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O intelectual brasileiro e o argumento do cangaço na década de 1930

The Brazilian intellectual and the subject matter of cangaço in the 1930s

RESUMO

O cangaço foi tema recorrente de jornais, livros, músicas, filmes e peças teatrais durante toda a primeira metade do século XX. Neste artigo, buscaremos comparar os discursos sobre o assunto veiculados pela imprensa brasileira contemporânea ao cangaço, propondo uma interpretação sobre como ele foi representado no decorrer das décadas em que ocupou o noticiário. A análise narra eventos da história da república brasileira, associando o interesse pelo assunto do cangaço com a crônica política do Brasil da década de 1930.

PALAVRAS-CHAVE
Cangaço; Modernismo; Estado Novo

ABSTRACT

Cangaço was a very common theme in books, newspapers, songs, theatrical part and movies throughout all the first half of XX century. This article has the point to compare intelectual views about this subject, making the purpose to explain how the cangaço was intellectually recreated by writers, engaging the discourses about it with the politic chronic of Brazil between the decades 20’ and 60’.

KEYWORDS
Cangaço; Brazilian Modernism; Estado Novo

O regime colonial português no Brasil foi longevo. Em 1822, dada a sua independência política, o povo brasileiro poderia ser espreitado como população mista entre aquela parte que vivia dentro dos domínios rurais, vilas e cidades, e outra parte periférica aos domínios do Estado, que formava a parcela mal dimensionada da população. Habitando territórios vastos, encontrava-se a parcela sertaneja do povo brasileiro, que, quase sempre de cor parda, alentava a imaginação intelectual de ensaístas da primeira República brasileira a ver na mistura de longa data dos povos de três continentes do globo terrestre os aspectos mais marcantes do colonialismo da época moderna: o escravismo racista e o genocídio de populações indígenas.

Caio Prado Jr., em Formação do Brasil contemporâneo (1942), descreveu essa população. Reconhecida dentro de uma variedade de toponímias - cafuzos, mamelucos, mulatos, caboclos, de acordo com suas características físicas -, essa população escapava parcialmente do alcance da cultura de repressão ao homem de cor preta e ao indígena quando dela se deduzia algum aspecto do homem branco, não sendo, portanto, coagida ao trabalho ao lado das turmas de escravos na lavoura e nos engenhos, mas sendo, por fim, quando sem serventia nos domínios rurais, “descartada” para uma vida volante por fazendas e tropas militares (PRADO JÚNIOR, 1965_____. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1965., p. 283).

Devido às dificuldades de inserção desses grupos na economia do domínio rural, quando não ocupavam postos em bandos armados ou como capatazes de turmas de escravos, vaqueiros, pescadores, caçadores e artesãos, seu destino era o garimpo ou se ajeitar nas vilas, lugares onde com sorte fariam negócio, encontrariam trabalho de “ofício mecânico”, ou atenderiam à convocatória para se filiar a tropas militares e expedições sertanistas (BAMBRILLA, 2017BAMBRILLA, Gustavo. A percepção dos vadios em São Paulo. In: Vadios & vadiagem na São Paulo restaurada: a utilização dos vadios na administração do governador e capitão-general Morgado de Mateus (1765-1775). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História Econômica, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2017., passim). Por fim, quando sem opções nas fazendas e vilas e quando a promessa de ouro no interior do continente não os movia, optavam por se embrenharem nos planaltos, levando uma vida marginal em relação à sociedade da Colônia e, após o advento da monarquia brasileira, marginal ao Império.

Durante a monarquia, a população volante cresceu nas regiões do semiárido brasileiro2 2 O adjetivo “sertanejo” deriva do termo “sertão”, que denomina as áreas pouco povoadas e/ou pouco cultivadas que existem no interior do Brasil. “Sertão” vem de longa data sendo empregado com variado ecletismo. Embora o seu uso não seja temerário nos estudos brasileiros, sendo inclusive um termo que agrada pela síntese que oferece para os agentes referenciados, evitaremos nesta pesquisa o uso dos termos “sertão” e “sertanejo” para impedir misturar o vocabulário do pesquisador com o vocabulário dos documentos consultados da primeira metade do século XX. Em muitas situações em que normalmente se veria a palavra “sertão” ser empregada, neste artigo se verá o termo “semiárido” tomar o seu lugar, visto que o sertão do cangaço é exclusivamente a região do semiárido nordestino. . Com a expansão da cultura do algodão a partir da segunda metade do século XIX, províncias do Nordeste, como a Paraíba, por exemplo, passam a empregar população livre no sistema produtivo da lavoura (SÁ, 1994SÁ, Ariane Norma de Menezes. Escravos, libertos e livres: a Paraíba na segunda metade do século XIX. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1994., p. 71). O desenvolvimento da economia aumentou a presença de instituições e autoridades no semiárido, contribuindo para romper o isolamento da população mal fixada à terra (SÁ, 1994SÁ, Ariane Norma de Menezes. Escravos, libertos e livres: a Paraíba na segunda metade do século XIX. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1994., p. 72). Após a longa estiagem de 1877 a 1879, os empreendimentos agrícolas do semiárido são objeto de atenção das províncias para o seu resgate econômico, e a pretensão dos fazendeiros de coagir ao trabalho assalariado a população livre do semiárido desencadeou o convívio sedicioso entre população, proprietários e autoridades (SÁ, 1994SÁ, Ariane Norma de Menezes. Escravos, libertos e livres: a Paraíba na segunda metade do século XIX. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1994., p. 79).

O ambiente favorável ao conflito tem como uma das consequências o surgimento de grupos de indivíduos perseguidos pelas forças policiais e pela justiça do Império. Indivíduos em tal situação eram facilmente recrutados por agrupamentos de assaltantes que, gozando de grosso poder de fogo em regiões vastas as quais conheciam bem e onde poderiam se ocultar com facilidade, encontravam meios para se protegerem contra as sentenças judiciais que os obrigava à vida retirada. Bem armados e mais bem alimentados que o grosso da população, ameaçavam qualquer forma de ordem que não se submetesse a eles, como bem descreveu Caio Prado Júnior (1965, p. 282)_____. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1965.:

É entre estes desclassificados que se recrutam os bandos turbulentos que infestam os sertões, e ao abrigo de uma autoridade pública distante ou fraca hostilizam e depredam as populações sedentárias e pacatas; pondo-se a serviço de poderosos e mandões locais, servem os seus caprichos e ambições nas lutas campanárias que eles entre si sustentam [...].

Nesse cenário de desordem pública, ficavam os assaltantes sertanejos livres para interpelar viajantes, cobrar propinas de fazendeiros e de comerciantes. Por fim, o poder de violência dos bandos acabava por competir com as instituições de repressão do Império e da República recém-proclamada, situação de beligerância que submeteu a política regional do semiárido. Com os cangaceiros, como eram chamados os bandos do semiárido da Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco, um fazendeiro poderia negociar a sua força, alcançando com eles o apoio necessário para enfrentar um oponente na política regional3 3 Este artigo pouco se apoia na ampla bibliografia sobre o cangaço. Para um estudo social e histórico sobre o cangaço fazemos menção à biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) por ela conter um vasto repertório de títulos sobre o assunto. .

Euclides da Cunha, engenheiro militar que ao lado de Teodoro Sampaio contribuíra para o conhecimento do semiárido brasileiro com trabalhos inéditos, em Os sertões (1902) descreveu o cangaceiro como sendo o habitante do território semiárido ao norte da Bahia. Para aquém dela, ele entendeu que jagunço era a designação dada. Cangaceiro e jagunço foram igualmente descritos como indivíduos que apenas ligeiramente se distinguiam pelo traje, mas que no resto eram igualmente armados e dados à resolução homicida dos dissídios (CUNHA, 1905CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Laemmert, 1905., p. 223). O cangaço passou metonimicamente a designar os bandos armados de sertanejos que agrediam a população do semiárido nordestino. Ciente das muitas histórias de assassinatos entre famílias inimigas no Nordeste, Euclides de Cunha infere que o cangaço teria seu início com as batalhas mortais entre famílias inimigas.

