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CONECTANDO MERCADO E RELAÇÕES PESSOAIS: UM ESTUDO DO POLO DE CONFECÇÕES DO AGRESTE DE PERNAMBUCO

CONNECTING MARKET AND PERSONAL RELATIONSHIPS: A STUDY OF THE POPULAR CLOTHING MARKET OF PERNAMBUCO

Resumo

Inspirada pelas contribuições da Nova Sociologia Econômica, a discussão trazida aqui considera os mercados como processos sociais complexos, integrando elementos econômicos, estruturas relacionais, institucionais e culturais. Focando no Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco, este artigo tem como objetivo explorar os vínculos entre relações pessoais e economia presentes nas transações produtivas e comerciais na região. Os resultados destacam que o sistema de produção e comercialização de roupas está intrinsecamente ligado a valores sociais e culturais, como a importância do trabalho familiar e a presença de laços de reciprocidade, confiança e solidariedade. A pesquisa de campo revela que a dinâmica econômica do polo está entrelaçada com outras esferas da vida social, pois pensar o trabalho no polo significa pensar em família; e pensar comércio implica pensar em redes de relações pessoais e de confiança.

Palavras-chave:
Nova Sociologia Econômica (NSE); Mercados; Relações pessoais; Vida econômica; Polo de confecções do agreste de Pernambuco

Abstract

Inspired by the contributions of New Economic Sociology, the discussion presented here considers markets as complex social processes, integrating economic elements, relational, institutional, and cultural structures. Focusing on the Agreste of Pernambuco Clothing Cluster, this article aims to explore the links between personal relationships and the economy present in productive and commercial transactions in the region. The findings highlight that the system of clothing production and marketing is inherently linked to social and cultural values, such as the importance of family labor and the presence of reciprocal, trusting, and solidarity bonds. Field research reveals that the economic dynamics of the cluster are intertwined with other spheres of social life, since thinking about work in the cluster means thinking about family; and thinking about trade implies considering networks of personal relationships and trust.

Keywords:
New Economic Sociology (NES); Markets; Personal relationships; Economic life; Clothing market of Pernambuco

CONECTANDO MERCADO E INTIMIDADE NO CAMPO DA NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA

Este artigo oferece uma discussão do mercado e da atividade econômica sob o ponto de vista da Nova Sociologia Econômica, tomando como campo empírico o Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco. O principal objetivo aqui é explorar os vínculos entre cultura, relações pessoais e economia presentes nas transações produtivas e comerciais na região. Deste modo, em vez de identificar o polo mais sob a égide de marcos regulatórios e formais estabelecidos pelo Estado, neste artigo, pretende-se fugir da visão de que os mercados informais representam apenas pobreza e clandestinidade e de que as relações econômicas são o oposto de relações pessoais. Assim como sugere Hart (1973Hart, Keith. (1973). Informal income opportunities and urban employment in Ghana. Journal of Modern African Studies, 11/1, p. 61-89.), acredita-se que é interessante obter uma visão desses espaços baseada na sua própria observação empírica, nas experiências vividas e nos discursos dos próprios atores que estão ali vivendo e negociando.

A pesquisa fruto deste artigo corresponde aos resultados encontrados na minha tese de doutorado (Milanês, 2020Milanês, Renata Bezerra. (2020). “Todo mundo aqui quer ser patrão”: pernambucanizando o empreendedorismo no Polo de Confecções de Roupas do Agreste. Tese de Doutorado. PPGCS/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.), na qual estudei a trajetória dos empreendedores têxteis do Polo de Confecções do Agreste Pernambucano, tendo como objetivo refletir sobre as diferentes formas de inserção no mundo das confecções de roupas, e compreender como as pessoas desenvolvem o aprendizado e as habilidades técnicas e econômicas para se manterem no mercado do polo.

O caminho metodológico percorrido na tese (Milanês, 2020Milanês, Renata Bezerra. (2020). “Todo mundo aqui quer ser patrão”: pernambucanizando o empreendedorismo no Polo de Confecções de Roupas do Agreste. Tese de Doutorado. PPGCS/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.) incluiu pesquisa bibliográfica sobre feiras, polos de moda, relações de trabalho e mercados globais; revisão da literatura sobre empreendedorismo com ênfase em abordagens alternativas da Nova Sociologia Econômica e teorias críticas pós-coloniais; pesquisa de campo realizada nas cidades de Santa Cruz do Capibaribe e Toritama, entre os anos de 2017 e 2019; 16 entrevistas semiestruturadas e observações diretas em fábricas, feiras e residências de empreendedores; uso de dados primários, incluindo entrevistas abertas e conversas informais; e levantamento de dados secundários através de revisão bibliográfica de várias fontes sobre o polo.

MARCO TEÓRICO

O debate sobre os desafios nas discussões sobre amor, afeto e dinheiro tem se destacado nas pesquisas em ciências sociais. O interesse em estabelecer um diálogo entre o mercado e as emoções, muitas vezes, encontra raízes na dicotomia estabelecida pelos economistas entre o mundo do mercado e o não mercado, entre o racional e o pessoal, o eficiente e o sentimental, o masculino e o feminino. Essa tendência remonta aos estudos clássicos e continua a ser explorada nos estudos contemporâneos, como bem apontam as autoras Jardim e Mazon (2022Jardim, Maria Chaves & Mazon, Marcia da Silva. (2022). Apresentação: Sociologia dos mercados e emoção. Política e Sociedade, 21/51, p. 7-20.).

Illouz (2011Illouz, Eva. (2011). O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar.) pontua que os clássicos da sociologia apresentam várias referências que dizem respeito ao reino dos afetos e sentimentos. Freire (2014Freire, Alyson. (2014). Economia versus intimidade: uma alternativa via as sociologias de Viviana Zelizer e Eva Illouz. Latitude, 8/2, p. 255-287.) também argumenta que, para alguns autores das abordagens clássicas das ciências sociais, tais como Marx, Durkheim, Simmel e Weber, existe um “temor” comum em suas obras, que diz respeito aos “efeitos patológicos do mercado sobre a vida individual e sobre os laços sociais” (Illouz, 2011Illouz, Eva. (2011). O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar.: 259).

Em seu artigo “Dualidades perigosas”, a socióloga argentina Viviana Zelizer (2009Zelizer, Viviana A. (2009). Dualidades perigosas. Mana, 15/1, p. 237-256.) pontua que, ao longo dos últimos dois séculos, os teóricos sociais têm demonstrado imensa preocupação com a incompatibilidade, a falta de comensurabilidade e a contradição entre as relações de intimidade e as relações impessoais. Desde o século XIX, essa dicotomia passa a desempenhar um papel de destaque nos debates acadêmicos como uma reação ao cenário do capitalismo industrial, implicando a ideia de que o mundo social é regido por princípios inconciliáveis. Esse fato faz a autora considerar que, tanto os defensores quanto os críticos do capitalismo industrial compartilhavam a premissa de que a racionalidade industrial estava minando a solidariedade, as dimensões emocionais e a intimidade presentes nos mercados, nas empresas e nas economias nacionais.

Zelizer (2009Zelizer, Viviana A. (2009). Dualidades perigosas. Mana, 15/1, p. 237-256.) se atenta para o fato de que, dentro das perspectivas clássicas das teorias sociais, é notável a recorrência da noção de “contaminação moral”, que identifica a mistura de elementos econômicos com a esfera da intimidade como um fator de risco. O que faz a autora afirmar que os analistas que adotam essas correntes sustentam a necessidade premente de manter uma separação clara entre as esferas do mercado e dos domínios íntimos, com o propósito de estabelecer fronteiras bem definidas entre ambos.

