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A Construção do Sujeito Feminino em Georg Simmel

The Construction of the Femable Subject in Georg Simmel

Resumo

Georg Simmel foi um dos primeiros professores em Berlim a admitir as mulheres em suas aulas e seminários. Em sua teoria da modernidade, adota a perspectiva do indivíduo inserido em uma cultura objetiva, própria da economia monetária, e em uma cultura subjetiva, própria do sujeito. São, então, realidades inter-relacionadas. Os conceitos de cultura objetiva e cultura subjetiva são condutores de sua obra, recursos teóricos utilizados para analisar o impacto diferenciado da filosofia do dinheiro entre os sexos. Ao buscar centrar-se no sujeito singular e histórico, Simmel diferencia o masculino e o feminino na cultura, não no ser individual e único. Este artigo aborda a construção do sujeito feminino em Simmel no âmbito de uma sociologia da cultura.

Palavras-chave:
George Simmel; filosofia do dinheiro; cultura objetiva; cultura subjetiva; cultura feminina

Abstract

Georg Simmel was one of the first teachers in Berlin to admit women to his classes and seminars. In his theory of modernity, he adopts the perspective of the individual inserted in an objective culture, typical of monetary economics, and in a subjective culture. Interrelated realities. The concepts of objective culture and subjective culture are the ones that oriented of his work as ideal types, to analyze the different impact of the philosophy of money between the sexes. In seeking to focus on the singular and historical subject, Simmel differentiates male and female in culture, not in being individual and unique. This article discusses the construction of the female subject in Simmel within the scope of a sociology of culture.

Keywords:
George Simmel; money philosophy; objective culture; subjective culture; female culture

(Autora póstuma)

Desde una perspectiva metodológica, podemos formular nuestra intención primaria del modo seguinte: echar los cimentos em el edifício del materialismo histórico de forma tal que se mantenga el valor explicativo de la importância de la vida económica en la causación de la cultura espiritual y, al mismo tiempo, se reconosca las formas económicas como resultado de valoraciones y corrientes más profundas, de presupuestos psicológicos y hasta metafísicos.

Georg Simmel

Prefacio a Filosofía del dinero

Introdução

Este artigo resultou de um curso das autoras no Departamento de Sociologia, da Universidade de Brasília, no primeiro semestre de 2016. O tema do curso foi Georg Simmel e a Sociologia do Cotidiano. O objetivo era discutir a sociologia de Simmel com ênfase em análises e questões que nos pareciam fundamentais em sua obra, como a indissociabilidade entre sua obra máxima A Filosofia do Dinheiro e seus ensaios sociológicos. No entanto, não aprofundamos o debate da relação do pensamento do autor com o movimento feminista de sua época, que se estende até hoje. Os temas de reflexões centrais do artigo são: O indivíduo e a liberdade, a centralidade dos conceitos de cultura objetiva e cultura subjetiva e a cultura feminina. A apresentação do texto e o convite do Departamento de Sociologia para proferir a Aula Inaugural, do primeiro semestre de 2023, é uma homenagem à professora Lourdes Bandeira, que não está mais conosco.

Georg Simmel (1858-1918) nasceu no mesmo ano de Émile Durkheim e morreu dois anos antes de Max Weber. Embora bem mais novo do que Karl Marx (1818-1883), Raymond Aron considerou Simmel um contemporâneo de Marx em termos de suas reflexões e com quem manteve um diálogo quanto à compreensão da economia monetária capitalista, cuja ideologia, para Simmel, se manifestava na filosofia do dinheiro. Berlinense, o sociólogo somente deixou sua cidade natal em 1914 para assumir uma cátedra na Universidade Estrasburgo, morrendo quatro anos depois.

No posfácio à memória de Simmel, Georg Lukács destacou o caráter particularista de sua obra e menciona que, nela, o particular é único e cada enunciação tem uma validade absoluta. No entanto, ressalta que, ao contrário do relativismo, Simmel considera que cada enunciado oferece um aspecto apriorístico e necessário, não constituindo, porém, a própria realidade. Sobre a descrição, a forma e a essência do ensaio, conferir o texto de Lukács, A alma e as formas (2015).

Seria Simmel um relacionista, nos termos elaborados por Karl Mannheim, em sua obra Ideologia e Utopia (1982MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. 4 edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. 330 p.), ao diferenciar os conceitos de relativismo e relacionismo? Consideramos que sim. Lukács classificou Simmel como o filósofo do impressionismo, na medida em que essa escola é uma forma de transição, que rejeita o fechamento e uma modelagem final. Segundo Lukács, se fosse para caracterizar Simmel diria: “A essência própria do seu talento permite compreender que seus valores mais estáveis sejam de natureza sociológica e histórico-filosófica” (Lukács,1993, p. 207).