Na primeira década do século XX, enquanto Euclides da Cunha interpretava o habitante do semiárido brasileiro, jornais brasileiros já reservavam atenção para a região, pesando sobre o cangaceiro e o jagunço o argumento da impunidade dos agressores4 4 Esta pesquisa consultou jornais exclusivamente pela Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital). Para facilitar a redação e a leitura, adequamos parcialmente os textos das fontes para as normas em vigor da língua portuguesa. Todas as referências dos jornais consultados estão no corpo do texto. . Vê-se, em coluna publicada no dia 21 de novembro de 1901 no número 264 de A Província: Órgão do Partido Liberal (Pernambuco), por José Severino Paixão, um leitor desse jornal, a situação temerosa em que se encontrava:

AVULSO

Floresta, 20 - foi ontem atacado no Riacho Serra, município de Cabrobó, meu irmão Joaquim Rodrigues, negociante, pelos assassinos Antonio Vaqueiro, Cafinfins e mais trinta criminosos, a mandado de Francisco Quirino.

Houve depois forte tiroteio.

Os bandidos quebraram portas, assassinaram José Francisco, vaqueiro do coronel Trapiá, saindo baleada uma criança de seis anos de idade.

Dos atacantes um morreu e outro saiu ferido com uma bala.

Dias antes os mesmos assassinos desfecharam tiros no meu sobrinho Manoel e apoderaram-se do burro em que ele montava.

Os cangaceiros são fortemente protegidos no município de Floresta pelo coronel Cazé e José Cipriano.

Espero aqui providências e garantias à minha vida. - José Joaquim Paixão.

O cangaço associado com a impunidade perdurou nos jornais por toda primeira metade do século XX. Durante a década de 1930, a afronta impetuosa do cangaço virava no Rio de Janeiro matéria para todo tipo de alarde sobre as relações sediciosas entre autoridades e civis. Próximo ao final da década de 1920, o grande volume de notícias sobre o cangaço nos jornais era um alerta para a classe dirigente da República sobre a instabilidade em que o país era posto enquanto os governos da federação revelavam-se incapazes de articular um projeto de pacificação nacional5 5 Investigando o acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, o conteúdo da pesquisa foi selecionado a partir das palavras-chaves “cangaço”, “cangaceiros” e “Lampião”, “Coronel Pereira” e “João Pessoa”. Dessa forma, localizamos várias centenas de registros de conteúdo de periódicos jornalísticos dedicados a noticiar a violência social no semiárido da Região Nordeste. . As eleições presidenciais de 1930 trataram obrigatoriamente desse tema.

O número 789 do jornal paulista Diário Nacional - A democracia em marcha, de 24 de janeiro de 1930, lançou editorial apoiando a Aliança Liberal, coligação opositora do Partido Republicano Paulista (PRP), do governo com Washington Luís, promovendo a candidatura de João Pessoa para a vice-presidência. Nesse editorial, falou-se da campanha que o candidato idealizou para encerrar o banditismo no seu estado. O editorial de apoio à chapa Getúlio Vargas-João Pessoa manifestou a opinião de que a continuidade do banditismo estaria relacionada à falta de aliança entre os estados do norte para o combate aos bandos do cangaço. Como o tema causava sensação pelo argumento da impunidade, o aparecimento do “cangaço” no tópico da gestão do governo passou a ser meio de um grupo político acusar a sua oposição.

Estando o governo federal em campanha eleitoral para o candidato Júlio Prestes, o Diário Nacional, número 838, de 23 de março de 1930, publica a acusação do governador João Pessoa ao presidente Washington Luís de usar recursos do governo federal (liberação dos serviços de telégrafo e empréstimo do Banco do Brasil) como apoio à cidade de Princesa (PB), controlada pelo coronel José Pereira, que se insurgiu contra o governo do estado, armando a população da cidade para resistir às forças policiais que fossem enviadas.

Fato de ampla comoção popular, o assassinato do candidato João Pessoa em Recife na data de 27 de julho de 1930 pelo jornalista João Dantas endossava o lugar do Norte no noticiário da crise política do Brasil. Com a crise alcançando a campanha de Júlio Prestes, o coronel Pereira não faria mais resistência, e o tenente João Facó reocuparia o município de Princesa, fato que, mesmo que houvesse aumentado as chances de Júlio Prestes desvencilhar-se da crise paraibana, não o levaria à presidência da República, pois ele não chegou a tomar posse do cargo após sua vitória nas urnas, uma vez que fora impedido por parte das Forças Armadas. O novo governo seria conhecido como Junta Militar Provisória e colocaria Getúlio Vargas na presidência, que começava o governo com a base parlamentar da recém-formada Aliança Liberal que, entre outros, reunia o Partido Republicano Mineiro e o Partido Democrático Paulista.

Uma vez que o governo do PRP saía e entrava a Aliança Liberal, em agosto de 1930, a instabilidade do semiárido era transferida para os novos ocupantes do Palácio da Guanabara. Na terceira página do dia 21 de fevereiro de 1931, o jornal liberal pró-Vargas A Esquerda (número 956) cria manchete e dois subtítulos que manejam o “combate ao cangaço” para o âmbito da crise nacional: “Combater Lampião sem combater o cangaço é combater um efeito sem procurar destruir a causa - Medidas urgentes e indispensáveis que o governo deve tomar - Um grande problema nacional”

A empresa de montar uma expedição federal soberba para combater o cangaço no semiárido nordestino teve o seu ensaio na consolidação do governo com as articulações do militar tenentista Juarez Távora para a intervenção federal nos estados do Nordeste. Em artigo do número 1.118 de A Esquerda, de 31 de agosto de 1931, é dada a importância do assunto para os primeiros despachos do governo da Junta Militar Provisória:

Logo nos primeiros dias do atual governo falou-se que uma grande expedição militar seria enviada contra Virgulino Ferreira. Apareceram bonitas notícias nos jornais; o capitão Chevalier designado para comandar a caçada ao torvo “condottiere” conferenciou seguidamente com as autoridades: apareceram patriotas furibundos dispostos a se alistarem nas hostes salvadoras e o resultado foi dissolver-se a expedição que fora organizada com tanto carinho.

A matéria, que conta com uma nota irônica, se referia à expedição militar que vinha sendo preparada no Rio de Janeiro para combater o cangaço do bando de Lampião, missão que passava a impressão de espalhafatosa nos jornais. O tenente Carlos Chevalier6 6 O capitão Carlos de Saldanha da Gama Chevelier havia apoiado o golpe de outubro de 1930. Fora preso em 1925 acusado de tentativa de levante contra o presidente Arthur Bernardes. Anistiado por Washington Luís, regressa do presídio de Trindade ao Rio de Janeiro, onde será reincorporado às Forças Armadas, sendo promovido em junho de 1930 a capitão-aviador. representaria com a expedição o compromisso de que não media esforço do governo para lidar com a questão, alardeando o uso de aviões, metralhadoras e sistemas de rádio. Após meses de preparativos da expedição, o tenente Carlos Chevalier, através de O Jornal, do grupo Diários Associados, vai a público em 17 de junho de 1931 dizer que a missão estava suspensa uma vez que não recebera os recursos do Estado que requisitara para empreendê-la. O debate político em torno da questão enquadrou-se na discussão nacional sobre a responsabilidade dos governos, federal ou estadual, de realizar o policiamento dos estados.

