Objetivo:
avaliar a qualidade de vida (QV) de adolescentes com paralisia cerebral (PC) pelo autorrelato e pelo relato do cuidador, e analisar a concordância entre estes relatos.
Método: estudo transversal conduzido com 101 adolescentes com PC e 101 cuidadores. Ambos responderam o Pediatric Quality of Life Inventory (PedsQL), módulo 4.0 - Genérico (PedsQL 4.0) e módulo 3.0 - PC (PedsQL 3.0). A concordância entre os relatos foi analisada pelo teste de Mann-Whitney e pelo coeficiente de correlação intra classe (ICC) (p<0.05).
Resultados: no autorrelato os menores escores foram em saúde física, atividades escolares e fadiga. No relato dos cuidadores as menores pontuações foram em saúde física e atividades cotidianas. As percepções entre adolescentes e cuidadores divergiram em saúde física, movimento e equilíbrio, atividades cotidianas e escolares, com menor escore dos cuidadores em todos eles. A concordância entre o autorrelato e o relato dos cuidadores foi pobre (ICC<0.44), e em ambos instrumentos o relato dos cuidadores foi menos otimista.
Conclusão: a saúde física é o domínio mais prejudicado da QV de adolescentes com PC, tanto no autorrelato quanto no relato dos cuidadores. Porém há pobre concordância entre estes relatos, ressaltando que o uso do relato dos cuidadores deve ser cauteloso.
Descritores: Qualidade de Vida; Paralisia Cerebral; Adolescente; Adulto Jovem; Criança; Cuidadores
Objective:
to assess the quality of life (QOL) of adolescents with cerebral palsy (CP) by self-report and by the caregiver’s report, and to analyze the agreement between these reports.
Method: cross-sectional study conducted with 101 adolescents with CP and 101 caregivers. Both answered the Pediatric Quality of Life Inventory (PedsQL), module 4.0 - Generic (PedsQL 4.0) and module 3.0 - PC (PedsQL 3.0). Agreement between reports was analyzed using the Mann-Whitney test and the intra-class correlation coefficient (ICC) (p<0.05).
Results: the lowest scores were in physical health, school activities and fatigue in the self-report. The lowest scores were in physical health and daily activities, in the caregivers’ report. Perceptions among adolescents and caregivers differed in physical health, movement and equilibrium, daily and school activities, with a lower score for caregivers in all of them. The agreement between the self-report and the caregivers’ report was poor (ICC<0.44) and in both instruments, the caregivers’ report was less optimistic.
Conclusion: physical health is the most impaired domain of the QOL of adolescents with CP, both in the self-report and in the caregivers’ report. However, there is poor agreement between these reports, emphasizing that the use of the caregivers’ report should be cautious.
Descriptors: Quality of Life; Cerebral Palsy; Adolescent; Young Adult; Child; Caregivers
Objetivo:
evaluar la calidad de vida (CV) de adolescentes con parálisis cerebral (PC) a partir del autorrelato y del relato del cuidador, y analizar la concordancia entre esos relatos.
Método: estudio transversal, llevado a cabo con 101 adolescentes con PC y 101 cuidadores. Ambos contestaron el Pediatric Quality of Life Inventory (PedsQL), módulo 4.0 - Genérico (PedsQL 4.0) e módulo 3.0 - PC (PedsQL 3.0). La concordancia entre los relatos se analizó por el test de Mann-Whitney e por el coeficiente de correlación intra clase (ICC) (p<0.05).
Resultados: en el autorrelato, los puntajes más bajos se dieron en salud física, actividades escolares y fatiga. En el relato de los cuidadores, los puntajes más bajos se dieron en salud física y actividades cotidianas. Las percepciones de los adolescentes y los cuidadores fueron divergentes en salud física, movimiento y equilibrio, actividades cotidianas y escolares, con un puntaje más bajo por parte de los cuidadores en todos esos rubros. La concordancia entre el autorrelato y el relato de los cuidadores fue pobre (ICC<0.44), y en ambos instrumentos el relato de los cuidadores fue menos optimista.
Conclusión: la salud física es el dominio más perjudicado de la CV de los adolescentes con PC, tanto en el autorrelato como en el relato de los cuidadores. Sin embargo, la concordancia entre los dos relatos es deficiente, razón por la cual, el relato de los cuidadores debe realizarse con cautela.