Levando em conta essas contradições, é pertinente questionar o motivo pelo qual a interseção entre a intimidade e o aspecto econômico tem suscitado tamanha preocupação entre alguns teóricos da economia e ciências sociais a partir das seguintes questões: será que a intimidade é tão frágil a ponto de desaparecer quando exposta ao dinheiro e aos interesses econômicos? Em vez de assumir que a manutenção de relações íntimas e a condução de atividades econômicas são intrinsecamente incompatíveis, não seria mais produtivo explorar como as pessoas podem eficazmente administrar essas duas esferas? Como é possível analisar contextos que envolvem transações financeiras e uso de dinheiro sem recorrer a interpretações simplistas e dicotômicas?

Acredita-se que algumas dessas indagações podem ser elucidadas à luz das observações de Zelizer (2009Zelizer, Viviana A. (2009). Dualidades perigosas. Mana, 15/1, p. 237-256.), quando a autora ressalta que tais distinções se mostram mais confusas do que esclarecedoras na análise social, uma vez que a vida econômica e o comportamento organizacional encontram maneiras de estabelecer relações que transcendem essas fronteiras. Destarte, em vez de ver os processos sociais meramente como um “recipiente” para a economia, as novas formas de análise passam a apresentar abordagens inovadoras que oferecem interpretações mais profundas das atividades econômicas, enfatizando de maneira mais evidente os aspectos sociais e culturais relacionados ao dinheiro e aos mercados.

Zelizer (2008Zelizer, Viviana A. (2008). Pasados y futuros de la sociología económica. Apuntes de investigación del CECYP, 14, p. 94-112.) observa que esse embate teórico tem conduzido a sociologia econômica por transformações significativas nas últimas décadas, especialmente ao questionar as correntes predominantes de pensamento e ao propor novas explicações para compreender as atividades econômicas. A autora explica esse ponto de transformação na disciplina ao pontuar que, em meados da década de 1980, tanto nos Estados Unidos como na Europa, a sociologia econômica passou a abraçar abordagens mais abrangentes e inovadoras que exploram as relações interpessoais e a atividade econômica em diversos domínios:

Los grandes cambios ocurridos en este campo fueron simultáneos a otros similares en otras áreas. Tres de ellos merecen especial atención. En primer lugar, dentro de la economía misma. Corrientes como la economía del comportamiento, economía feminista, economía organizacional, economia institucional, dinámicas domésticas, y más recientemente la neuroeconomía, propusieron sus propias críticas a los modelos neoclásicos (Zelizer, 2008Zelizer, Viviana A. (2008). Pasados y futuros de la sociología económica. Apuntes de investigación del CECYP, 14, p. 94-112.: 97).

O fato de que esse tema tenha se tornado um objeto de estudo nesse campo do conhecimento acaba expondo a necessidade de transformações e renovações nessa área, e é dentro desse contexto que passa a emergir uma nova corrente denominada Nova Sociologia Econômica (NSE). Para a NSE, nem as leis econômicas abstratas, que se encontram desconectadas do contexto social que molda as transações, nem a noção da racionalidade instrumental do ator seriam suficientes para compreender a complexidade de fatores e motivações não estritamente econômicas que influenciam a atividade econômica e o comportamento dos indivíduos. Nesse sentido, as novas abordagens visavam enfatizar a inadequação e as limitações dos modelos teóricos baseados na concepção do Homo economicus, como um indivíduo que age buscando exclusivamente seu próprio ganho, assim como questionar a crença de que as esferas econômicas, por meio do dinheiro e dos mercados, corrompem a intimidade e a autenticidade das relações pessoais.

Durante a década de 1980, em uma das obras fundamentais que marca o surgimento da Nova Sociologia Econômica, Granovetter (2007Granovetter, Mark. (2007). Ação econômica e estrutura social: o problema da imersão. RAE, 6/1, p. 1-41.) redefine o conceito de embeddedness1 1 De acordo com Granovetter (2007: 3): “a perspectiva da imersão (embeddedness) está associada à escola “substantivista” na antropologia, representada por Karl Polanyi (1944); Polanyi, Arensberg e Pearson (1957), e a ideia de “economia moral” presente na história e na ciência política (Scott 1976; Thompson 1971). Segundo este autor, ela também possui uma clara relação com o pensamento marxista”. de Polanyi, ao enfatizar que a ação econômica é intrinsecamente uma forma de ação social. Para Granovetter (2005Granovetter, Mark. (2005). The Impact of Social Structure on Economic Outcomes. Journal of Economic Perspectives, 19/1, p. 33-50.), os contatos pessoais, a troca de informações, as relações de confiança e reciprocidade, juntamente a outros mecanismos informais, desempenham um papel crucial na interação dentro da ordem econômica. Essa perspectiva desafia os pressupostos da teoria econômica predominante, que postula que o mercado se forma pela simples interação de indivíduos independentes, baseada apenas em escolhas racionais de natureza formal.

Lopes Júnior (2002Lopes Júnior, Edmilson. (2002). As potencialidades analíticas da Nova Sociologia Econômica. Sociedade e Estado , 17/1, p. 39-62.) aponta que, ao contrário de Polanyi, que postulava a separação da esfera econômica das demais esferas da vida social, as pesquisas no campo da NSE passam a criar um movimento teórico empolgante na sociologia, incorporando perspectivas analíticas paralelas, como análise de redes, estudos culturais e neo-institucionalismo, resultando em abordagens mais sofisticadas da vida econômica que tinham como objetivo principal destacar que a ação econômica é também uma forma de ação social.

Lopes Júnior (2002Lopes Júnior, Edmilson. (2002). As potencialidades analíticas da Nova Sociologia Econômica. Sociedade e Estado , 17/1, p. 39-62.) aponta que uma das primeiras aplicações dos princípios teórico-metodológicos que viriam a definir a NSE é encontrada no trabalho de Zelizer sobre a construção social do mercado de seguros nos Estados Unidos. Para o autor, a pesquisa de Zelizer é um marco crucial na análise da construção social dos mercados, “constituindo-se numa contraposição empiricamente apoiada da ideia de autonomização do mercado perante a vida social” (Lopes Júnior, 2002Lopes Júnior, Edmilson. (2002). As potencialidades analíticas da Nova Sociologia Econômica. Sociedade e Estado , 17/1, p. 39-62.: 40).

Dessa forma, como também pontua Adelman (2011Adelman, Miriam. (2011). Por amor ou por dinheiro?: emoções, discursos, mercados. Contemporânea, 1/2, p. 117-138.), Zelizer revisita a teoria simmeliana da sociologia do dinheiro, avançando significativamente em sua análise, ao explorar como o dinheiro se entrelaça nas relações íntimas, questionando ao mesmo tempo como ele influencia e é influenciado pelos aspectos mais pessoais e próximos da vida humana.

Com base nessas premissas, Zelizer (2005Zelizer, Viviana A. (2005). The Purchase of Intimacy. Princeton: Princeton University Press.; 2009Zelizer, Viviana A. (2009). Dualidades perigosas. Mana, 15/1, p. 237-256.) empreende uma crítica fundamentada em relação a duas abordagens analíticas predominantes, a saber: a teoria das esferas separadas e a teoria dos mundos hostis. A primeira pressupõe a existência de dois domínios distintos que se regem por princípios contrastantes: de um lado, prevalecem a racionalidade, a eficiência e o planejamento, enquanto, de outro, imperam a solidariedade, os sentimentos e os impulsos. Já a segunda teoria postula que, no momento em que esses domínios interagem, ocorre a contaminação mútua e a perturbação, capaz de minar a solidariedade.