O jornal Correio de S. Paulo (número 128), em 11 novembro de 1932, entrevistando o capitão da polícia da Bahia, João Facó, convocado pelo governador interventor do estado tenente Juracy Magalhães, conta que a estratégia da polícia para combater o cangaço vinha sendo “draconiana” e que suas medidas deveriam em breve abater Lampião. A estratégia que relatou João Facó convencido de ser a melhor aplicável ao problema era remover pelo uso da força as populações de sitiantes das regiões ermas para evitar que servissem de “coiteiros”, isto é, anfitriões e espiões dos cangaceiros, “compensando-os” com a oferta de trabalho na construção de estradas. A redação acrítica sobre a fala do capitão mostra que o jornal foi complacente com sua estratégia, visto ser evidente que a medida policial era de excessiva invasão aos habitantes do norte da Bahia. Contudo, deve-se crer que a responsabilidade assumida pela polícia do estado tal como fez João Facó foi a solução encontrada pelo governo federal para lidar com o banditismo do semiárido, visto que dessa forma o escudava de ultrapassar o governo do estado sobre a questão e garantia a política sobre o assunto através de governadores interventores.

A publicidade que gerava ao governo o enfrentamento da questão era arriscada. A experiência popular com a violência das forças de polícia no semiárido foi um custo que o governo de Getúlio Vargas decidiu não assumir diretamente, como pode ser interpretado pelo “vai e vem” da expedição do tenente Carlos Chevalier. Uma vez estabelecido o policiamento do semiárido como responsabilidade dos estados a exemplo da estratégia do capitão da polícia da Bahia João Facó, passava a predominar no discurso oficial do governo federal de Getúlio Vargas o argumento de que a violência do interior do Brasil era decorrência da seca e da fome, isto é, um “problema social” ante um “problema policial”.

Em 1930, o Partido Comunista do Brasil (PCB) lançou candidato próprio e, após o golpe contra Júlio Prestes, não se aliou ao governo da Aliança Liberal. Membros do PCB opinaram sobre o cangaço como qualquer outro partido, valendo-se do tópico nacional-regional para apresentar as suas diretrizes. Embora setores socialistas dos intelectuais brasileiros fossem democratas, o PCB defendia a revolução nacional pela tomada dos meios de produção e inauguração do regime comunista no Brasil. Por esse princípio bolchevique, a expressão mais próxima do povo em armas que houvesse no Brasil gravitaria para a atenção do birô sul-americano da Internacional Comunista. A esse respeito, Luiz Bernardo Pericás (2014)PERICÁS, Luiz Bernardo. Prestes, Lampião, el movimento obrero y los comunistas. In: _____. Los cangaceiros: ensayo de interpretación histórica. Playa: La Habana Editorial de Ciencias Sociales, 2014. apresenta, em seu estudo sobre o cangaço, análise de documentos de órgãos da Internacional Comunista em que fica evidente que se debatia o cangaço como fato positivo que requisitava ser canalizado para a campanha revolucionária comunista. Sendo o comunismo uma relativa novidade no Brasil rural, o PCB defrontaria com a necessidade de sensibilizar a população para a sua missão revolucionária. Movidos por esse intuito, jornais comunistas revisitam a memória da passagem da Coluna Prestes, braço liderado pelo tenente Luís Carlos Prestes da insurreição tenentista contra o então presidente Artur Bernardes. Inspirados por Prestes, filiado ao PCB na década de 1930, os comunistas envolvem o discurso do partido com a trajetória de luta volante da Coluna, que havia circulado pelo semiárido do Nordeste e estado em circunstância de vigília à ameaça dos bandos do cangaço.

A despeito dos debates que aconteceram em meados da década de 1930 pelos comitês dos PCs sul-americanos, os comunistas brasileiros tinham todos os motivos para antagonizarem com o cangaço, que apenas fornecia prova cabal de barbárie e nunca demonstrou qualquer manifestação de interesse pelos comunistas. Contudo, a direção executiva tendia a ver o cangaço como oportunidade para a revolução. Visto de fora e pela distância do tempo, fica evidente que, a despeito das diferenças entre comunistas e cangaceiros, havia entre eles uma condição partilhada: para ambos, estabelecer a confiança com a população com a qual faziam contato era operação difícil.

Levando em conta a campanha de criminalização do comunismo que o governo de Getúlio Vargas pauta a partir de 1932, conquistar o apoio popular e tornar os camponeses brasileiros dispostos a aceitar o ideal de luta armada em nome de algo tão distante de suas realidades, como era a ditadura do proletariado, era tarefa bastante difícil para os internacionalistas brasileiros. Vemos a iniciativa dos comunistas de associar a luta internacionalista com a expressão brasileira “povo em armas” em 9 de dezembro de 1935, quando o Correio de S. Paulo, número 1.073, publicou artigo sob a manchete “O Partido Comunista fomenta o banditismo nos sertões!”. Com evidente intenção maliciosa, o jornal paulista apresentou trechos de artigo de Luís Carlos Prestes escrito havia algum tempo ao jornal pernambucano antifascista Homem Livre, em que o capitão procura associar a violência dos cangaceiros à luta anti-imperialista. Reproduzindo o discurso direto de Luís Carlos Prestes, o Correio de S. Paulo, que havia embarcado na campanha anticomunista e que no ano de 1935 não tinha qualquer pudor em propor qualquer tipo de iniciativa de aniquilação dos comunistas do Brasil, apresentou toda a sua oposição ao PCB:

Eis o que Prestes pensa dos cangaceiros:

“Os cangaceiros são grupos mais ou menos numerosos de camponeses que, perseguidos pelos senhores feudais ou pelas autoridades governamentais, não podem subsistir senão em luta. Entre outros, o mais conhecido é Lampião, que combate vitoriosamente há mais de dez anos contra todas as forças enviadas contra ele. A crise atual, agravada no Nordeste brasileiro por longos anos de seca, aumentou o número de ‘cangaceiros’ e hoje, ao lado de Lampião, formigam pequenos chefes de bandos que vivem do dinheiro e das mercadorias arrancadas aos ricos comerciantes. As massas nutrem a maior simpatia pelos ‘cangaceiros’ que dividem com ela grande parte dos víveres e mercadorias tomadas”.

E Prestes acrescenta: “Naturalmente, os grandes senhores de terras e os jornais burgueses caluniam os ‘cangaceiros’, apresentando-os como bandos de malfeitores e assassinos, no intuito de amedrontar a pequena burguesia e impedir que o proletariado das cidades entre em ligação com os sertanejos rebeldes, a fim de orientá-los e organizá-los”.

E termina: “No entanto, para fazer face ao furor sanguinário dos grandes senhores de terra contra as massas de camponeses que combatem no interior do país, o P.C.B. e o Socorro Vermelho Internacional têm de executar tarefa urgente: apelar para as vastas massas trabalhadoras do mundo inteiro e realizar grandes movimentos de protestos contra o terror branco no Brasil e pelo desarmamento dos bandos policiais que devastam os sertões brasileiros”.

O Correio de S. Paulo esperava que o seu leitor entendesse como irrealistas os argumentos de Luís Carlos Prestes, pois este toma a classe dos latifundiários do Brasil como senhores de feudos medievais, e compara as forças policiais dos estados do Norte com a guarda imperial do czar Nicolau II deposto pela Revolução Russa. A conclusão do artigo permite a nós observar a estranha “anistia moral” concedida por Luís Carlos Prestes aos cangaceiros, que apaga os crimes homicidas deles pelo argumento da sua legitimidade no “problema social”, que determina o cangaço pela evidência da miséria desencadeada pelas estiagens, e que os autoriza por enquadrá-los enquanto expressão de insurreição popular.

Devido à duração do problema do cangaço, partidos de oposição e de governo se posicionam sobre o assunto no decorrer da década de 1930, tornando o seu debate uma reflexão indireta sobre a responsabilidade de governo entre estados e União. O PCB, fora da disputa do Congresso por ser perseguido pela justiça, entraria no debate sobre o cangaço, reivindicando que a ele fosse creditado o valor positivo de “levante popular”. Colateral ao problema aberto, a opinião pública de intelectuais brasileiros esteve voltada para a narrativa do cangaço como vazão para a crítica ao governo e para interpretações com sentidos obscuros a respeito de ânimo contido na população rural brasileira.