Descriptores: Calidad de Vida; Parálisis Cerebral; Adolescente; Adulto Joven; Niño; Cuidadores
Introdução
A paralisia cerebral é a principal causa de deficiência física na infância, com prevalência de 2 a 2,5 casos a cada 1000 nascidos vivos em países(1). É uma condição crônica decorrente de lesão encefálica nos primeiros anos de vida que provoca comprometimentos e limitações persistentes por toda a vida(2). Alterações do tônus e do movimento são as principais características, prejudicando a funcionalidade, dificultando a independência e interferindo na qualidade de vida da pessoa acometida(3-4). O grau de comprometimento é variável, com frequente associação de distúrbio motor a comorbidades, como deformidades osteomusculares, problemas sensoriais, cognitivos, de comportamento e crises convulsivas(2).
Na transição para a adolescência, pessoas com paralisia cerebral passam a sofrer com o aumento do peso e do tamanho do corpo, evoluindo com perdas funcionais. As limitações tornam-se mais evidentes em uma fase da vida que já impõe inúmeros desafios. Os transtornos de personalidade e a busca por autonomia e independência, inerentes à adolescência, defrontam-se com a dependência de seus cuidadores para realizar muitas atividades(3,5-7).
Estudos prévios evidenciam a qualidade de vida pobre desta população quando comparado a de adolescentes saudáveis(6,8-9), ressaltando a necessidade de pesquisas sobre todos os aspectos da qualidade de vida de adolescentes com paralisia cerebral, especialmente em países de baixa e média renda(9-11). Além disso, é notória a limitação dos centros especializados em reabilitação na assistência ao adolescente com paralisia cerebral. A grande maioria possui programas direcionados a criança e ao adulto com deficiência, negligenciando o suporte ao adolescente(7,11-12).
O mesmo acontece no campo das pesquisas. A maioria dos trabalhos que avaliam qualidade de vida na paralisia cerebral inclui crianças e adolescentes na mesma amostra(9,13-15), usam apenas um tipo de instrumento (genérico ou específico)(13-14,16), dão preferência pelo relato dos cuidadores ao invés do autorrelato e sugerem discrepância entre o autorrelato e o relato dos cuidadores(6,8,13,15,17). Não há estudos realizados apenas com adolescentes, que avaliam a qualidade de vida pelo autorrelato e usam instrumentos genérico e específico simultaneamente. Portanto é imprescindível ouvir os adolescentes com paralisia cerebral, visando compreender suas carências e favorecer uma assistência focada no incremento da qualidade de vida desta população.
Os resultados deste estudo evidenciarão as necessidades psicossociais e de saúde de adolescentes com paralisia cerebral sob a sua percepção e a de seus cuidadores, facilitando o cuidado direcionado a esta população. Assim o presente estudo tem como objetivo avaliar a qualidade de vida de adolescentes com paralisia cerebral a partir do autorrelato e do relato do cuidador, bem como analisar a concordância entre eles.
Método
Estudo transversal, realizado entre março a agosto de 2017, em todas as instituições públicas e/ou filantrópicas de ensino/ou reabilitação do município de Goiânia, Brasil. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição proponente da pesquisa, CAAE nº 64557517.0.0000.0037, parecer nº 1.940.559.
A busca pela amostra deu-se em todas as nove instituições de ensino e/ou reabilitação de caráter público e/ou filantrópico da cidade de Goiânia. Realizou-se uma triagem nestes locais para identificar adolescentes entre 10 a 19 anos com diagnóstico de paralisia cerebral, obtendo uma população de 236 indivíduos distribuídos em seis instituições coparticipantes, das nove consultadas. Destes foram excluídos adolescentes que apresentavam síndromes genéticas associadas à paralisia cerebral e, todos os adolescentes restantes foram submetidos a uma “pergunta teste” padronizada para avaliar a capacidade de compreensão e comunicação. Esta pergunta correspondeu ao primeiro item do instrumento PedsQl 4.0 Genérico (É difícil calçar os seus sapatos?). Os adolescentes que não a compreendiam ou não a respondiam não participaram do estudo. Assim, após a aplicação dos critérios de exclusão a amostra foi de 101 adolescentes com paralisia cerebral e 101 cuidadores. Considerou-se cuidador aquele que morava com o adolescente, o acompanhava nas atividades de ensino e/ou reabilitação, sendo o principal responsável pela sua assistência.
