Sophroniska, seria aquela que impede os romancistas de adentrarem na alma humana e, logo, que os faz construir personagens que “não têm nem alicerce, nem subsolo” (GIDE, 2009GIDE, André. Os moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009., p. 197); seria uma concepção de enredo, tipos e lugares nos quais a subjetividade não tem lugar e, por isso, sem a capacidade de penetrar no íntimo das consciências. Nesse sentido, ela vê “mais verdade nos poetas [pois] tudo aquilo que é criado apenas pela inteligência é falso” (GIDE, 2009GIDE, André. Os moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009., p. 197). Enfim, pouco depois, Edouard diz que compreende o que a enfermeira de Boris critica no romance, mas que há “certas razões artísticas, certas razões superiores, que [o] fazem pensar que não é de um bom naturalista que se faz um bom romancista” e que essas razões “escapam a ela” (GIDE, 2009GIDE, André. Os moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009., p. 198), ou seja, que ela não poderia compreender em sua simplicidade de não escritora as falhas do romance e que, por isso, não valeria a pena entrar nesse mérito na conversação.

Nesse trecho, os naturalistas que aparecem no romance de Gide pela voz de Edouard nada mais representam do modelo de romance no século XIX, cuja “verdade” objetiva, porém, dada a crise imperiosa, não daria conta de falar sobre o sujeito em sua complexidade no mundo fraturado do século seguinte. Por isso, a personagem anuncia que os poetas são vistos como superiores aos romancistas, pois esses, sim, pela sua expressão lírica, conseguiriam expressar uma “verdade” genuína.

A partir disso, retomando a questão da forma do romance, vemos que ela aparece nos diários de Edouard por várias vezes e manifesta-se como um problema que o personagem se coloca enquanto escritor, inclusive para além da oposição com o também escritor Robert de Passavant, representante da hipocrisia e do estelionato literário. Nessas passagens nas quais Edouard reflete consigo sobre a sua escrita, temos uma sobreposição de camadas que colocam Gide e Edouard em linha e, conforme dissemos anteriormente, propõem-se a se projetar para fora do romance. Chama atenção, em especial, o capítulo cinco da segunda parte do livro, no qual Edouard começa falando sobre o “tema profundo” de seu romance e, logo em seguida, repropõe o diálogo com Sophroniska, que diz acreditar ter encontrado o motivo pelo qual Boris tinha aquela doença nervosa. Inicia Edouard:

Começo a entrever o que chamaria de “tema profundo” de meu livro. É, será, sem dúvida a rivalidade entre o mundo real e a representação que fazemos dele. A maneira como o mundo das aparências se impõe a nós e tentamos impor ao mundo exterior nossa interpretação particular faz o drama de nossa vida. A resistência dos fatos convida-nos a transpor nossa construção ideal para o sonho, a esperança, a vida futura, na qual a nossa crença se alimenta de todos os infortúnios da atual. Os realistas partem dos fatos, acomodam aos fatos as suas ideias. Bernard é um realista. Temo não poder me entender com ele. (GIDE, 2009GIDE, André. Os moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009., p. 223).

Aqui, exatamente no início do capítulo, Edouard - e Gide, poderíamos dizer - retoma a oposição com os naturalistas/realistas e diz que o tema de seu livro será a relação entre o “mundo das aparências” e o mundo não das essências, como seríamos levados a deduzir; mas entre aquele e o mundo da percepção/interpretação subjetiva da imposição das aparências e dos fatos. Notemos que não há uma idealização platônica na intenção de Edouard, como se fosse possível opor aparência e essência, como se existisse um ideal moral ou de comportamento que fizesse frente a algum tipo de degeneração entre as relações sociais de um mundo concreto; e isso porque a ideia de valor muda de acordo com a “interpretação particular” que se faz da vida. Portanto, o que há, de fato, é uma tensão irresoluta entre esses dois polos, o dos fatos e o da “construção ideal”, e Gide, através de Edouard, mostra-nos que não há mais qualquer possibilidade de encontrar respostas seja onde for, inclusive na literatura, tanto é que o próprio Edouard não termina o seu livro e nós, leitores, vemos apenas fragmentos de algo que, desde o princípio, não poderia ter fim. Em síntese, conforme Campos (2006, p. 37)CAMPOS, Regina Salgado. André Gide e o questionamento do romance. Lettres Françaises. Araraquara,n.7, p.27-38, 2006. Disponível em:https://periodicos.fclar.unesp.br/lettres/article/view/2012/1641. Acesso em: 6 jul. 2023.
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: “Talvez, pela forma escolhida, ele [Gide] permita agora ao leitor sair de sua passividade e de sua sujeição, e este possa compreender que a literatura não impõe um sentido, vive mais por causa de seus questionamentos do que por suas respostas”.