O cangaço admirado por intelectuais da década de 1930

O cangaço, movimento que não sublevava quartéis, mas agia simplesmente pela violência e assalto, fornecia aos intelectuais a dimensão do potencial violento do povo. Autor cearense vivamente interessado pela temática do cangaço, Gustavo Barroso, sob o pseudônimo de João do Norte, antes de aliar-se ao fascismo integralista, escreveu sobre outros cangaceiros que fizeram fama em fase anterior à de Lampião: Antônio Silvino, Jesuíno Brilhante, José Antonio do Telhado. Em 24 de fevereiro de 1922, a revista Ilustração Brasileira, número 18, publicou uma crônica sua, chamada “Padre Pedro”. Nessa crônica, ele narrou a proximidade que houve entre o cangaço e o clero do semiárido nordestino.

O fenômeno dos padres que assimilaram a conduta dos coronéis já era assunto público antes da República. As populações do semiárido do Norte eram, em boa medida, gravitadas para a administração paroquial, fazendo dos padres figuras de autoridade de justiça sobre a população. Tomando o partido dos “padres armados”, João do Norte encontra um meio nessa crônica de acusar as oligarquias do século XIX de administrarem de forma interessada a justiça local, com a consequência de fazer dos pobres incrédulos sobre ela. Portanto, a posição de João do Norte é de apoiar a autoridade dos padres, uma vez que é a única que ele reconhece a exercer governo no semiárido. Contudo, o caso antigo do “padre Pedro” expressa também a autarquia sob sua liderança, agindo ele conluiado com os cangaceiros. Segundo João do Norte, durante o reinado de Dom João VI, o padre Pedro tinha uma fazenda em Pernambuco, e em sua casa acolhia todos os que se diziam perseguidos e pediam refúgio a ele. Apenas não acoitava aqueles acusados de roubo, o que purgava para sua proteção os “bons cangaceiros”. Por esse critério, os cangaceiros da época do padre Pedro não deveriam entrar no rol dos ladrões porque o que valia era o crime de assassinato que a eles era imputado. João do Norte aproveita o assunto dos “padres armados” amigos dos cangaceiros para criticar os coronéis do semiárido, responsabilizando-os pela situação pobre e caótica na qual viviam os povos. João do Norte narra a defesa do padre aos cangaceiros e a resistência punitiva que infligia a todos que ameaçavam os acoitados em sua fazenda:

Continuou a sua vida bárbara, mandando atrelar à sua bolandeira e ao seu engenho de cana, como muares, os oficiais de justiça que o vinham citar e os comandantes dos destacamentos que o vinham sitiar e que desbaratava.

E há mais de um século, infelizmente, energias dessa ordem, caracteres assim fortes, energias e caracteres que produziram os heróis das bandeiras e da guerra holandesa, do Equador e dos Quebra-quilos, se perdem no nosso sertão por culpa dos nossos governos, que os não têm sabido aproveitar, encaminhando-os para o bem, salvando-os do mal!

O relato do padre cangaceiro fornecia longevidade para a violência do Nordeste, que Gustavo Barroso passou a admirar uma vez que viu nela a expressão de força popular à espera de um governo que dela se valesse positivamente. A violência do banditismo passa ao largo de ser condenada pelo escritor, que, ao contrário, se vale da memória dos padres armados para criticar a fraqueza da elite no Brasil, incapaz de agir com disciplina e de entregar ao povo um tribunal que este respeitasse pelo cumprimento da justiça. Aparecem em seu discurso, portanto, vários elementos do pensamento integralista ao qual Gustavo Barroso aderirá na década de 1930.

Assim como Gustavo Barroso, o folclorista Luís da Câmara Cascudo era estudioso da cultura popular do Nordeste e escreveu sobre o cangaço. Para o Diário Nacional (número 897, de 3 de junho de 1930), publicou coluna em que, tal como Gustavo Barroso, abordou o cangaço como consequência da falta de prestígio dos juízes no semiárido. Nesse artigo, alude a um argumento que difere dos dois principais argumentos que vinham sendo empregados com a função de estabelecer uma relação causativa entre o indivíduo e o cangaço. O primeiro, de que seriam “criminosos natos”, tipo social teorizado no âmbito da criminalística, é refutado por ele; o segundo, de que seriam criaturas de seu meio, pelas consequências sociais da estiagem do semiárido, é também escamoteado do rol dos motivos. O que Câmara Cascudo propõe no debate sobre a origem do cangaço deriva de seus estudos de cultura popular. Para ele, o cangaço é fruto do alto grau de ceticismo do sertanejo sobre a justiça oficial:

Mas qual seria o fator psicológico na formação do cangaceiro? Para mim é a falta de justiça, que no Brasil é corolário político.

A vindita pessoal assume as formas sedutoras dum direito inalienável e sagrado. Impossível fazer crer a um sertanejo que o tipo com que ele abateu o assassino de seu pai deve levá-lo à cadeia e ao júri subsequente. Julga inicialmente um desrespeito a um movimento instintivamente lógico e que a lei só deveria amparar e defender. Daí em diante surgirá o cangaceiro vítima de sua mentalidade. Ele descende em linha reta das “vendetas” e da pena do Talião.

Este é o aspecto raro. O comum é o sertanejo matar o assassino que ficou impune e bazofiador. Neste particular a ideia de prisão é para ele insuportável e inadmissível. Surge, fatalmente, o cangaceiro.

Intelectual de espectro ideológico de esquerda e abordagem da cultura popular alheia aos estudos do folclore, Graciliano Ramos explica o cangaço pelas crises sociais causadas pela estiagem. Em crônica sua, traçando um panorama do indivíduo ao fenômeno social que explicasse o cangaço, afirmou que a sociedade pastoril à qual o cangaceiro pertence está de tal modo habituada com a resolução violenta de dissídios e à punição aviltante para aqueles que furtam animais (gado e cavalos) que o homicídio é um crime banalizado:

Como a riqueza é principalmente constituída por animais, o maior crime que lá se conhece é o furto de gado. A vida humana, exposta à seca, à fome, à cobra e à tropa volante, tem valor reduzido - e por isso o júri absolve regularmente o assassino. O ladrão de cavalos é que não acha perdão. Em regra não o submetem a julgamento: matam-no. Vi há muitos anos um sertanejo que, em companhia de dois filhos bem armados, tinha viajado umas quarenta léguas a pé, rastejando um desses criminosos. (RAMOS, 1962RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. São Paulo: Editora Martins, 1967. , p. 126-127).

Graciliano Ramos vira Lampião entrar em Palmeira dos Índios (Alagoas) em 1926, onde, conforme narra, ficara uma semana. Estava ciente das violências de seu bando, capaz de cometer crimes hediondos. Durante as décadas de 1930 e 1940, a explicação psicológica para o cangaço virou recorrente entre intelectuais pela condição dramática em que o indivíduo que o antecipa quase sempre é um foragido da polícia por cometer crime violento em “defesa da honra”. Graciliano Ramos, caso viesse a reconhecer o cangaceiro tal como um vaqueiro ofendido que busca reunir os cacos de sua dignidade, provavelmente não se faria cúmplice dos crimes cometidos por esses bandos. As explicações para o ingresso do indivíduo no cangaço conforme propuseram Gustavo Barroso e Câmara Cascudo não parecem surtir efeito de convencimento no autor, que atribui a responsabilidade primeira do cangaço para o veterano argumento do problema social advindo da estiagem, das condições de insegurança alimentar e moradia no semiárido. Mas seu argumento não se sustenta somente pela crítica às ações do governo para a região, ele atualiza o argumento do problema social para a crítica a sociedade de classes, acusando o sistema fundiário brasileiro (RAMOS, 1962RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. São Paulo: Editora Martins, 1967. , p. 126 et seq.).