É a partir daí que Zelizer começa a construir sua teoria das “vidas conectadas”, na qual o cerne da sua investigação passa a residir na problematização de uma epistemologia caracterizada pela pureza, a qual obstrui a compreensão da maneira como os indivíduos genuinamente interagem com os múltiplos elementos que compõem sua vida diária na sociedade contemporânea. Dessa forma, Zelizer (2005Zelizer, Viviana A. (2005). The Purchase of Intimacy. Princeton: Princeton University Press., 2009Zelizer, Viviana A. (2009). Dualidades perigosas. Mana, 15/1, p. 237-256.) vai sustentar que, em vez de manter uma separação rígida entre esses dois domínios, é mais interessante reconhecer que todo mercado está intrinsecamente ligado a relações interpessoais nas quais os significados são continuamente negociados.

Semelhante a essa perspectiva de análise, que vê o mercado como algo que é influenciado por convicções e práticas que vão além do fator econômico, Beckert (2009Beckert, Jens. (2009). The Social Order of Markets. Theory and Society, 38/3, p. 245-269.) aponta que a criação de mercados deve ser vista como um processo social que envolve a construção de estruturas relacionais, institucionais e culturais. Isso implica dizer que os mercados não só vêm da vida social, como também são cenários de interação social, que proporcionam uma estrutura social e uma ordem institucional para o intercâmbio de direitos relacionados com os bens e serviços.

O POLO DE CONFECÇÕES DO AGRESTE DE PERNAMBUCO

O Agreste pernambucano passou a ser conhecido nacionalmente através do seu polo de confecções de roupas têxteis, que teve origem em meados de 1950, através da Feira da Sulanca, na cidade de Santa Cruz do Capibaribe. Atualmente conhecida como a Capital da Sulanca, a cidade é a maior produtora de confecções de Pernambuco, possuindo ainda o maior parque atacadista de confecções do Brasil, o Moda Center Santa Cruz, que reúne mais de 10 mil pontos comerciais, entre boxes e lojas.

Os estágios iniciais desse mercado se caracterizam pela integração econômica da região do Agreste com as feiras locais e a capital do estado de Pernambuco, onde alguns comerciantes viajavam até Recife para vender produtos locais, como galinhas, carvão, queijo e outros, e retornavam com retalhos de tecido para uso em suas casas (Lira, 2006Lira, Sonia Maria de. (2006). Os aglomerados de micro e pequenas indústrias de confecções do Agreste, PE: um espaço construído na luta pela sobrevivência. Revista de Geografia, 23/1, p. 98-114.). Tais “pedaços de pano” eram obtidos inicialmente nas fábricas têxteis da capital e constituíam restos e refugos de grandes fábricas de Recife descartados no lixo e recolhidos por esses comerciantes que os vendiam a baixo custo aos moradores de Santa Cruz do Capibaribe.

Os pequenos pedaços de tecidos começaram a ser transformados por mulheres locais em colchas de retalhos e, posteriormente, em peças de vestuário, incluindo shorts infantis, saias, blusas e outros itens que podiam ser facilmente confeccionados a partir de remendos de pano. Quando as peças estavam prontas, eram comercializadas em feiras de rua, começando pelas locais e, posteriormente, expandindo-se para as feiras no Sul do estado e em cidades vizinhas.

Nas décadas seguintes, o sucesso na venda de produtos têxteis impulsionou um crescimento constante, atraindo mais pessoas, trabalho e demanda, fato que pressionava também a busca por uma maior quantidade de tecidos para abastecer a produção, que, entre 1960 e 1970, começam a ser trazidos do Rio de Janeiro e de São Paulo, pelos caminhoneiros da época, e consistiam em retalhos e resíduos que também sobravam das confecções das grandes cidades do Sudeste. Isso explica a nomenclatura da “Sulanca” que, em uma de suas versões mais difundidas, significa a junção dos termos “sul” (local de onde os tecidos vinham) e “helanca” (tipo de tecido mais utilizado para a fabricação das peças) (Campello, 1983Campello, Glauce Maria da Costa. (1983). A atividade de confecções e a produção do espaço em Santa Cruz do Capibaribe. Dissertação de Mestrado. PPGG/Universidade Federal de Pernambuco.).

As décadas de 1980 e 1990 testemunharam o ápice do desenvolvimento produtivo e comercial da região. Com o aumento da população e o crescimento econômico local, a produção de roupas se tornou um dos principais impulsionadores, o que demandou uma expansão significativa para atender à crescente demanda de comercialização do mercado.

A partir dos anos 2000, a Feira da Sulanca passa a se chamar Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco, tendo suas atividades produtivas e comerciais concentradas principalmente em Santa Cruz, Toritama e Caruaru, abrangendo também uma parte significativa da zona rural da região e de cidades e estados circunvizinhos. Diante da proporção geográfica e econômica a que esse mercado chegou, atualmente, o polo pernambucano é considerado o segundo maior polo têxtil do Brasil, movimentando cerca de 5 bilhões de reais no último ano.

De acordo com o relatório do Sebrae-UFPE (2013Sebrae/UFPE. (2013). Estudo de Caracterização econômica do Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco. Recife: FADE-UFPE.), o polo é classificado como o segundo maior centro de confecções de roupas no país, tendo aproximadamente 80% da sua produção total concentrada em unidades produtivas que operam de forma informal. Segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT, 2012ABIT - Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção. (2012). Dados gerais do setor atualizados em 2012, referentes ao ano de 2011. São Paulo: ABIT.), o polo tem movimentado mais de 1 bilhão de reais por ano, produzindo cerca de 700 milhões de peças, gerando 75 mil empregos diretos e 15 mil indiretos, o que corresponde a 73% da produção do setor em Pernambuco e 3% de arrecadação do produto interno bruto (PIB) do estado2 2 Embora os dados apresentados acima sejam de 2012 e 2013, não há outro levantamento estatístico oficial sobre o Polo mais recente do que estes. .

Além desses fatores, a consolidação do polo tem um caráter específico e “peculiar”, pois difere de outros aglomerados têxteis do país, como o de Cianorte (PR), analisado por Lima (2009Lima, Ângela Maria de Sousa. (2009). As faces da subcontratação do trabalho: um estudo com trabalhadores e trabalhadoras da confecção de roupas de Cianorte e região. Tese de Doutorado. PPGCS/Universidade Estadual de Campinas.), o de Petrópolis (RJ), examinado por Rocha (2013Rocha, Juliana Pereira da. (2013). As estratégias de vida das costureiras: confecção, facção e confiança no Polo de Moda de Petrópolis (RJ). Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.), ou o de Friburgo (RJ), estudado por Carneiro (2006Carneiro, Maria José T. (2006). Trabalho, “ajuda” e disputas: uma etnografia das confecções de lingerie em domicílios rurais. Estudos de Sociologia, 11/20, p. 99-125.), pois o polo pernambucano em questão se firmou sem ser impulsionado pelo Estado ou por grandes empresas, mas ao contrário, surgiu a partir da criatividade e de estratégias da própria população local.

O desenvolvimento da sulanca, por sua vez, se ancorou no uso de um conjunto de fatores acessíveis e de baixo custo, tais como: restos de tecido descartado e adquirido por um preço ínfimo, o espaço de produção domiciliar, a utilização da mão de obra feminina (e a sua baixa remuneração), o transporte de tecidos que, em muitos casos, poderia ser feito sem custos elevados e outros elementos que garantiram que as atividades produtivas e comerciais surgissem e despontassem sem a necessidade de grandes investimentos.

Ademais, considera-se, ainda, que um dos elementos mais evidentes no processo de construção social do mercado da sulanca é o protagonismo dos laços sociais e das interações nas transações de mercado. Por esse motivo, é de fundamental importância entender as relações sociais que se estabelecem no polo não apenas pelas suas dimensões econômicas, mas também pelas suas regras locais, valores morais e redes de relações pessoais.