Neste estudo optou-se por estudar apenas os adolescentes, dadas as peculiaridades e individualidades da faixa etária da adolescência que requerem uma análise individualizada, bem como a carência de estudos voltados, exclusivamente, para esta população.
Após a definição da amostra os cuidadores foram convidados a participar do estudo e a autorizar a participação dos adolescentes pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os adolescentes também foram informados sobre a pesquisa e convidados a fazer parte pelo Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE).
Os dados foram coletados nas próprias instituições participantes, por meio de entrevistas individuais, em local reservado, de duração aproximada de 20 minutos. Todos os instrumentos de pesquisa tiveram a aplicação conduzida por cinco pesquisadores previamente treinados e calibrados. Inicialmente os cuidadores responderam a um formulário sociodemográfico, relatando seus dados (grau de parentesco com adolescente, idade, sexo, atividades de trabalho e nível de escolaridade) e dados dos adolescentes (idade, sexo, comorbidades e natureza escolar). Em seguida, os cuidadores e os adolescentes responderam, em salas separadas, o instrumento de avaliação da qualidade de vida dos adolescentes, Pediatric Quality of Life Inventory (PedsQL), módulo 4.0 - Genérico (PedsQL 4.0) e módulo 3.0 - Paralisia cerebral (PedsQL 3.0). Ao final da aplicação do PedsQL aos adolescentes os pesquisadores, a partir da sua expertise clínica, avaliaram o nível de comprometimento motor aplicando o Gross Motor Function Classification System (GMFCS).
O PesdQL 4.0 avalia aspectos mais globais da qualidade de vida e é composto por 23 itens divididos em quatro domínios: função física, função emocional, função social e função escolar. Estes domínios podem ser agrupados em três escores: saúde física, saúde psicossocial (função escolar, função social e função emocional) e escore total. O PedsQL 3.0 possui 35 questões distribuídas em sete domínios: atividades cotidianas, atividades escolares, movimento e equilíbrio, dor, fadiga, alimentação e fala. As perguntas dos dois questionários se referem à quantidade de vezes que cada item foi um problema durante o último mês e as respostas são dadas em uma escala do tipo Likert (0=nunca, 1=quase nunca, 2=algumas vezes, 3=muitas vezes, 4=quase sempre). A pontuação dos domínios varia de 0 a 100, no qual zero é a pior pontuação(18). Todos os instrumentos utilizados foram validados para a língua portuguesa(19-20).
O GMFCS classifica crianças e adolescentes com paralisia cerebral em cinco níveis de habilidades motoras. No nível I, andam sem limitações e apresentam apenas algumas dificuldades no equilíbrio e coordenação de atividades mais avançadas (correr e pular). No nível II, necessitam de dispositivo de mobilidade na comunidade e para caminhar longas distâncias. No nível III, usam dispositivo de locomoção no ambiente interno e na comunidade fazem uso de mobilidade sobre rodas. No nível IV, a autolocomoção é limitada, podendo ser transportados em cadeira de rodas manual ou usarem mobilidade motorizada. No nível V as limitações são graves, o controle de cabeça e de tronco é precário e a autolocomoção é possível apenas com cadeira de rodas motorizada(2).
Os dados, digitados por dois pesquisadores, foram processados e analisados pelo programa de Statistical Package for Social Science (SPSS), versão 23.0 para Windows. A amostra foi descrita com frequência relativa e absoluta, média, desvio padrão (DP), mediana e intervalo de confiança (IC 95%). Dados das variáveis quantitativas foram verificados quanto à normalidade por meio do teste de Kolmogorov-Smirnov e aqueles que não tinham distribuição normal foram descritos por mediana visando uma descrição mais fidedigna da amostra. A concordância entre o relato dos adolescentes e dos cuidadores foi analisada pelo teste de Mann-Whitney e pelo Coeficiente de Correlação Intraclasse (ICC) aleatório de uma via (p < 0,05), considerando valor de ICC < 0,50 concordância pobre, 0,50 a 0,75 moderada, 0,75 a 0,90 boa e ICC > 0,90 excelente(21).
Resultados
A amostra do estudo foi composta por 101 adolescentes com paralisia cerebral e 101 cuidadores. A maioria dos adolescentes era do sexo masculino com média de idade de 14,8 anos (± 2,9). Mais da metade não apresentava comorbidades, a maior parte foi classificada nos níveis I, II e III do GMFCS e 91,1% frequentavam escola (Tabela 1). Em relação aos cuidadores, 80,2% eram mães dos adolescentes, com média de idade de 42 anos (± 7.2). A maioria não trabalhava (67,9%) e tinha escolaridade até o ensino médio (90,1%).