Na década de 1940, “nordeste” como expressão geográfica e cultural já é recorrente, sendo debatido como aparte regional do Brasil. Os jornais, ensaios, romances e estudos históricos durante a década de 1930 descreviam o povo do semiárido eivando-o com juízos que funcionavam para selar um estereótipo do tipo habitante-hábitat: sertanejo-sertão. Qualquer que fosse a explicação da origem do cangaço promovida na década de 1930, o indivíduo, uma vez que se juntasse aos cangaceiros, passava a ser interpretado como sujeito que, por meio de confrontos e luta armada, escapava da penúria decorrida da estiagem, do trabalho abusivo nas fazendas e dos conflitos domésticos. Quem via de fora o noticiário policial do Nordeste pela lente narrativa da transformação do sertanejo indignado em “matador” acreditava que se tratava do homem do povo empregando sua energia para trazer instabilidade para o mundo que habita. Embora não condicionasse sua interpretação sobre o cangaço ao argumento psicológico, em 1931 Graciliano Ramos publicou artigo para o Semanário Ilustrado (número 3, Alagoas) em que buscou tocar os leitores para o valor positivo que transborda do povo coagido que opta pela violência, reforçando o argumento de igualdade civil que obrigava os leitores a reconhecerem que eles e os cangaceiros pertenciam à mesma sociedade e que, se Lampião e seus sertanejos podiam se rebelar com destemor e impiedade, todos deveriam considerar essa opção:

Como somos diferentes dele [do cangaceiro Lampião]! Perdemos a coragem e perdemos a confiança que tínhamos em nós. Trememos diante dos professores, diante dos chefes e diante dos jornais; e se professores, chefes e jornais adoecem do fígado, não dormimos. Marcamos passo e depois ficamos em posição de sentido. Sabemos regularmente: temos o francês para os romances, umas palavras inglesas para o cinema, outras coisas emprestadas.

Apesar de tudo, muitas vezes sentimos vergonha da nossa decadência. Efetivamente valemos pouco.

O que nos consola é a ideia de que no interior existem bandidos como lampião. Quando descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados.

E já agora nos trazem, em momentos de otimismo, a esperança de que não nos conservaremos sempre inúteis.

Afinal somos da mesma raça. Ou das mesmas raças.

É possível, pois, que haja em nós, escondidos, alguns vestígios da energia de Lampião. Talvez a energia esteja apenas adormecida, abafada pela verminose e pelos adjetivos idiotas que nos ensinaram na escola. (RAMOS, 1962RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. São Paulo: Editora Martins, 1967. , p. 135)

O cangaço, com sua energia agressiva “brotada” do povo, era matéria para os intelectuais - fossem eles progressistas como Graciliano Ramos ou reacionários como Gustavo Barroso -censurarem a classe dirigente, que falhava em transformar a sociedade ou manter a ordem. Entre os intelectuais do espectro da esquerda, veio a ser comum a “homenagem” ao cangaço, isto é, a crítica pela ironia aos intelectuais. É esse o caso do fragmento supracitado. O sentido irônico que emergia da opinião de Graciliano Ramos é que no Brasil o grupo dos profissionais intelectuais expressaria o abatimento e a debilidade que o afinavam com a população do semiárido, pois os intelectuais, apesar de muito diferentes dos vaqueiros do Nordeste, quando postos lado a lado, evidenciariam a singularidade da sociedade brasileira.

Tamanha demonstração de força e de impiedade que se creditava aos cangaceiros contra a população habituada com a penúria causada pela seca e pelos assédios dos coronéis interessou ao cronista Rubem Braga, que logo se pôs ao lado de Graciliano Ramos, partilhando a opinião de que o que separava os intelectuais dos cangaceiros era, antes de tudo, não terem eles a confiança e a coragem para agir com a desmesura dos bandidos. Na crônica “Cangaço” publicada pelo Diário de Pernambuco de 2 de fevereiro de 1935 (número 28), Rubem Braga manifesta posição crítica ao sensacionalismo dos escritores que exploravam a expectativa do público sobre o cangaço:

Lampião, que exprime o cangaço, é um herói popular do Nordeste. Não creio que o povo o ame só porque ele é mau e bravo. O povo não ama à toa. O que ele faz corresponde a algum instinto do povo. [...] Os métodos de Lampião são pouco elegantes e nada católicos. Que fazer? Ele não tem tempo de ler artigos do Sr. Tristão de Ataíde, nem as poesias do Sr. Murilo Mendes. É estúpido, ignorante. Mas se o povo o admira é que ele se move na direção de um instinto popular. Dentro de sua miséria moral, de sua inconsciência, de sua crueldade, ele é um herói - o único herói de verdade, sempre firme. A literatura popular, que o endeusa, é cretiníssima. Mas é uma literatura que nasce de uma raiz pura, que tem a sua legítima razão social e que só por isso emociona e vale. (BRAGA, 1964BRAGA, Rubem. O conde e o passarinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964.).

Partindo de argumento próximo ao de Graciliano Ramos, Rubem Braga viu no atentado à propriedade pelo cangaceiro a razão do “amor do povo ao cangaço”. As propriedades dos fazendeiros do semiárido podiam ser odiosas para a população, que competia com vizinhos poderosos pelo acesso aos recursos hídricos das represas e rios. A relação com as propriedades também era complicada para os vaqueiros, que eram facilmente iludidos pelos proprietários, sujeitos que se valiam de algum rudimento de escolaridade para conduzirem os vaqueiros a aceitarem um acordo desvantajoso pelo seu trabalho.

Independente do fato de serem os cangaceiros, em termo vulgar, bandidos sem nenhum programa de poder, vistos “de longe”, do Rio de Janeiro e São Paulo, eles atingiam na década de 1930 a ribalta de escritores em narrativas ficcionais, reinaugurando o sertanejo atávico de Euclides da Cunha disposto a medir poder com o governo dos coronéis remanescentes da Primeira República. Já para o povo da cidade do Rio de Janeiro, massa semiurbana a que Rubem Braga pertenceu, cujas “emoções” ele aprendera a descrever, o cangaço causava alguma sensação de liberdade:

Vi um velho engraxate mulato, que se babava de gozo lendo façanhas de Antônio Silvino. Eu percebi aquele gozo obscuro e senti que ele tinha alguma razão. Todos os homens pobres do Brasil são lampiõezinhos recalcados; todos os que vivem mal, comem mal, amam mal. (BRAGA, 1964BRAGA, Rubem. O conde e o passarinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964., p. 64).

O livro póstumo de Mário de Andrade O turista aprendiz tem relação direta com suas anotações da viagem pelo Brasil entre 1928 e 1929. No índice desse livro “Automóvel, 19 de janeiro”, de 1929, Mário de Andrade relata um dia de sua viagem pelo Rio Grande do Norte, à margem do rio Açu, e sua entrada numa zona mais seca do Estado. Nessa segunda fase do dia de viagem, avista família de retirante em situação de expressiva miséria se escondendo numa sombra de pereira. Compadece do sofrimento deles. Mais adiante, Mário de Andrade avista na cidade de Gavião uma casa em que o responsável se desentendeu com Lampião, que havia pouco tempo tinha passado por lá:

Estamos quase tocando com a mão a serra do Martins, mas os corpos continuam secos e o calor pavoroso. E estamos perdidos, o caminho errou. No solão das 15 horas, através do juremal ressecado, pinoteando no trilho dos carros de boi...

Afinal topamos com Gavião, lugar de gente brigona, a cangaceirada, o caminho vai todo espinhando de cruzes.

Aproveitamos a sombra duma casa pra mudar o pneu e beber água. Crio coragem, fecho os olhos, bebo. A casa é dum homem que andou se atrapalhando com Lampião quando este passou por aqui, via Mossoró. Foram duma burrice estratégica tão gentil que Lampião de enjoo só matou “três anjos”, como costuma falar. Topamos com as três cruzes juntas, logo partidos. (ANDRADE, 2015ANDRADE, Mário. O turista aprendiz. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo. Brasília: Ed. do Iphan, 2015. , p. 329-330).