FAMÍLIA, TRABALHO E NEGÓCIO

Os fatores constitutivos da própria dinâmica histórica da formação e desenvolvimento do polo demonstram que algumas práticas, processos e formas de organizações específicas da sociedade local têm influenciado na manutenção das regras sociais e econômicas da sulanca. A exemplo disso, convém pontuar que o modo de organização camponês e a experiência do campesinato na região em foco exercem influência na experiência de vida dos agentes que trazem em suas trajetórias de vida a valorização tanto do trabalho autônomo independente como a associação estreita entre família e negócio.

Em sua pesquisa sobre a sulanca, Souza (2012Souza, Alana Moraes. (2012). “A gente trabalha onde a gente vive”: A vida social das relações econômicas: parentesco, “conhecimento” e as estratégias econômicas no Agreste das confecções. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.) observou que a grande maioria dos pequenos produtores de roupas organiza a vida econômica a partir de relações que são, em grande parte, encontrada nos processos de trabalho agrícola ou do mundo rural, pois também se estruturam pelo contrato moral, pela confiança e pelo parentesco, nas quais a noção de “ajuda” é decisiva no que se refere ao trabalho de parentes, moradores ou não do domicílio em que funciona a produção. Para a autora, as relações pessoais tanto atuam de maneira determinante na inserção e reprodução dos atores no contexto do polo como constituem o principal motor do universo social em questão.

Complementando o pensamento de Souza (2012Souza, Alana Moraes. (2012). “A gente trabalha onde a gente vive”: A vida social das relações econômicas: parentesco, “conhecimento” e as estratégias econômicas no Agreste das confecções. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.), Espírito Santo (2013Espírito Santo, Wecisley Ribeiro do. (2013). Sulanqueiras: o trabalho com vestuário e outros ofícios no agreste pernambucano. Tese de Doutorado. PPGA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.) acredita que o trabalho familiar no polo parece constituir uma herança camponesa, incorporada no habitus dos agentes. Esse habitus, por sua vez, se expressa na recusa enfática das pessoas de se submeterem a um patrão, como também compreende as estratégias ligadas à noção de trabalho familiar.

Convém, todavia, destacar que, para que se possa entender melhor o polo, é essencial reconhecer que as concepções tradicionais de família e parentesco limitadas à consanguinidade não se aplicam à realidade em questão. Isso porque, localmente, essas relações se estabelecem através de vínculos intensos e duradouros, baseados em códigos de reciprocidade, na doação de favores sem a espera de retorno imediato e no apoio e suporte emocional quando se precisa. Destarte, o significado e os limites do que se considera como família variam bastante e podem englobar não só a vizinhança, como também amigos e conhecidos.

Por ter se desenvolvido em uma região rural, na qual grande parte da população tem essa experiência de vida e de trabalho agrícola, no polo, as relações de parentesco continuam sendo a base principal de organização social. Isso pode ser demonstrado, por exemplo, através do relato de uma das empreendedoras entrevistadas que, durante a entrevista, ao falar sobre os “favores” que ela e seu pai recebiam enquanto estavam viajando por vários dias para vender as mercadorias, assim me disse: “A gente tinha pessoas conhecidas lá em Santa Cruz porque, não sei se você sabe, mas o pessoal do sítio é tudo família”. Essa definição trazida pela entrevistada se assemelha ao que Woortmann (1990Woortmann, Klaas. (1990). Com parentes não se neguceia: o campesinato como ordem moral. Anuário Antropológico, 12/1, p. 11-73.: 33) frisa em seu texto, ao considerar que as comunidades camponesas e os sítios rurais geralmente se organizam pelos princípios do parentesco. Isso implica dizer que “o vizinho é um parente potencial. O vizinho é um igual com o qual se troca ajuda”.

De maneira geral, os negócios no Polo começam da mesma maneira: com base no trabalho familiar e domiciliar. Nenhuma das dezesseis pessoas entrevistadas possui algum sócio que não seja da família. Os casos estudados demonstram de maneira bastante evidente que é muito comum novos empresários surgirem de famílias de empreendedores. O núcleo familiar geralmente é constituído pelo casal (marido e esposa) e seus descendentes (filhos). São eles que começam a trabalhar, literalmente, com as próprias mãos e recursos no início das facções e fabricos.

Nesse contexto, uma empresa familiar, conforme demonstra Carneiro (2006Carneiro, Maria José T. (2006). Trabalho, “ajuda” e disputas: uma etnografia das confecções de lingerie em domicílios rurais. Estudos de Sociologia, 11/20, p. 99-125.: 116), se constitui devido à “utilização quase exclusiva de mão-de-obra familiar segundo uma lógica de relações semelhante à da organização da unidade de produção familiar agrícola”, o que pode levar à contratação informal de trabalhadores, que são constituídos geralmente por parentes, amigos, vizinhos ou pessoas próximas do convívio social que permitam manter em curso “uma relação de profunda confiança”.

Apesar disso, como nos atenta Lima (2011Lima, Alexandre Santos. (2011) “Empreendendo” a Sulanca: O SEBRAE e o Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco. Dissertação de Mestrado. PPGS/Universidade Federal de Campina Grande.), embora exista de fato um caráter predominantemente familiar e geracional dos empreendimentos do polo, que ainda são bastante dependentes de vínculos familiares, isso não pode ser generalizado, pois, na região, também é possível encontrar casos de empresas maiores, nas quais os vínculos de trabalho não se restringem apenas à família, mas expressam formas mais complexas de gestão e de relações de trabalho e produção, deixando clara a separação entre patrão e empregado.

No polo, percebe-se ainda que o mecanismo de contratação das pessoas possibilita ainda converter a relação de trabalho em relação de confiança ou amizade, na qual se alteram os limites entre patrão e empregado, e se excluem, em alguns casos, os vínculos e normas empregatícias formais, dando espaço para outros códigos, que operam na comunidade local e que se traduzem, nas falas dos entrevistados, sob a forma de relações de confiança, ajuda, troca de favores e dívidas morais.

Seguindo a linha de análise proposta por Espírito Santo (2013Espírito Santo, Wecisley Ribeiro do. (2013). Sulanqueiras: o trabalho com vestuário e outros ofícios no agreste pernambucano. Tese de Doutorado. PPGA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.), é possível observar ainda que, no Agreste pernambucano, as fronteiras entre “a ajuda genuína” e a “exploração do trabalho familiar” são muito fluidas para permitir qualquer generalização. Para Espírito Santo (2013Espírito Santo, Wecisley Ribeiro do. (2013). Sulanqueiras: o trabalho com vestuário e outros ofícios no agreste pernambucano. Tese de Doutorado. PPGA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 147), a dicotomia ajuda/exploração “parece constituir uma abstração acadêmica calcada em um pressuposto moral, maniqueísta, segundo o qual ou bem se ajuda alguém ou, inversamente, explora-se este alguém”. Apesar disso, tal como pontua o autor, no contexto do polo, onde o que impera é o regime de produção familiar de roupas de baixo custo e a venda de grandes quantidades de mercadorias, “o sulanqueiro só se ajuda (a si e a seus familiares) na medida de sua auto exploração e da exploração familiar” (147). De toda maneira, ele pontua que não se pretende com isso justificar a exploração do trabalho, mas sim tentar compreender seus sentidos, através do universo desses atores específicos do polo.

Diante das mais diversas formas de combinações das relações pessoais locais, tanto as contratações como o assalariamento se baseiam não apenas no cálculo utilitário, mas também obedecem aos princípios de uma ordem moral presente nas regras da sociedade. Destarte, a “dívida moral” que sustenta os laços de reciprocidade generalizada e a “ajuda” pode representar uma extensa jornada de trabalho, que inclui até os finais de semana, tudo para não romper o elo com o “patrão”.