Frequência absoluta (n) e relativa (%) das características dos adolescentes com paralisia cerebral. Goiânia, GO, Brasil, 2017
No PedsQL 4.0 o escore de saúde física foi o mais prejudicado, tanto no autorrelato dos adolescentes quanto no dos cuidadores. No PedsQL 3.0, na percepção do adolescente, os domínios mais prejudicados foram atividades escolares e fadiga; diferente da percepção do cuidador, na qual o domínio com menor escore foi atividades cotidianas. Em todos os domínios com diferença de média, tanto no PedsQL 4.0 quanto no 3.0, os cuidadores tiveram percepção subestimada da qualidade de vida dos adolescentes, com menores escores (Tabela 2).
Descrição e comparação entre o autorrelato de qualidade de vida de adolescentes com paralisia cerebral e o relato dos cuidadores. Goiânia, GO, Brasil, 2017
Houve pobre concordância entre o autorrelato e o relato dos cuidadores no escore de saúde psicossocial do PedsQL 4.0 e, exceto em movimento e equilíbrio, em todos os outros domínios do PedsQL 3.0. Estes dados sugerem que os cuidadores e os adolescentes com paralisia cerebral têm percepções distintas de qualidade de vida (Tabela 3).
Concordância entre o autorrelato de qualidade de vida de adolescentes com paralisia cerebral e o relato dos cuidadores no PedsQL* 4.0 e PedsQL* * PedsQL = Pediatric Quality of Life Inventory; 3.0. Goiânia, GO, Brasil, 2017
Discussão
No presente estudo, avaliamos a qualidade de vida de adolescentes com paralisa cerebral a partir do autorrelato e do relato dos cuidadores, bem como analisamos a concordância entre estes relatos. No autorrelato dos adolescentes, os menores escores foram em atividades escolares e fadiga. Já no relato dos cuidadores, em atividades cotidianas. Tanto os cuidadores quanto os adolescentes pontuaram menos no escore de saúde física. A concordância entre o autorrelato dos adolescentes e o relato dos cuidadores foi pobre e houve uma tendência de os cuidadores subestimarem a qualidade de vida dos adolescentes.
Coadunando com trabalhos prévios(8,10,15), neste estudo a saúde física foi a mais prejudicada no PedsQL 4.0, tanto no relato dos adolescentes quanto no dos cuidadores. A adolescência é um período de amadurecimento físico e psicológico(3). Aumento do tamanho e do peso corporal, bem como alterações osteomusculares são inerentes a esta fase. Consequentemente, indivíduos com paralisia cerebral, que já possuem dificuldade de movimento e locomoção, sofrem mais ainda com todas estas alterações ao passar pela adolescência(22). Atividades antes realizadas passam a ser feitas com dificuldade ou deixam de ser executadas. Desta forma, muitos evoluem com fraqueza muscular, deformidades osteomusculares, declínio da flexibilidade e da funcionalidade. Portanto é natural que a função física destes jovens diminua com o avançar da idade(3,22). Ademais, a adolescência é uma fase em que os “padrões de normalidade” são mais questionados e é comum que haja uma preocupação com a imagem corporal(23). No entanto adolescentes com paralisia cerebral muitas vezes usam dispositivos auxiliares de locomoção ou órteses que vão contra esses padrões sociais.
No PedsQL 3.0, os domínios de atividades escolares e fadiga tiveram o pior desempenho na visão dos adolescentes. No ambiente escolar, principalmente de natureza regular, os adolescentes veem-se sem a presença do cuidador para auxiliá-los, e grande parte da amostra deste estudo frequentava escola dessa natureza. Assim há necessidade de enfrentar os obstáculos, aumentando os níveis de fadiga física e mental(3). Também, encarar as dificuldades contribui para o aumento da capacidade de percepção das suas condições e limitações em uma fase em que há declínio da função e surgimento dos conflitos de auto aceitação(4). Todos estes fatores associam-se ao incremento da fadiga física e mental relatada pelos adolescentes atrelada a percepção prejudicada das atividades escolares. No mais, o domínio de atividades escolares no instrumento PedsQL 3.0 avalia a dificuldade em motricidade fina(18), difícil de ser realizada por pessoas acometidas pela paralisia cerebral, ainda mais por adolescentes mais velhos(22).