E comenta como foi a recepção em povoado aterrorizado pelo cangaço:

Todo o povoado acordou com as buzinadas. Recepção positivamente hostil. O pessoal por aqui vive obcecado pela presença do cangaço, imaginaram que éramos cangaceiros, quatro homens esquisitos. Foi um custo desdesconfiarem. Boiamos carne de sertão com farinha, coalhada com rapadura e caímos nas redes. Maravilha de noite fresquinha!... (BRAGA, 2015BRAGA, Rubem. O conde e o passarinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964., p. 330).

O rastro “vivo” da devassa de Lampião pelo Rio Grande do Norte fizera os habitantes do semiárido desconfiados da expedição turística de Mário de Andrade. Misturadas ao rastro de destruição causado pelos cangaceiros na paisagem, estavam as obras públicas abandonadas na cidade de Seridó, motivo de impressão de desperdício em Mário de Andrade. No seu relato da viagem pelo interior do Rio Grande do Norte, ele tece, pelo fluxo de sua indignação, um comentário pragmático sobre a paisagem que o vinha comovendo. Impressionado com o estado de penúria e abandono que vira no semiárido, rejeita a interpretação do cangaço enquanto paródia da superação dialética dos problemas nacionais, não chegando, contudo, a deslegitimar o recurso da solução violenta para o Brasil:

Não é possível se pregar revolução nesse país. Na certa que haverá traidores. O que nós carecemos é dum cangaço secreto, matando friamente fulano que é gatuno, fulano que é burro, fulano que é abúlico, assim. Matar. Matar friamente. Então o açude de Gargalheiras juro que já estava acabado, beneficiando a uma região produtora, prendendo gente no solo nordestino, enriquecendo o país. (ANDRADE, 2015ANDRADE, Mário. O turista aprendiz. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo. Brasília: Ed. do Iphan, 2015. , p. 337).

Mário de Andrade mimetizava nessa digressão o avesso da violência intestina do semiárido, já banalizada na literatura brasileira pelo volume de reflexões intelectuais sobre ela. Mas seu posicionamento mostrava do autor a distensão de repelir os escritores da literatura “lampeônica”7 7 Deboche sobre a insistência de escritores no assunto “Lampião” que fez Mário de Andrade em duas cartas (n. 76, de 22/1/1931, e n. 93, de 16/2/1932) destinadas ao folclorista Luís da Câmara Cascudo (MORAES, 2010). . Ele, ao contrário, rejeitava o que vinha sendo produzido por eles, assimilando nesse aspecto o mesmo repúdio por tal literatura que manifestou Rubem Braga. A literatura que positivava a violência do “sertanejo” fizera das agruras sociais do semiárido algo tão presente nos jornais e livrarias que um murmúrio sobre o assunto ganhava a dimensão das formas humanas, acarretando desvios narrativos em direção à sensação que embaralhava o conhecimento da realidade do cangaço8 8 Foram muitos os títulos de narrativas que misturaram memória e fantasia romanceada de diálogos do bando de Lampião. A propósito delas, esses autores referem a crítica. .

Opinando a respeito do cangaço na cultura brasileira, Mário de Andrade parece fiar-se na interpretação sobre o assunto de Luís da Câmara Cascudo ao propor a divisão do fenômeno do cangaço em duas fases icônicas: de Antônio Silvino, cavalheiresca; e de Lampião, vilã. Desse esquema, no índice de seu diário de viagem pelo Nordeste “Natal, 23 de janeiro”, concebe que ao cangaço antigo coube difundir a fama do sertanejo armado como tipo resistente às intempéries do semiárido, rigoroso ao seguir códigos morais de seu povo, com forte senso de vingança contra o mal a ele infligido. Com Lampião, o cangaço entraria na fase da violência “sem grandeza” - essa “transformação foi definitiva por Lampião e os companheiros dele, hoje verdadeiros salteadores, gatunos sem grandeza e sem nenhuma espécie de dignidade, estupradores, roubadores, gente ruim” (ANDRADE, 2015ANDRADE, Mário. O turista aprendiz. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo. Brasília: Ed. do Iphan, 2015. , p. 339).

Contudo, Lampião viveu até 1938, e sua narrativa levou o cangaço a transbordar desse esquema interpretativo para os códigos narrativos do cinema.

A dramatização “western” do cangaço

O semiárido trouxe sensação ao noticiário do jornal nos primeiros anos da República com a campanha militar contra o arraial baiano de Canudos. Após o término da guerra 1897, com a população massacrada e o arraial incendiado, o leitor dos jornais estava habituado a deparar-se com noticiário de episódios de violência social no Brasil rural. Tudo corrobora que o semiárido, em vez de se despedir dos jornais após a aniquilação de Canudos, permaneceu sendo veiculado entre as notícias. Dada a sensação de narrativa policial em torno de Canudos, o cangaço que aparecia no noticiário surgia como fenômeno de banditismo “do Norte”, retratado pelo sucesso de grupos armados volantes que assaltavam o semiárido com independência em relação às forças públicas, negociando o uso de suas armas com coronéis para serviços diversos ou cometendo violência por conta própria, como assaltos e tirania contra o povo. Através dos noticiários, a fama de justiceiros dos cangaceiros dos bandos de Antônio Silvino e de Jesuíno Brilhante passa a competir com a narrativa do assombro da população do semiárido, que vê esses bandos assoberbarem e ameaçarem de morte quem lá habita. Em coluna de O Paiz (número 9.285, Rio de Janeiro), de 8 de março de 1910, o cangaço é explicado a seu público como se suspeitasse que este estivesse confuso sobre o caráter do fenômeno:

O norte não quer o cangaceiro; mas tolera-o, admira-o mesmo. E é realmente admirável esse tipo do jagunço assolador, corredor incansável do sertão, do sertão adusto e hostil, depredador inclemente que se rebela contra a miséria de uma vida inutilmente pacífica e prefere a ela uma existência cruelmente ativa.

O cangaceiro que O Paiz descreve em 1910 é um tipo valente e mau, facilmente enredado como personagem-herói de novela. Na literatura, o cangaço mobilizou escritores, sendo amplamente divulgado nas colunas literárias dos jornais. Em 10 de maio de 1914, o Jornal de Recife (número 125) noticia o lançamento do livro Os cangaceiros, de Carlos D. Fernandes. O colunista Celso Mariz explica o que torna o livro interessante para os leitores, para quem se dirige:

Prefaciando o livro do autor amicíssimo e confessando a “deslumbrada admiração por tudo que nasce do seu gênio”, Smith faz uma página leve e criteriosa, apresentando Os Cangaceiros “como estudo sociológico e criminal, romance caracter”, vasado sob o mesmo plano geral d’A Renegada.

A narrativa dos jornais sobre o cangaço se mistura com a imagem que os cangaceiros faziam de si. Em 1926, Lampião era uma celebridade de jornais e sabia-se assim. Encarnava, como um personagem de folhetim, colunas de jornais do Brasil inteiro ávidas por novidades sobre os seus assaltos. O volume de notícias levava a sua pessoa e o seu bando a serem tidos por um caráter misterioso, ganhando com isso curiosidade e atenção imediata de um público variado. O volume de material e o interesse dos leitores dos jornais pelo título Lampião - nome ou novo feito estampado no noticiário, movido pelo seu caráter perverso, ou o seu assassinato em combate - eram tais que, através desse nome, até mesmo publicidade doméstica fora promovida, como a publicada no Jornal de Recife (número 278, do dia 30 de novembro de 1926): “LAMPIÃO tem dúvidas de ser preso, nunca duvidou e nem duvidará que a Casa das Fazendas Bonitas sempre foi, é e será a mais barateira do Recife. Primeiro de Março, 67”.

Nessa mesma edição do jornal, logo abaixo, era publicada a entrevista de Pedro Paulo Mineiro Dias, funcionário da Standart Oil Company que fora capturado e feito refém de Lampião. Segundo a entrevista, o grupo fora piedoso, alimentou-o bem e inclusive foram corteses com ele: “- Durante a sua permanência no seio do bando de ‘Lampião’, o sr. foi bem tratado?. -Perfeitamente: durante o tempo em que lá estive nada sofri tendo sido muito bem tratado”.