Souza (2014SOUZA, Jessé; ÖELZE, Berthold (Orgs). Simmel e a modernidade. 2 edição. Brasília, Editora Universidade de Brasília. 2014.268 p.) descreve Simmel como um autor de rara genialidade e originalidade, tanto nas escolhas dos temas quanto no modo de abordá-los. Para Souza, nos escritos de Simmel, os aspectos particulares e estruturais, que envolvem as relações indivíduo-sociedade, estão concomitantemente articulados, em uma perspectiva múltipla, em uma busca incessante de adequada compreensão da multiplicidade do social. Em Simmel, a sociedade vista globalmente somente pode ser pensada como um conceito-limite, como resultado das formas de sociações ou o que é o mesmo que a rede de relações sociais recíprocas. É a matéria das sociações que constitui os conteúdos das relações sociais (Souza; Öelze, 2014).

Em Simmel, nada é trivial, pois tudo pode se relacionar e se prender ao essencial: trata-se de se descobrir em cada detalhe da vida o seu sentido essencial. Contudo, se todos os “detalhes remetem ao sentido global da vida, se a profundidade da vida se encontra no fundo das aparências, então o mundo é um, e cada aparência se deixa interpretar como um símbolo que remete à unidade do mundo” (Vandenberghe, 2005, p. 41).

As reflexões de Georg Simmel sobre o sujeito feminino se inserem em suas análises sobre os processos de diferenciação social, no caso específico nas diferenças culturais entre os sexos, presentes em sua obra máxima Filosofia do Dinheiro3 3 Cf. Filosofía del dinero. Madrid, Gráficas Gracell, Alcobentas, Madrid, Espana, 2013. . Em uma perspectiva comparativa, a cultura feminina é abordada no contexto da economia monetária, sendo a cultura do dinheiro objetivada e, sobretudo, masculina. Seu pensamento é catalisador das profundas diferenças sociais e culturais entre os sexos no seio da modernidade. Sua reflexão sobre a cultura feminina reside tanto em aspectos de como a economia monetária invade desigualmente as esferas pública e privada - da sociedade e da família - quanto em relação aos espaços do trabalho e da subjetividade.

O presente artigo procura abordar a construção do sujeito feminino em Georg Simmel com base em suas categorias analíticas de cultura objetiva e cultura subjetiva. Considera-se que na teoria crítica da modernidade do autor abordado, essas categorias são fundamentais não apenas para se compreender seu enfoque sobre a economia monetária, como também para entender o processo de diferenciação cultural entre os sexos.

No entendimento de Simmel sobre a modernidade, o sujeito feminino estaria mais preservado em relação à subjetividade do que o masculino, devido à mulher ser menos afetada, embora o seja também, pelo processo de reificação das relações sociais. Esse entendimento está presente no seu ensaio A metrópole e a vida mental, com o uso dos conceitos de comportamento blasé, espírito objetivo e espírito subjetivo (Velho,1979). Ou seja, os estímulos e processos de objetivação e alienação causados pela economia monetária recairiam sobre ambos os sexos, mas sobretudo no sujeito masculino, pelos seus papéis sociais na economia do dinheiro.

Com um olhar crítico à modernidade, Simmel seria também crítico de um dos seus produtos mais acabados, a cultura masculina da dominação. Segundo o sociólogo, a modernidade também constitui um problema quando pensada nos termos da concretização de seus princípios fundadores: a individualidade, a liberdade e a igualdade. O certo é que Simmel não projetou o espelho da mulher no homem. A singularidade do sujeito feminino decorreria justamente da maior preservação da subjetividade, decorrente de suas múltiplas funções na família, conceituada por Simmel de cultura subjetiva. No pensamento do autor, a construção do sujeito na modernidade estaria em conflito com os princípios humanistas fundadores da época moderna.

As orientações teórico-analíticas deste artigo são as seguintes: i) a sensibilidade do olhar de Simmel em relação ao sujeito feminino estaria diretamente relacionada ao pensamento crítico do autor sobre a conomia monetária; ii) por ser a mulher culturalmente menos afetada pelo processo de objetivação das relações econômicas, devido às suas múltiplas funções na esfera da família, ela teria um capital subjetivo maior; e iii) por outro lado, a dominação masculina decorreria de sua posição de identificação com as representações e os valores dominantes da economia monetária.