O que foi dito em relação à língua enquanto formadora da subjetividade e as considerações sobre o romance que rompe a camada da ficcionalidade também aparecem em A consciência de Zeno. No último capítulo do livro, Zeno rebaixa o Dr. S. ao máximo quando afirma:

Ele só estudou medicina; por isso não sabe o que significa escrever em italiano para nós que falamos (e não sabemos escrever) o dialeto. Uma confissão escrita é sempre mentirosa. Mentimos em cada palavra toscana que dizemos! Podemos falar com naturalidade das coisas para as quais temos frases prontas, mas evitamos tudo quanto nos obrigue a recorrer ao dicionário! Dessa mesma forma, escolhemos de nossa vida os episódios mais notáveis. Compreende-se que ela teria uma feição totalmente diversa se fosse narrada em dialeto. (SVEVO, 2001SVEVO, Italo. A consciência de Zeno. Trad.: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 474).

A colocação de Zeno vai totalmente ao encontro da perspectiva da linguagem abordada anteriormente, pois reconhece - ou dissimula, uma vez mais - que a língua foi um impeditivo para que pudesse se expressar de modo claro e, consequentemente, mais honesto. Dito isso, pensando na língua e na interpretação para além da obra, podemos ler esse trecho pensando em dois aspectos. O primeiro referente a um ponto comum entre o protagonista e o autor, pois para Svevo foi um desafio escrever em italiano (LITERATURA..., 2015LITERATURA Fundamental 69: A consciência de Zeno - Roberta Barni. Ederson Granetto entrevista a professora Roberta Barni do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. São Paulo: Univesp TV, 2015. Entrevista. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aJfAWfjjRxs. Acesso em: 4 jun. 2023.
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) - não gratuitamente os seus contemporâneos não recepcionaram bem a sua obra e diziam que era mal escrita. Já o segundo liga-se à estilística do romance, pois reflete: uma questão concreta do autor Italo Svevo; uma forma diarística; um relato pessoal a ritroso de um neurótico; e, por fim, um conjunto de relatos que passou pelas mãos de um médico tão pouco confiável quanto o seu paciente. Sendo assim, como bem afirmou Cavalcanti (2017, p. 10)CAVALCANTI, T. H. de B. N. A vida será literaturalizada: a escrita epistolar de Italo Svevo. Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2017. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8148/tde-23042018-120010/pt-br.php. Acesso em: 10 jul. 2023.
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pensando no crítico Ian Watt (1917-1999), é com esse trecho que Zeno “desfere o golpe de misericórdia no artifício de ilusão de realidade, fundamental para a sustentação do romance” (de acordo com o modelo oitocentista). Vale ressaltar a qualidade do trabalho de Cavalcanti no que se refere ao epistolário de Svevo, fator que também pode ser aproximado a André Gide, que manteve diários por toda a vida; portanto, ambos formularam um tipo de prosa que não se enquadraria como ficcional e cujo teor autobiográfico é constante e, em certa medida, oferece-nos suplemento para ler os romances, já que possibilitam correspondências claras. Como afirma Andrade (2018ANDRADE, Fábio de Souza. O último cigarro, o primeiro lápis: a vida como rascunho em A consciência de Zeno, de Italo Svevo. Literatura e sociedade, São Paulo, n. 28, p. 139-162, jul.-dez. 2018., p. 149), “o caráter peculiar que a experiência assume quando revista pela literatura já demonstra sua centralidade, a exemplo do que se passa na evolução da obra de outro narrador em que ficção e confissão se entrelaçam”.

Mas isso significa que os diários e as cartas são o segredo decodificador dos romances? A nosso ver não, mesmo que a identidade cultural desses autores modernistas esteja “inscrita em seu destino pessoal e sua biografia” (ANDRADE, 2018ANDRADE, Fábio de Souza. O último cigarro, o primeiro lápis: a vida como rascunho em A consciência de Zeno, de Italo Svevo. Literatura e sociedade, São Paulo, n. 28, p. 139-162, jul.-dez. 2018., p. 145). Assim como o crítico precisa se lembrar de não colocar o escritor no divã como método de análise literária, uma escrita como um diário pessoal e como um epistolário não necessariamente conterá elementos que se caracterizem como uma escrita literária: Livia, esposa de Svevo, não é Augusta e tampouco Ada; do mesmo modo, Gide não faz a crônica do caso dos meninos que passavam moedas falsas em Paris. Não obstante, podemos citar Julio Cortázar para reforçar o argumento, uma vez que o crítico, mesmo que tenha pensado sobre a forma do conto, dá-nos uma proposição importante para iluminar o que estamos discutindo, ou seja, que é preciso que o escritor vá “muito além da pequena e às vezes miserável história que conta” (CORTÁZAR, 2008CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad.: Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. Org. Haroldo de Campos e Davi Arriguci Jr. São Paulo: Perspectiva, 2008., p. 154); em outras palavras, o acontecimento ordinário precisa se tornar enredo.