Já o termo “ajuda” pode operar também através de distintos significados. Em alguns momentos, expressa uma conotação positiva, quando se associa aos laços de solidariedade, já em outros, o termo pode ser usado para ocultar ou minimizar o trabalho invisível, sobretudo aquele realizado pelas crianças. Por fim, a noção de ajuda também expressa, em determinadas situações, relações de hierarquia e subordinação. Do mesmo modo, a monetarização da ajuda é algo que varia bastante, pois, em alguns casos, esse ato pode ser remunerado, e, em outros, não. Há também situações nas quais a ajuda é “paga” com outras trocas de favores, que não necessariamente envolvem o contato direto com o dinheiro, mas passam por algum outro tipo de bonificação ou gratificação.

Agregando a essa discussão, Zelizer (2005Zelizer, Viviana A. (2005). The Purchase of Intimacy. Princeton: Princeton University Press.) argumenta que, geralmente, as pessoas participam de diferentes circuitos simultaneamente e diferenciam os vários tipos de relações interpessoais, marcando-os com nomes distintos, símbolos, práticas e meios de troca diferentes. Em seu livro The Purchase of Intimacy (2005), a autora defende a ideia de que a vida em sociedade exige a constante negociação dos limites e combinações entre transações econômicas e relações pessoais; para isso, ela nos oferece o conceito de “trabalho relacional”, que diz respeito ao trabalho envolvido nas relações íntimas, requerendo uma distinção meticulosa entre as diferentes relações possíveis.

Essa noção de trabalho relacional trazida por Zelizer (2005Zelizer, Viviana A. (2005). The Purchase of Intimacy. Princeton: Princeton University Press.) inclui o estabelecimento de laços sociais diferenciados, sua manutenção, remodelação, distinção de outras relações e até mesmo o seu fim. Nesse sentido, a constante mistura entre vida privada e vida econômica faz com que as fronteiras entre as relações pessoais e profissionais sejam pouco delimitadas, tal como no campo empírico desta pesquisa. Além do mais, esse modo de se relacionar acaba sendo fundamental e estratégico para o desenvolvimento, tanto dos empreendimentos, como das relações de trabalho, pois são através desses valores que se ajustam os “compromissos”, as “responsabilidades” e os “deveres” de ambas as partes (Milanês, 2015Milanês, Renata Bezerra. (2015). Costurando roupa e roçados: as linhas que tecem trabalho e gênero no agreste pernambucano. Dissertação de Mestrado. PPGCS/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.).

No que diz respeito a isso, um aspecto interessante de ser destacado é que um dos maiores desafios com a entrada do Sebrae na região passa, na verdade, por investir em uma narrativa sobre a necessidade da “modernização” da produção, e que consiste na racionalização da administração das unidades domésticas, de modo a direcioná-las para um cálculo econômico específico que “otimize” a produção e também “separe” a esfera da vida econômica, da esfera da vida pessoal, tal como demonstrou Souza (2012Souza, Alana Moraes. (2012). “A gente trabalha onde a gente vive”: A vida social das relações econômicas: parentesco, “conhecimento” e as estratégias econômicas no Agreste das confecções. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Apesar disso, tal fator é muito difícil se concretizar no polo, tendo em vista que o próprio mercado está intimamente vinculado ao ambiente doméstico.

Negreiros (2010Negreiros, Erica Paula Elias Vidal de. (2010). Viver em Toritama é trabalhar. Dissertação de Mestrado. PPGSS/Universidade Federal de Pernambuco.), por exemplo, aponta que o desenrolar da vida no polo está associado à dimensão do trabalho, o que faz com que até mesmo os espaços sociais sejam utilizados de maneira que atendam às necessidades mais da esfera produtiva do que da vida cotidiana das pessoas. Nesse aspecto, o que ocorre no Agreste de Pernambuco segue as mesmas tendências descritas por Carneiro (2006Carneiro, Maria José T. (2006). Trabalho, “ajuda” e disputas: uma etnografia das confecções de lingerie em domicílios rurais. Estudos de Sociologia, 11/20, p. 99-125.), no polo têxtil de Nova Friburgo (RJ), onde os locais de produção, geralmente, se iniciam integrados e fazendo parte do próprio local de moradia da família, no qual alguns cômodos da casa, se transformam em uma fábrica.

É dessa maneira que, sutilmente, a sulanca vem transformando a casa das famílias em fábricas, pois a mesa das refeições se torna a mesa de corte, a sala passa a servir como local para embalar as mercadorias e em todos os cômodos existem inúmeros tecidos, linhas, tesouras, retalhos e vestígios da confecção de roupas. Dessa forma, com o trabalho sendo realizado dentro do lar, não existe uma separação clara entre a esfera privada e pública, entre a casa e a fábrica, pois um acaba virando extensão do outro e tudo é “misturadamente organizado” (Milanês, 2020Milanês, Renata Bezerra. (2020). “Todo mundo aqui quer ser patrão”: pernambucanizando o empreendedorismo no Polo de Confecções de Roupas do Agreste. Tese de Doutorado. PPGCS/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.).

Em um diálogo com Zelizer (2009Zelizer, Viviana A. (2009). Dualidades perigosas. Mana, 15/1, p. 237-256.), o que se pode perceber é que, no polo, as esferas do trabalho e da economia não são “hostis” à esfera da família, do doméstico e da afetividade, pois os diferentes domínios da realidade se revelam imbricados e emaranhados uns nos outros. Nesse sentido, as relações da vida social não necessariamente “destroem” ou “corrompem” a integridade do mercado, como argumenta o Sebrae (2013Sebrae/UFPE. (2013). Estudo de Caracterização econômica do Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco. Recife: FADE-UFPE.), e também muitas abordagens sociológicas clássicas, mas ambas esferas se misturam regularmente e também se reforçam e se complementam mutuamente.

A IMPORTÂNCIA DAS REDES DE RELAÇÕES PESSOAIS NO POLO

Diante do contexto relatado acima, acredita-se que dar relevância para as redes de relações interpessoais, de parentesco, amizade, vizinhança ou confiança, que estão por trás dos negócios, pode surgir como um novo caminho que não nos permita a cair no erro de atribuir o sucesso ou o fracasso de determinados empreendimentos, como sendo resultados exclusivos da ação de um único indivíduo, tal como nos atentam Kirschner e Monteiro (2002Kirschner, Ana Maria & Monteiro, Cristiano Fonseca. (2002). Da sociologia econômica à sociologia da empresa: para uma sociologia da empresa Brasileira. Sociedade e Estado, 17/1, p. 80-103.). Segundo os autores, a empresa, como qualquer outro agrupamento humano, deve ser vista como um lugar de articulação entre o individual e o social.

Conforme observou Souza (2012Souza, Alana Moraes. (2012). “A gente trabalha onde a gente vive”: A vida social das relações econômicas: parentesco, “conhecimento” e as estratégias econômicas no Agreste das confecções. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.), a rede de relações é central para a sobrevivência na economia da sulanca em diversas situações e, além disso, adquirir uma boa reputação é algo bastante estratégico em uma economia baseada em contratos de confiança, pois:

É preciso conhecer pessoas para acessar o saber da costura, é preciso se relacionar com pessoas que tenham o conhecimento das vendas na feira, e a partir disso abrir contato com uma clientela, é necessário mobilizar os parentes de.confiança para “ajudar” na produção em época de muita demanda, é necessário acionar o vizinho de feira para “tomar conta” da sua barraca nas horas de almoço, é decisivo, por fim, ter uma boa reputação na cidade - conhecimento - para que os prazos relacionados à compra de matéria prima sejam facilitados (Souza 2021: 135).