Por outro lado, sob a avaliação do cuidador, o pior desempenho deu-se nas atividades cotidianas. No PedsQL 3.0 o domínio de atividades cotidianas avalia a dificuldade com vestuário e higiene(18). Destaca-se que estas tarefas são comumente realizadas no ambiente domiciliar. Nele, os cuidadores fazem a maior parte das atividades pelos adolescentes, demandando tempo e gerando desgaste. Assim é compreensível que eles tenham uma visão prejudicada deste domínio, pois, pelo fato de não deixarem os adolescentes executarem as atividades, têm a ideia de que é muito difícil para eles(24). Sob outra perspectiva, os adolescentes podem não achar estas atividades complicadas, já que normalmente são feitas pelos cuidadores, não exigindo esforço e enfrentamento(22). Tal é que, no autorrelato, o domínio de atividades cotidianas teve o segundo maior escore. Dessa forma, nota-se que os cuidadores têm facilidade em perceber o que é inerente aos seus cuidados, ao passo que têm dificuldade em visualizar as dificuldades dos adolescentes com o meio externo, no qual eles não estão presentes.
Em conformidade com a literatura recente(8,11,13,17), observou-se concordância pobre entre o relato dos adolescentes e dos cuidadores (ICC<0.44) e diferença de média nos escores de saúde física e total (PedsQL 4.0), e nos domínios de atividades cotidianas, atividades escolares e movimento e equilíbrio (PedsQL 3.0). Além disso, em todos os escores e domínios com diferença de média entre os relatos, os cuidadores tiveram uma percepção prejudicada da qualidade de vida dos adolescentes, com menores escores.
Estudos anteriores(6,13,15) mostram que pais de adolescentes saudáveis tendem a superestimar a qualidade de vida de seus filhos, e os pais de adolescentes com condições crônicas de saúde tendem a subestimá-la. No geral, os cuidadores de pessoas com paralisia cerebral são muito mais preocupados e melancólicos em relação às limitações dos adolescentes do que eles mesmos(22).
Os pais ancoram a percepção da qualidade de vida dos filhos em suas próprias experiências e expectativas; e associam a falta de prazer na vida dos filhos com as limitações e com a precariedade de oportunidades para escolher suas preferências(12). Também relatam que a sexualidade e o relacionamento com o sexo oposto são importantes para a qualidade de vida deles(3). No mais, preocupações com a escassez de recursos financeiros e de serviços de saúde disponíveis para acompanhamento multiprofissional são mencionados nos relatos dos cuidadores(25).
Sob outra perspectiva, os adolescentes não citam sexualidade, desenvolvimento de relações, acesso aos serviços e recursos financeiros como aspectos determinantes para uma qualidade de vida melhor(3). Para eles, fatores sociais como apoio familiar, conviver com os pares sem deficiência, frequentar a escola, sair e conversar com amigos são determinantes na forma de perceber a qualidade de vida. Além disto, o desenvolvimento de estratégias de autodefesa para superar as barreiras diárias, capacidade de enfrentamento das dificuldades e percepção e aceitação do eu, das suas reais condições também são pontos importantes(4).
O relato de qualidade de vida dos adolescentes com paralisia cerebral também é influenciado por fatores específicos(3). A paralisia cerebral é uma condição com início na primeira infância(2) e que, com o avançar da idade, os indivíduos acometidos já se adaptaram às suas limitações e desenvolveram estratégias para driblá-las. Assim, grande parte dos adolescentes afirma que a paralisia cerebral é algo que eles conseguem superar(4). Diferentemente dos pais, os adolescentes lidam melhor com suas limitações. Além disso, as experiências vivenciadas são diferentes, bem como as crenças sobre a deficiência e sobre o seu bem-estar(15,17).