Lampião, portanto, era um bandido que não facilitava ao cronista policial caracterizá-lo como personagem puramente monstruoso, apesar das notícias de atentados hediondos contra a vida que eram imputadas a ele e seu bando. Na década de 1930, a politização do noticiário em torno de seu bando sugere ser a razão para que passassem a lhe atribuir nos jornais qualidades valorizadas socialmente, tais como a presença nele de um rudimento de cultura escolar, o amor do povo por ele e o suposto senso de justiça cavalheiresco, que proporcionava a ele e seus comparsas algum limite e rigor de conduta.

São inúmeros os destaques dados ao cangaço nos jornais brasileiros. Particularmente interessado no tema, Assis Chateaubriand dedicou nas mídias dos Diários Associados matérias sobre o cangaço manifestando-se sobre o assunto com os traços de seu estilo de escrita, afetado e nacionalista. Entre as décadas de 1920 e 1950, escritores representariam os bandos de sertanejos armados dentro de enredo de romance e contos, como fizeram José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, João Guimarães Rosa, José Américo, Ademar Vidal e Jorge Amado. Assim como o cangaço “povoava” a literatura brasileira, os jornais com grande frequência justapuseram o cangaceiro a personagem de westerns, o gênero de filmes de Hollywood que vinha conquistando popularidade em todo o mundo. A esse respeito, o jornal A Esquerda (número 973), em 13 de março de 1931, publicou coluna em que compara a violência do cangaço no semiárido àquela que surge em outros países. Para isso, o cangaço é tema inaugurado nos códigos narrativos do cinema:

No Saara e na Síria as conquistas da civilização francesa e italiana vão gradativamente modificando o caráter pitoresco do beduíno.

No México, desde a enérgica e inteligente administração de Plutarco Calles o banditismo vem sendo impiedosamente reprimido.

Os americanos sufocaram-no com sua arma favorita, o dólar, rasgando os desertos do Texas e do Arizona com estradas de ferro, abrindo poços e levantando açudes, convertendo em policiadas terras de agricultura o solo outrora queimado pelo sol e pelos disparos do Colt dos bandidos famosos, cujas façanhas incríveis a gente agora admira em forma romântica na tela dos cinemas.

O Brasil, não tendo fortuna para fazer no Nordeste o que foi feito no Arizona e no Texas, vai seguir o exemplo da Itália, na Calábria.

Mas não era apenas com os vaqueiros de Hollywood que os cangaceiros eram comparados. Assunto de sensação nos noticiários, a impunidade dos gangsters norte-americanos passou a ser comparada com a liberdade de que gozavam os cangaceiros. O jornal satírico O Homem do Povo (número 2), dirigido por Patrícia Galvão e Oswald de Andrade, no dia 28 de março de 1931 chama em título de pequena coluna o famoso traficante de bebidas estadunidense Al Capone de “O Lampeão de Chicago”, referindo-se a ambos como expressão da decadência do capitalismo.

Al Capone enche de lenda a moderna Chicago. Grande organizador e grande chefe, ele representa o lado sinistro das reivindicações românticas na decomposição a que atingiu o capitalismo. Sem força e sem cultura para se erguer mesmo a qualquer ideologia anarquista, ele representa apenas o roubo contra o roubo, o assalto contra o assalto, na civilização que agoniza na América milionária, sob o signo puritano de Cristo.

A comparação de Lampião com Al Capone saía como natural para os cronistas brasileiros da década de 1930. Orígenes Lessa, para o Correio de S. Paulo (número 6), em 22 de junho de 1932, comparou os dois bandidos:

Mesmo neste modesto S. Paulo, com a ingenuidade entusiasmada dos seus primeiros arranha-céus, as façanhas dos criminosos de grande vulto de Chicago e Nova York vêm fornecer constantemente a matéria de sensação que a nossa papalvice provinciana ainda não produz.

[...]

Mau leitor de jornais, porque não pode haver bom leitor numa terra em que os jornais não se pejam de fatigar o público com a eterna reprodução de clichês e frases-clichês de toda uma fauna monótona de militares metediços, eu fico a olhar com inveja para esses grandes criminosos que devem encher a vida americana de orgulho e de poesia - poesia de força e de brutalidade só compatível com um meio ultracivilizado.

Nós... que temos nós? Um pobre Lampião perdido nas caatingas nordestinas, um ou outro crime citadino que a imaginação dos repórteres policiais rodeia de uma adjetivação terrificante, de olhos postos numa incerta e caprichosa venda avulsa...

Na década de 1930, entraram na trama do cangaço os registros audiovisuais deles, que atraíam público familiarizado pela sua ampla presença nos noticiários, e que tinha motivos para se encantar com suas vestimentas exóticas que o cinema podia reproduzir. Tal operação, deve ser dito, só foi possível devido à disposição que cangaceiros do bando de Lampião passaram a mostrar na década de 1930 para serem capturados por fotógrafos e cinegrafistas. Na edição número 18 da revista O Cruzeiro (RJ) de 1937, uma nova matéria sobre os cangaceiros apresentou imagens fotográficas de Lampião e seu bando, provindas do fotógrafo-cinegrafista que servia de intermediário do grupo com jornalistas, Benjamin Abratias (sic). A revista, ao expor fotos do bando, causava grande impressão nos leitores. Nas fotos, Lampião surge à vontade, lendo, sorrindo e em repouso. O texto que dá legenda a sua imagem envolvida em situações domésticas busca surtir no leitor efeito de sensação de quebra de expectativa: “Manifesta-se o espírito doméstico do matador! Nada mais espantoso que o contraste do guerrilheiro feroz, cosendo placidamente uma camisa...”.

No ano seguinte, em 1938, no número 40 da revista O Cruzeiro (RJ), o jornalista Edmar Morel relata a captura e a execução de Lampião e os cangaceiros, que acompanhou de mórbidas fotografias de suas cabeças exibidas como troféus pelas forças policiais. O conteúdo da reportagem foi uma retrospectiva dos feitos de Lampião trazendo alguns juízos: “Levou a desgraça a centenas de lares sertanejos. Lares de infortunados sertanejos. O seu nome era um rastro de luto e miséria. Apavorava os próprios soldados que o perseguiam”. Encerrava-se nessa data o enredo romanesco do casal Lampião e Maria Bonita, que permitiam que suas imagens fossem produzidas e divulgadas, causando sensação no noticiário: “Lampião morreu desvairado de ódio e empunhando o mosquetão. Maria Bonita tombou com um sorriso nos lábios. Era mulher”.

A sensação que Lampião causou no jornalismo mostraria fôlego ainda na década seguinte, conforme sugere a entrevista concedida para o jornalista Joel Silveira da revista O Cruzeiro (Rio de Janeiro, n. 6, 1944) por alguns membros famosos do bando de Lampião que estavam cumprindo pena no presídio de Salvador. Fotografado com uniforme de presidiário, o mais velho dos cangaceiros presos, Ângelo Roque, o Labareda, diz que entrou para a quadrilha para se vingar e retomar sua honra. Antes de conhecer a quadrilha, havia tentado assassinar um soldado, a quem tinha por “estuprador de sua irmã”. Procurado pela polícia, viveu errático pelo semiárido até que encontrou com Corisco e Arvoredo, cangaceiros temidos, que lhe ensinaram que a única forma de se ver livre dos “macacos”, apelido dado pelos cangaceiros aos policiais, seria se juntando ao cangaço. Volta Seca, membro sobrevivente da quadrilha de Lampião, diz que que a vida de crimes não vale a pena, que não era traiçoeiro, pois nunca matava pelas costas, e que pensava em se entregar, mas que o medo do encarceramento o impedia. O discurso bem articulado dos cangaceiros a respeito das razões para o ingresso no cangaço sugere que haviam descoberto que poderiam usar as explicações intelectuais sobre o cangaço para se defenderem das acusações e suspeitas de crimes que caíam sobre os seus feitos do passado.