Garcia-Parpet (1984Garcia-Parpet, Marie France. (1984). Feira e trabalhadores rurais: as feiras do Brejo e do Agreste Paraibano. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Janeiro.), ao estudar os feirantes da Paraíba, já apontava para o fato de que saber acionar a rede de relações pessoais é de grande valia para o que a autora chama de “botar negócio”. Além das relações familiares e de vizinhança, é indispensável que dentro da própria feira também se desenvolvam relações de confiança com os diversos vendedores, compradores e demais atores para que se tenha um melhor desempenho nas transações econômicas.

Exemplificando o que propõe Garcia-Parpet (1984Garcia-Parpet, Marie France. (1984). Feira e trabalhadores rurais: as feiras do Brejo e do Agreste Paraibano. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Janeiro.), convém destacar o depoimento de uma empreendedora entrevistada (Milanês, 2020Milanês, Renata Bezerra. (2020). “Todo mundo aqui quer ser patrão”: pernambucanizando o empreendedorismo no Polo de Confecções de Roupas do Agreste. Tese de Doutorado. PPGCS/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.), que descreve a importância das relações pessoais no polo, afirmando que o fiado e as relações de confiança permitem inclusive que alguns produtores desprovidos de capital financeiro iniciem a cadeia de confecção das peças “sem ter um real”, apenas contando com as redes de conhecimento do mercado local:

Maria: Eu costumo dizer que a gente que mora aqui, a gente caiu de paraquedas, não tem outra coisa, porque tipo isso aqui… você, hoje, já melhorou um pouquinho, mas algum tempo atrás você começava a fazer essa camisa sem precisar ter um real. Tipo, eu vou na loja comprar malha, ainda tem alguns lugares, se eu for conhecida, fica lá no caderno. Eu tenho um local que eu compro, que eu ligo e digo: - Ei, manda tantas peças de pano para eu cortar! Daí eles mandam, e só depois é que eu vou lá pagar.

Renata: Sim, é confiança, né?!

Maria: É! Quando eu comecei, eu comprei, sei lá, dois ou três quilos de peças de pano. Aí mandei cortar, aí eu costurava e eu ia para a feira vender. Só quando eu chegava com o dinheiro, é que eu começava a pagar os locais. Então, você começa sem ter um real (Milanês, 2020Milanês, Renata Bezerra. (2020). “Todo mundo aqui quer ser patrão”: pernambucanizando o empreendedorismo no Polo de Confecções de Roupas do Agreste. Tese de Doutorado. PPGCS/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.: 159).

A fala de Maria vai de encontro ao que aponta Granovetter (2007Granovetter, Mark. (2007). Ação econômica e estrutura social: o problema da imersão. RAE, 6/1, p. 1-41.), em um dos textos que consolida o surgimento do campo da Nova Sociologia Econômica, no qual, ao trazer sua proposta de embeddedness, ele pontua que a ação econômica também é uma forma de ação social, ou seja, as relações mercantis perpassam e são perpassadas o tempo todo pelas relações sociais. Dessa maneira, tal como sugere o autor, as relações sociais, mais do que dispositivos institucionais ou de moralidade generalizada, são também as principais responsáveis pela produção de confiança na vida econômica.

As redes sociais, segundo Granovetter (2005Granovetter, Mark. (2005). The Impact of Social Structure on Economic Outcomes. Journal of Economic Perspectives, 19/1, p. 33-50.), estabelecem relações fortes ou fracas entre os indivíduos. As do primeiro tipo são formadas por contatos frequentes e de longa duração, que acionam recursos como solidariedade, confiança e ajuda mútua. Já as do segundo tipo são caracterizadas pelos relacionamentos menos constantes e de curta duração. Vale e Guimarães (2010Vale, Gláucia Maria Vasconcellos & Guimaraes, Liliane de Oliveira. (2010). Redes sociais na criação e mortalidade de empresas. RAE, 4, p. 325-337.: 327) exemplificam essa diferenciação dizendo que: “enquanto vínculos fortes sugerem redes (comunidades ou conjuntos) coesas e interconectadas, vínculos fracos sugerem contatos e relacionamentos eventuais e superficiais, que se estabelecem entre diferentes redes”.

Para Granovetter (2005Granovetter, Mark. (2005). The Impact of Social Structure on Economic Outcomes. Journal of Economic Perspectives, 19/1, p. 33-50.), os empreendedores são capazes de conectar (via laços fracos) diferentes grupos sociais, que compõem diferentes cenários e atores e incluem produtores, compradores e vendedores, que, de outra maneira, estariam desconectados. Por conseguinte, segundo ele, os contatos pessoais, o fluxo de informações, as relações de confiança e reciprocidade e outros mecanismos informais são fatores decisivos de interação no interior da ordem econômica. Pois, segundo o autor, os indivíduos não são pessoas isoladas e as iniciativas e oportunidades das quais dispõem são influenciadas pelos laços sociais dos quais dispõem e pela natureza das redes nas quais se inserem.

Se aproximarmos as contribuições de Granovetter (2005Granovetter, Mark. (2005). The Impact of Social Structure on Economic Outcomes. Journal of Economic Perspectives, 19/1, p. 33-50.) com o campo empírico desta pesquisa, é possível notar que, em geral, os laços e relacionamentos dos empreendedores no polo se classificam em três categorias principais: (1) relações familiares: vínculos fortes - laços primários; (2) relações pessoais: vínculos fortes e fracos - laços secundários; (3) relações profissionais: vínculos fracos - laços terciários. Todavia, convém pontuar que a composição desses elos se dá de maneira distinta e vai se alterando, se amplificando e diversificando, de acordo com cada caso particular e na medida em que cada empreendimento se desenvolve.

Klyver et al. (2008Klyver, Kim et al. (2008). Influence of Social Network Structure on Entrepreneurship Participation: A Study of 20 National Cultures. International Entrepreneurship Management Journal, 4, p. 331-347.) demonstram que o capital social dos empreendedores corresponde ao valor gerado pelas redes sociais. Nesse sentido, as redes sociais são instrumentos capazes de afetar o reconhecimento de oportunidades, a decisão e a orientação, tanto no ato de se tornar empreendedor como auxiliando no crescimento dos negócios. É por isso que, para quem é nativo do polo e já está incorporado no mundo da sulanca, tanto a descoberta de oportunidades como também o know-how, acontecem de maneira mais natural, acessível e descomplicada, pois essas pessoas conseguem articular uma rede maior de contatos com a qual pode contar.

Kirschner e Monteiro (2002Kirschner, Ana Maria & Monteiro, Cristiano Fonseca. (2002). Da sociologia econômica à sociologia da empresa: para uma sociologia da empresa Brasileira. Sociedade e Estado, 17/1, p. 80-103.) sugerem ainda que os contatos pessoais, o fluxo de informações, as relações de confiança, a reciprocidade e outros mecanismos informais são fatores explicativos decisivos da interação no interior da ordem econômica. Os autores destacam que é importante procurar entender os mercados, dando uma atenção maior para as redes de relações que os constituem, pois essa atitude questiona os postulados da teoria econômica clássica, “segundo a qual o mercado se estruturaria pela mera interação de indivíduos independentes uns dos outros, interação esta fundada tão-somente em escolhas racionais de caráter formal” (2002: 84). Considerando que os indivíduos não são pessoas isoladas e seus laços sociais influenciam suas trajetórias, a compreensão do funcionamento da ordem econômica implica em levar em consideração as interações sociais num sentido mais abrangente, tal como apontam os autores.

No caso de Pernambuco, por exemplo, é possível identificar maneiras menos competitivas, destrutivas e egoístas nos processos de criação de oportunidades econômicas e de emergência do empreendedorismo, que não desintegram totalmente as bases de uma sociabilidade construída com base em alguns valores típicos do mundo rural. A exemplo disso, convém relembrar o fato contado por uma entrevistada, que tinha um ponto de apoio durante os dias de feira na casa de alguns parentes e conhecidos para que pudesse tomar banho, se alimentar e dormir.