Diante de tais informações nota-se que adolescentes e cuidadores divergem em preocupações e expectativas em relação ao que é mais importante para uma boa qualidade de vida. Cabe aqui destacar a realidade dos centros de reabilitação, onde as terapias e atividades são centradas em crianças e adolescentes mais novos, até 12 anos, negligenciando adolescentes mais velhos. A partir desta idade eles deixam de ser prioridade, recebem alta e não tem acesso a quase nenhum tipo de serviço. Este pode ter sido um fator determinante para percepção subestimada dos pais. Além disso, é comum que, com o passar do tempo, os pais de adolescentes não tenham mais esperança de evolução prognóstica e isto, atrelado à falta de oportunidade de inclusão e de expectativa quanto a um futuro, fazem com que tenham uma pior percepção da qualidade de vida dos filhos(12). Assim, provavelmente, o resultado de pobre concordância entre os relatos é mais uma consequência das experiências, expectativas e preocupações de cada indivíduo do que uma questão de quem está certo ou errado(9,15).
Além da interferência dos aspectos individuais nos resultados deste estudo, é importante ressaltar que a forma de raciocínio difere de pessoa para pessoa. Na resposta do instrumento de qualidade de vida, primeiramente os adolescentes respondem e depois justificam. Já os pais fazem o contrário, o que pode trazer mais influência de experiências e crenças pessoais ao relato. No mais, os adolescentes tendem a basear a resposta em único exemplo, enquanto os pais respondem com base no que eles acham que seu filho diria, e não a sua real percepção(25).
Este estudo teve como limitações o desenho epidemiológico de corte transversal, fato que impede a identificação de fatores de risco para uma qualidade de vida ruim. Além disto, a restrição da amostra a adolescentes sem comprometimento grave de comunicação e vinculados a instituição de ensino ou reabilitação exigem cautela na interpretação dos resultados, devendo ser observado este mesmo perfil amostral. Dessa forma é importante a reprodutibilidade de estudos longitudinais que incluam também adolescentes não assistidos por instituições, possibilitando ampliar a generalização dos resultados.
Por outro lado, a força deste trabalho dá-se pelo uso de métodos sugeridos pela literatura recente(10-11). Abrangeu todas as instituições do município, incluiu apenas adolescentes na amostra, utilizou uma abordagem instrumental integrada; com instrumentos de qualidade de vida genéricos e específicos à paralisia cerebral; e envolveu a percepção do adolescente e do cuidador. Os resultados encontrados destacam as necessidades de adolescentes com paralisia sob a sua percepção e sob a percepção de seu cuidador, sugerindo que é preciso atentar-se a perspectiva dos próprios adolescentes quanto as suas reais necessidades. Assim, estes resultados contribuirão para ampliar o entendimento das carências dos adolescentes com paralisia cerebral e facilitar o direcionamento das políticas públicas assistenciais e de saúde ao período da adolescência, possibilitando a melhora da qualidade de vida desta população.
Conclusão
O presente estudo avaliou a qualidade de vida de adolescentes com paralisia cerebral sob duas perspectivas. Na visão dos adolescentes as dimensões mais prejudicadas são saúde física, atividades escolares e fadiga, diferentemente da visão dos cuidadores, na qual as dimensões mais comprometidas são saúde física e atividades cotidianas. Houve pobre concordância entre o autorrelato dos adolescentes e o relato dos cuidadores, de forma que os cuidadores tenderam a uma visão pessimista da qualidade de vida dos adolescentes. Apesar disso, ambos relatos ressaltam que a saúde física dos adolescentes com paralisa cerebral carece de uma atenção direcionada. Assim recomenda-se a criação de programas específicos para esta faixa etária, proporcionando inclusão em atividades de reabilitação e esportivas e facilitando a prática de exercícios físicos para controle do peso corporal, manutenção da força e da flexibilidade muscular, melhorando a qualidade de vida desta população.
Por fim, a percepção mais otimista dos adolescentes sugere que o relato dos cuidadores é menos confiável quando avaliado isoladamente, sem o relato do adolescente. Como um complemento, o relato do cuidador é válido, pois visões distintas, não percebidas pelos adolescentes, podem agregar aos resultados, não sendo recomendado o seu uso isolado para adolescentes capazes de autorrelatar sua qualidade de vida. No entanto, em casos de comprometimento da comunicação, quando a única possibilidade é o relato do cuidador, é importante saber e entender onde e como os relatos podem divergir. No mais, sempre que possível, o melhor é avaliar a qualidade de vida dos adolescentes com paralisia cerebral a partir do seu próprio relato.
Agradecimentos
Agradecemos a todas as famílias e, em especial, aos adolescentes que aceitaram participar do nosso trabalho.
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Editado por
-
Editora Associada: Regina Aparecida Garcia De Lima
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jul 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
16 Ago 2019 -
Aceito
14 Mar 2020