Passadas duas décadas após a execução de Lampião, a exibição das cabeças decapitadas e embalsamadas dele e de parte dos membros de seu bando no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues trazia como consequência manter a narrativa do cangaço aberta. Para uma comunidade cristã tão religiosa como a do semiárido nordestino, essa exposição em um museu evidenciava o trauma social de proibir aos cangaceiros o rito de sepultamento. Ao museu do Instituto Nina Rodrigues requisitavam familiares dos cangaceiros que os seus restos mortais fossem enterrados em rito fúnebre. Em entrevista para o número 34 da revista O Cruzeiro de 1959, Estácio de Lima, o diretor do Instituto Nina Rodrigues, revela ao jornalista João Martins que a ciência da criminologia não havia encontrado qualquer evidência de “criminosos natos” pela investigação das cabeças embalsamadas. Argumenta em direção a caracterizar o cangaço enquanto um problema social e manifesta pelo seu grau de convencimento sobre sua interpretação o desejo de dar por encerrada a discussão sobre o cangaço:

As cabeças de Lampião e de Maria Bonita foram ofertadas ao Museu, há vinte e um anos, pelo prof. Lajes Filho, catedrático da Cadeira de Medicina-Legal de Alagoas. Aqui também estão as cabeças de Corisco, Azulão, Zabelê, Canjica e Maria, todos cangaceiros. Compreendo perfeitamente os sentimentos da família de Lampião. Mas precisamos, principalmente no campo científico, nos guiar pela razão, em vez de nos deixar dominar pelo sentimento. As cabeças estão conservadas pelo método egípcio de mumificação. Elas são documentos inestimáveis de uma época da criminalidade brasileira. Daqui a cem anos, elas ainda demonstrarão que Lampião e seus companheiros não apresentavam nenhuma anomalia antropológica. Lampião não era um assassino nato, um lombrosiano. Ele era fruto de condições sociais, políticas e econômicas. Foi uma vítima do seu tempo e do seu ambiente. Essas cabeças são uma lição de todas as horas de que fenômenos, como o do cangaceirismo, não podem nem devem ser exterminados com armas, mas sim com a criação de fatores que não propiciem a sua eclosão.

Por mais que Estácio de Lima negasse haver caráter punitivo na coleção das cabeças, a publicidade para o museu do Instituto Nina Rodrigues que os restos embalsamados de cangaceiros ofereciam tornava sua posição suspeita por interesse institucional. O ruído que gerava a disputa judicial pelo sepultamento dos restos mortais dos cangaceiros era indiferente para as justificativas do diretor do museu e sugeria haver sido instalado sobre a coleção um ritual punitivo. Em 1969, portanto mais de trinta anos após sua execução, as cabeças de Lampião e de seu bando foram sepultadas de forma discreta, fato que passou despercebido pelos jornais, supostamente desviados da cobertura dessa ocorrência visto ser esse o ano em que a sociedade brasileira fora impactada pela supressão por decreto presidencial, o AI-5, das garantias constitucionais. Com o sepultamento, rompia-se um dos laços que sustentavam no mundo real muitas ficções em torno de Lampião, que, todavia, permaneceria sendo objeto de curiosidade pública e matéria para jornalistas, capazes de criar sensação a partir dos sobreviventes do bando de Lampião. Nessa circunstância, Ângelo Roque, 24 anos após dar a entrevista e se deixar fotografar com uniforme do presídio de Salvador, será recebido pelo jornalista Jorge Audi, que o entrevista para a revista O Cruzeiro (número 42) em outubro de 1968. O jornalista recebe o ex-cangaceiro em circunstância capaz de criar sensação ao leitor: ele está desembarcando no aeroporto de Salvador e, em foto que o retrata nesse dia, ele está idoso e bem alinhado em paletó e gravata. Após se cumprimentarem, o jornalista entrevistador relata ao “Labareda” que iriam dali para a casa de outro cangaceiro famoso de Lampião, o Volta Seca, com quem iriam estabelecer uma prosa de idosos sobre as memórias do cangaço.

  • 2
    O adjetivo “sertanejo” deriva do termo “sertão”, que denomina as áreas pouco povoadas e/ou pouco cultivadas que existem no interior do Brasil. “Sertão” vem de longa data sendo empregado com variado ecletismo. Embora o seu uso não seja temerário nos estudos brasileiros, sendo inclusive um termo que agrada pela síntese que oferece para os agentes referenciados, evitaremos nesta pesquisa o uso dos termos “sertão” e “sertanejo” para impedir misturar o vocabulário do pesquisador com o vocabulário dos documentos consultados da primeira metade do século XX. Em muitas situações em que normalmente se veria a palavra “sertão” ser empregada, neste artigo se verá o termo “semiárido” tomar o seu lugar, visto que o sertão do cangaço é exclusivamente a região do semiárido nordestino.
  • 3
    Este artigo pouco se apoia na ampla bibliografia sobre o cangaço. Para um estudo social e histórico sobre o cangaço fazemos menção à biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) por ela conter um vasto repertório de títulos sobre o assunto.
  • 4
    Esta pesquisa consultou jornais exclusivamente pela Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital). Para facilitar a redação e a leitura, adequamos parcialmente os textos das fontes para as normas em vigor da língua portuguesa. Todas as referências dos jornais consultados estão no corpo do texto.
  • 5
    Investigando o acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, o conteúdo da pesquisa foi selecionado a partir das palavras-chaves “cangaço”, “cangaceiros” e “Lampião”, “Coronel Pereira” e “João Pessoa”. Dessa forma, localizamos várias centenas de registros de conteúdo de periódicos jornalísticos dedicados a noticiar a violência social no semiárido da Região Nordeste.
  • 6
    O capitão Carlos de Saldanha da Gama Chevelier havia apoiado o golpe de outubro de 1930. Fora preso em 1925 acusado de tentativa de levante contra o presidente Arthur Bernardes. Anistiado por Washington Luís, regressa do presídio de Trindade ao Rio de Janeiro, onde será reincorporado às Forças Armadas, sendo promovido em junho de 1930 a capitão-aviador.
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    Deboche sobre a insistência de escritores no assunto “Lampião” que fez Mário de Andrade em duas cartas (n. 76, de 22/1/1931, e n. 93, de 16/2/1932) destinadas ao folclorista Luís da Câmara Cascudo (MORAES, 2010MORAES, Marcos Antonio de (Org.). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. São Paulo: Global, 2010.).
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    Foram muitos os títulos de narrativas que misturaram memória e fantasia romanceada de diálogos do bando de Lampião. A propósito delas, esses autores referem a crítica.

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, Mário. O turista aprendiz Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo. Brasília: Ed. do Iphan, 2015.
  • BRAGA, Rubem. O conde e o passarinho 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964.
  • MORAES, Marcos Antonio de (Org.). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. São Paulo: Global, 2010.
  • BAMBRILLA, Gustavo. A percepção dos vadios em São Paulo. In: Vadios & vadiagem na São Paulo restaurada: a utilização dos vadios na administração do governador e capitão-general Morgado de Mateus (1765-1775). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História Econômica, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2017.
  • CUNHA, Euclides da. Os sertões Rio de Janeiro: Laemmert, 1905.
  • HEMEROTECA Digital. Acervo de periódicos da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital>. Acesso em: fev. 2019.
    » http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital
  • PERICÁS, Luiz Bernardo. Prestes, Lampião, el movimento obrero y los comunistas. In: _____. Los cangaceiros: ensayo de interpretación histórica. Playa: La Habana Editorial de Ciencias Sociales, 2014.
  • PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo São Paulo: Brasiliense, 1942.
  • _____. Formação do Brasil contemporâneo São Paulo: Brasiliense, 1965.
  • RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas São Paulo: Editora Martins, 1967.
  • SÁ, Ariane Norma de Menezes. Escravos, libertos e livres: a Paraíba na segunda metade do século XIX. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2018
  • Aceito
    10 Maio 2019
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