De maneira semelhante, o maior empresário da região, ao ser entrevistado também me disse que quando seu pai faleceu, tanto as vizinhas e amigas da sua mãe, “ajudaram” doando algo que a família pudesse vender para criar renda, como também o maior vendedor de tecido da época emprestou uma grande quantidade de tecidos para que sua mãe pudesse iniciar no ramo da sulanca. Essas histórias são exemplos de que as redes sociais tecidas pela sulanca estão permeadas por vínculos intensos de solidariedade, pois, desde o início do processo de construção desse mercado, o que se percebe é que esses laços de ajuda figuram como um importante elemento de sobrevivência social e econômica dos empreendimentos. Além disso, eles também podem ser fortes aliados nos casos de ascensão no mundo dos negócios.

Há que se considerar ainda que, embora não seja comum o fato de recorrerem a bancos, existem situações nas quais os empreendedores solicitam empréstimos a familiares, vizinhos e até mesmo patrões. O recurso a essas micro-finanças possibilitado pelas relações pessoais, muitas vezes, acaba sendo uma solução imprescindível para a falta de capital empresarial e para o desenvolvimento daqueles que estão começando os negócios. Diante disso, o que ocorre é que, na ausência de contratos formais, torna-se necessário um alto grau de confiança nas relações interpessoais para manter a circulação do mercado funcionando.

Os depoimentos dos entrevistados também trazem à tona que, sobretudo nos primeiros anos de atividade, eles contaram com uma ampla rede de suporte, formada não só por amigos e parentes, mas até mesmo por conhecidos distantes, que acabaram atuando direta ou indiretamente para o sucesso dos negócios. Logo, é possível observar, na trajetória das pessoas que estão iniciando seus empreendimentos, “a importância particular de alguns laços, seja na ajuda ao acesso a novos recursos, seja na alavancagem de novos contatos” (Corrêa & Vale 2014Corrêa, Victor Silva & Vale, Gláucia Maria Vasconcellos. (2014). Redes sociais, perfil e trajetórias empreendedoras. Revista da Administração (RAUSP), 49/1, p. 77-88.).

As configurações encontradas no polo também demonstram como a reciprocidade é importante em um mercado de economia informal, porque acaba pressupondo e exigindo um intercâmbio de distintas formas de relações de confiança, favores e laços de amizade. Em acordo com a perspectiva proposta por Lomnitz (1990Lomnitz, Larissa. (1990). Redes informales de intercambio en sistemas formales: un modelo teórico. Comercio Exterior, 40/3, p. 212-220.), acredita-se que essa teia de relações conduz a uma “proliferação de redes de reciprocidade, inicialmente baseadas no parentesco, já que geralmente há confiança entre parentes próximos. Contudo, essas redes frequentemente se expandem para incluir centenas de pessoas, entre amigos e conhecidos” (1990: 2013, tradução nossa) Assim, as relações de reciprocidade são o que sustentam as raízes da informalidade através de uma troca contínua entre serviços gratuitos, que são motivados por uma ideologia de parentesco e amizade. Esse aspecto é extremamente relevante nas análises sobre mercado, pois, como bem observa a autora: “As lealdades familiares e locais determinadas cultural ou pessoalmente, muitas vezes, desafiam as ideologias mais nacionalistas que sustentam a racionalidade burocrática. (Lomnitz, 1990Lomnitz, Larissa. (1990). Redes informales de intercambio en sistemas formales: un modelo teórico. Comercio Exterior, 40/3, p. 212-220.: 212, tradução minha). Isso pode explicar o fato de que as atividades informais obedecem muito mais a uma lógica cultural e a códigos morais 1990: 212, traduçã). Isso pode explicar o fato de que as atividades informais obedecem muito mais a uma lógica cultural e a códigos moraisis obedecem muito mais a uma lógica cultural e a códigos morais

De maneira semelhante, ao estudarem os “empreendedores descalços” da Argentina, Chile, Zimbábue e Gana, Imas et al. (2012Imas, J. Miguel. (2012). Barefoot Entrepreneurs. Organization, 19/5, p. 563-585.) observam que alguns valores adotados em ambientes semelhantes ao do polo demonstram que não é só a competitividade que dita as regras do mercado, mas a solidariedade também se torna uma característica muito importante nos relacionamentos e nas transações comerciais. Sendo assim, “na marginalidade, emergem novas práticas criativas de sobrevivência cotidiana que não estão associadas a um indivíduo em si, mas a comunidades” (2012: 568).

Semelhante ao que ocorre no Agreste pernambucano, Rabossi (2004Rabossi, Fernando. (2004). Nas ruas de Ciudad del Este: vidas e vendas num mercado de fronteira. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Janeiro.) observa que, no comércio urbano de Ciudad del Este, no Paraguai, embora as relações entre patrões e empregados impliquem posições desiguais, elas não se congelam numa estrutura hierárquica, “conformando tanto um mecanismo de incorporação na rua como um meio de desenvolvimento de confiança que posteriormente alimentará as relações” (2004: 157). Isso ocorre, segundo o autor, pois, assim como acontece no Agreste pernambucano, as relações e as regras que regulam a competência e o companheirismo das pessoas no mercado remetem à forma de estruturação das vendas na rua, que não se dão em um espaço anônimo, mas em “um universo atravessado por relações e avaliações extremamente personalizadas” (2004: 157).

Contudo, se, por um lado, a solidariedade, a “ajuda” e a reciprocidade parecem fazer parte da ética moral da sulanca, por outro lado, assumir isso não implica dizer que o polo funciona como um todo harmônico ou se configura como um ambiente sem disputas e conflitos, pois, como será narrado mais adiante, os confrontos existem. Além do mais, assim como demonstrou Zelizer (2005Zelizer, Viviana A. (2005). The Purchase of Intimacy. Princeton: Princeton University Press.), mesmo que em determinados contextos haja uma “negociação constante do conteúdo exato de laços sociais” (2005: 32, tradução nossa), isso não implica necessariamente em uma igualdade entre os atores.

É importante pontuar também que a presença da reciprocidade também não exclui o envolvimento em estratégias que podem levar à desconfiança entre as partes, pois pode ser que existam situações incertas ou ambíguas dentro da dinâmica do trabalho relacional, especialmente se estivermos diante de um mercado informal, como o do polo pernambucano, por exemplo. Por essa razão, os patrões, empregados e clientes estão sempre definindo e redefinindo, tanto as relações como os seus graus de igualdade ou desigualdade.

Dessa forma, embora as desigualdades e as diferenças estruturem as posições das pessoas no mercado do qual fazem parte, a vida cotidiana dos indivíduos é, em geral, “um mundo de apostas e desejos de lucros, de acumulação e reconhecimento, de reprodução de relações tradicionais e de amplificação de novos consumos” (Rabossi, 2004Rabossi, Fernando. (2004). Nas ruas de Ciudad del Este: vidas e vendas num mercado de fronteira. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 280).

Levando em consideração essa discussão, convém pontuar que talvez um dos segredos do sucesso de alguns empresários nativos da região está pautado nos recursos disponíveis nas redes de relações sociais que eles conseguem construir ao longo do tempo, pois é a partir delas que essas pessoas conseguem articular solidariedade vicinal, troca de favores e, com isso, construir as bases do seu capital social na região. Essas redes são de extrema importância, porque é dentro dessas conexões que as pessoas acessam importantes recursos do mundo dos negócios, tais como: aprendizagem dos processos industriais, entendimento das estratégias de mercado, boas redes de contatos de fornecedores e de clientes, informação do sobre moda, apoio financeiro, credibilidade, conselhos e suporte emocional.