E é exatamente isso que fazem os escritores em análise: sobre a questão das camadas, Zeno e Edouard, escritores também eles, fazem o mesmo que Svevo e Gide. Para citar apenas um exemplo de cada um, se pensarmos na vida de negociante de sucesso que Svevo teve e naquela de Zeno, descrita no capítulo “História de uma sociedade comercial”, perceberemos que não é a mesma voz que instaura a narração e que as trajetórias são diferentes; Svevo pode ter se nutrido de sua experiência e de episódios particulares que provocaram a sua elaboração na composição de A consciência de Zeno, mas, definitivamente, a sua carta à esposa na qual fala sobre o novo maquinário recebido em Charlton (CAVALCANTI, 2017CAVALCANTI, T. H. de B. N. A vida será literaturalizada: a escrita epistolar de Italo Svevo. Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2017. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8148/tde-23042018-120010/pt-br.php. Acesso em: 10 jul. 2023.
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, p. 166) não é mesma voz que titubeia perante o cunhado Guido ao perceber erros de contabilidade (SVEVO, 2001SVEVO, Italo. A consciência de Zeno. Trad.: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 197). Indo além, a voz de Gide não só não é a de Edouard como o próprio personagem explicita que, para escrever o seu romance, necessita de um filtro e de uma reelaboração dos fatos, de modo a apontar à questão do estilo de seu Os moedeiros falsos, como quando decide não incorporar o suicídio de Boris ao seu livro, porque se trata de uma “indecência, pois não esperava por ele” (GIDE, 2009GIDE, André. Os moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009., p. 415). Há uma linha entre Svevo e Zeno e entre Gide e Edouard; contudo, cada um tem a sua voz e a manifesta dentro de uma forma e de um estilo que se assemelham, mas não se confundem.

Findo o diário, acabada a sessão

Encerrando as considerações sobre A consciência de Zeno e Os moedeiros falsos neste espaço, acrescenta-se, ainda, que o exercício proposto foi o de tentar estabelecer comparações levando em conta uma modificação de paradigma geral no início do século XX, sobretudo nos anos 1920, e no que se refere à forma e ao romance como tentativas, por parte dos escritores, por mais que beirassem o niilismo - e os finais das obras em análise são testemunha disso -, de representar o mundo e a vida pela arte. Ainda que imperem a ironia, o mal-estar e o negativismo - os quais, diga-se, viriam a se confirmar como a Segunda Guerra Mundial -, há espaço para a imaginação, a construção, a escrita.

Hoje, encontrando-nos em outros anos vinte, estes também marcados pela morte e pelo desespero de doenças e guerras, o estudo de obras de autores como Italo Svevo e André Gide pode ser lido até mesmo como um sinal de esperança, pois é a prova de que algo sempre sobrevive e encontra uma forma de se manifestar, possibilitando novos olhares a novos leitores, apesar do caos, elementos intrínseco e extrínseco ao romance.

Ainda que estejam presentes o autoritarismo, a negligência, a perda e que se constitua uma memória ferida, assim como foi com a grande instabilidade política e social que se arrastou por toda a década de 1920, entre o fim da Primeira Guerra Mundial, passando pela gripe espanhola, pela ascensão do fascismo e do nazismo e chegando ao crack da Bolsa de Nova York em 1929, a literatura emerge como resistência pelo fato de insistir em buscar matéria na experiência e, para fazê-lo, trazer à luz o ser humano em sua completa inconsistência; em sua formação perenemente inacabada; em sua vida vivida como ela é, como ele gostaria que fosse, em sua projeção ideal, em sua recusa, em seu gozo, em seu julgamento pelos olhos próprios e pelos alheios; e, quando tudo isso não basta, pelo seu registro, tornando-a matéria de si mesma e revelando-a pela escrita.

  • 2
    “Berardinelli está certo: como vimos, é uma verdade que agora, com uma confusão que às vezes se reproduz até entre acadêmicos, ‘romanzo’ significa designar qualquer livro de prosa, nem sempre estritamente narrativo, com mais de cem páginas; e também é verdade que os romances, reconhecíveis como tais, estão cada vez mais presentes” (tradução minha).
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    “Em contraste com aqueles que chamamos de materialistas, o Sr. Joyce é espiritual; ele está preocupado a todo custo em revelar os lampejos da chama mais interna que lança suas mensagens através do cérebro, e, para preservá-la, ele despreza com coragem total o que lhe parece adventício, seja probabilidade, coerência ou qualquer outro desses indicadores que por gerações serviram para apoiar a imaginação de um leitor quando chamado a imaginar o que ele não pode tocar nem ver” (tradução minha).
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    Gide escreveu diários por toda a sua vida e, no caso de Le faux-monnayeurs, há um volume intitulado Journal des faux-monnayeurs (GIDE, 2009bGIDE, André. Diário dos moedeiros falsos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009b.), no qual temos acesso ao processo de escrita e às considerações do autor sobre o livro de 1925.

Referências

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  • BERARDINELLI, Alfonso. Non incoraggiate il romanzo. Sulla narrativa italiana Pádua: Marsilio, 2011.
  • CAMPOS, Regina Salgado. André Gide e o questionamento do romance. Lettres Françaises Araraquara,n.7, p.27-38, 2006. Disponível em:https://periodicos.fclar.unesp.br/lettres/article/view/2012/1641 Acesso em: 6 jul. 2023.
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  • CAVALCANTI, T. H. de B. N. A vida será literaturalizada: a escrita epistolar de Italo Svevo. Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2017. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8148/tde-23042018-120010/pt-br.php Acesso em: 10 jul. 2023.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2023
  • Aceito
    30 Nov 2023
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