De acordo com os resultados da pesquisa de campo e levando em conta o que afirmam Markman e Baron (2003Markman, Gideon D. & Baron, Robert A. (2003). Person-Entrepreneurship Fit: Why Some People are More Successful as Entrepreneurs Than Others. Human Resource Management Review, 13/2, p. 281-301.), observa-se que a novidade e a ambiguidade dos mercados emergentes criam um grande incentivo para que alguns empreendedores obtenham “informações superiores”. Vale et al. (2008Vale, Gláucia Vasconcelos et al. (2008). Empreendedorismo, inovação e redes: uma nova abordagem. RAE, São Paulo, 7/1, p. 1-17.) também defendem a ideia de que os laços e contatos garantem informações, abrem acesso e geram oportunidades diferenciadas para os empreendedores.

No jogo do mercado, portanto, torna-se um diferencial que as pessoas disponham de informações necessárias, que forneçam as bases para as decisões que serão tomadas durante o desenvolver dos negócios. Tendo em vista que a informação se dá de acordo com as redes nas quais o indivíduo está inserido, em muitos casos, sobretudo no daqueles que não são nativos da região, esse compartilhamento pode ocorrer de maneira assimétrica, lenta e, assim, retardar o processo de desenvolvimento dos empreendimentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de construção do polo deixa evidente que não se pode entender a criação da sulanca e dos seus empreendimentos como fenômenos focados exclusivamente no indivíduo per se, pois a própria história da região tem demonstrado que o que está por trás do sucesso desse aglomerado econômico é uma rede de pessoas articuladas coletivamente, ou parafraseando Imas et al. (2012Imas, J. Miguel. (2012). Barefoot Entrepreneurs. Organization, 19/5, p. 563-585.:574): “We see a very collective form of social creativity in practice”.

Dentro desse contexto, as contribuições da Nova Sociologia Econômica nos ajudam a compreender o polo, na medida em que se distanciam das abordagens reducionistas que separam o mercado e os sistemas impessoais de produção da solidariedade, intimidade e privacidade e propõem abordagens inovadoras que ressaltam os valores culturais e sociais que estão por trás das relações econômicas.

A pesquisa demonstra que economia movimentada e criada pela sulanca não deve ser entendida exclusivamente pelo viés formalista das relações de trabalho e produção ou pelo pressuposto de enxergar o que acontece no local, apenas sob a ótica do capitalismo predatório ou do antagonismo formalidade versus informalidade. Isso implica assumir que a desconsideração do mundo social em função da priorização da racionalidade instrumental dos atores (medida apenas pelo cálculo e pelos interesses) jamais daria conta de explicar a complexidade de fatores e motivações não econômicas, que estão presentes nas transações mercantis e no comportamento dos indivíduos que trabalham no polo, pois a vida econômica também se revela imbricada em outros condicionantes sociais, culturais, políticos e históricos.

Dessa forma, assim como é sugerido por Adelman (2011Adelman, Miriam. (2011). Por amor ou por dinheiro?: emoções, discursos, mercados. Contemporânea, 1/2, p. 117-138.), acredita-se que as relações econômicas, muitas vezes, podem incluir cálculos de interesse que não necessariamente são mediados apenas pelo dinheiro. Assumir essa postura, não implica “defender relações instrumentalizadas” ou “relações de afeto mais puras”, mas “apontar para a diversidade de possibilidades e trabalhar para que - num mundo mais igualitário - possam florescer sujeitos, desejos, experiências e pessoas que se reconheçam” (136).

Nesse contexto a abordagem utilizada aqui procurou enfatizar que os mercados não só vêm da vida social, como também são cenários de interação social que proporcionam uma estrutura social e uma ordem institucional para o intercâmbio de direitos relacionados com os bens e serviços. Dentro dessa perspectiva, buscou-se considerar que os processos econômicos não são entidades superiores que pairam no ar, mas, ao contrário, estão imersos e enraizados nas estruturas sociais, tal como demonstrou Granovetter (2007Granovetter, Mark. (2007). Ação econômica e estrutura social: o problema da imersão. RAE, 6/1, p. 1-41.).

Ao superar a oposição entre intimidade e economia, a análise dos mundos conectados de Zelizer também nos oferece uma alternativa para pensar na vasta gama de possibilidades que podem existir entre as transações econômicas e as relações de intimidade. Sendo assim, em vez de ver a interseção das esferas como algo que gera conflito, confusão e corrupção, Zelizer nos instiga a estudar o que se passa nos entremeios das relações íntimas e ver como as pessoas conseguem integrar transferências monetárias, contratos, pagamentos sob a forma de grandes redes de obrigações mútuas, sem que isso necessariamente destrua os laços sociais envolvidos em questão, pois muitas vezes o dinheiro coabita regularmente com a intimidade e até a sustenta.

As observações etnográficas e o estudo histórico do polo também demonstram que um dos elementos mais evidentes no processo de construção social da sulanca é o protagonismo dos laços sociais e das relações pessoalizadas nas transações de mercado. Isso implica dizer que as atividades econômicas se vinculam diretamente com outras esferas da vida social e que as transações comerciais estão repletas de conexões sociais. Levando em conta essa questão, as redes sociais têm um papel fundamental no processo de formação e desenvolvimento dos empreendimentos no polo, pois o fato de ter amigos, familiares e vizinhos atuando no mercado de roupas facilita no processo de aprendizagem e nas habilidades necessárias para que se tenha mais sucesso nos negócios.

Diante desses elementos, acredita-se que não faz mais sentido analisar esse espaço econômico sob uma perspectiva dicotômica que aponta os binarismos e as separações que pairam sempre entre o formal versus o informal, o impessoal versus o pessoal, o público versus o privado, a reprodução versus a produção, pois isso ocultaria o colorido das interações sociais e econômicas do local, que são muito ricas e vão muito além desses pares de oposição. Assim, esse mercado de roupas do interior do Nordeste se constitui como um espaço que não deve ser visto apenas pelos seus aspectos produtivos e comerciais, mas também como um local de sociabilidade que envolve elementos culturais, religiosos, gastronômicos e criativos, capazes de reproduzir e expressar os costumes do povo dessa região, como também afirmam Souza (2012Souza, Alana Moraes. (2012). “A gente trabalha onde a gente vive”: A vida social das relações econômicas: parentesco, “conhecimento” e as estratégias econômicas no Agreste das confecções. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.) e Burnett (2014Burnett, Annahid. (2014). Era o tempo do pano na porta: instituição e desenvolvimento da Feira da Sulanca dos anos 1950 aos anos 1980. Tese de Doutorado. PPGSC/Universidade Federal de Campina Grande.).

Por fim, acredita-se que, para entender melhor o polo, são necessárias novas abordagens que analisem como as pessoas usam e gerenciam a atividade econômica em conjunto com as relações pessoais, e, a partir disso, entender como elas criam, mantêm e renegociam constantemente os laços com os demais atores desse mercado.

REFERÊNCIAS

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  • Beckert, Jens. (2009). The Social Order of Markets. Theory and Society, 38/3, p. 245-269.
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  • 1
    De acordo com Granovetter (2007Granovetter, Mark. (2007). Ação econômica e estrutura social: o problema da imersão. RAE, 6/1, p. 1-41.: 3): “a perspectiva da imersão (embeddedness) está associada à escola “substantivista” na antropologia, representada por Karl Polanyi (1944); Polanyi, Arensberg e Pearson (1957), e a ideia de “economia moral” presente na história e na ciência política (Scott 1976; Thompson 1971). Segundo este autor, ela também possui uma clara relação com o pensamento marxista”.
  • 2
    Embora os dados apresentados acima sejam de 2012 e 2013, não há outro levantamento estatístico oficial sobre o Polo mais recente do que estes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2023
  • Revisado
    20 Jan 2024
  • Aceito
    09 Abr 2024
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