O pensamento histórico-filosófico de Georg Simmel tem seus fundamentos no pensamento humanista de Immanuel Kant (1724-1804), filósofo estudado em seu doutorado e precursor de sua elaboração teórica sobre a relação entre indivíduo e sociedade. Os princípios kantianos que orientaram sua formação teórica são a autonomia do indivíduo e a liberdade. As críticas de Simmel à economia monetária capitalista assentam-se nas limitações objetivas impostas pela sociedade moderna à proteção do indivíduo como portador de uma subjetividade, de direitos e de liberdade.

Este texto está estruturado nos seguintes tópicos: O indivíduo e a liberdade; A centralidade das categorias de cultura objetiva e cultura subjetiva no pensamento de Simmel; e A cultura feminina. E, por fim, sua abordagem culturalista do sujeito feminino. Conforme relata David Frisby, no Prefácio à Edição Espanhola, de 2013FRISBY, David. Introducción. In: SIMMEL, GEORG. Filosofía del dinero. Madrid, Gráficas Gracell, Alcobentas, Madrid, Espana, p. 9-29. 2013. - a obra Filosofia do Dinheiro foi lançada em 1900, ano da primeira edição e a segunda edição é de 1907 - o livro “ foi acolhida com grande entusiasmo”.

Segundo Frisby,

Más tarde, Max Weber, elogió el análisis del espíritu del capitalismo que contenía como ‘simplesmente brilhante’, Georg Herbert Mead la elogió por incluir “una enorme riqueza de ilustraciones psicológicas’ y por ser una obra que ‘demuestra’...el valor de acercarse a la ciência económica desde el punto de vista filosófico (p. 9-10).

Jürgen Habermas, no Epílogo publicado ao ensaio de Georg Simmel sobre La Aventura, analisa que

los textos de Simmel oscilan entre el ensayo y la disertación científica (1988, p. 276-277), embora o ensaio seja sua forma preferida de exposição. No entanto, ressalta que a estrutura e a organização da obra Filosofia do dinheiro se enquadrariam nessa segunda classificação, de dissertação científica, por conter uma análise sistêmica e uma teoria crítica da modernidade (1988, p. 276-277).

David Frisby aproxima-se da interpretação de Habermas, mas considera a forma do ensaio como o modelo de todos os escritos de Simmel. Ele ainda afirma que Simmel constrói uma teoria da economia monetária, que no centro contém uma sociologia do dinheiro: “O que Simmel pôs em marcha foi uma teoria subjetivista do valor e uma concepção da economia como um sistema de intercâmbio” (Frisby, 2013, p. 14). Mais à frente, Friaby enfatiza que para Simmel seria de grande importância reduzir “o processo econômico ao que realmente sucede na mente de cada sujeito econômico” (2013, p. 15). Sobre o ensaio como forma de exposição de um texto, consultar o artigo de Theodor Adorno, O ensaio como forma4 4 Theodor W. Adorno. O ensaio como forma. Sociologia (Organizador Gabriel Cohn). Editora Ática, 1986. p. 167-187. .

O Indivíduo e a Liberdade

Georg Simmel, em sua tese de doutorado, A natureza da matéria segundo a monadologia física de Kant (1881), se referencia nos fundamentos humanistas da filosofia moderna, baseada nos valores individualidade, liberdade e igualdade e sobre a qual visava elaborar uma teoria crítica da modernidade. O livro Filosofia do dinheiro divide-se em uma parte analítica e outra sintética. O primeiro capítulo da parte sintética é A liberdade individual. De acordo com o Simmel, o cálculo contínuo do valor dinheiro faz com que ele apareça como o único valor vigente.

Em a Filosofia do Dinheiro, Simmel analisa o processo de desconstrução da individualidade, contrapondo seus efeitos em relação à subjetividade e à liberdade individual. Na reflexão sobre O indivíduo e a liberdade, ele analisa três características da ideologia central da sociedade moderna, essenciais à construção da individualidade: a busca da distinção pelo indivíduo, a busca da liberdade e a busca da igualdade. Parte dessa reflexão está incluída no livro Simmel e a Modernidade, com o título de O indivíduo e a liberdade (Souza e Öelze, 2014SOUZA, Jessé; ÖELZE, Berthold (Orgs). Simmel e a modernidade. 2 edição. Brasília, Editora Universidade de Brasília. 2014.268 p., p. 107-115).

Simmel compatibiliza o princípio da igualdade com outro valor, o direito à diferença, a singularidade do indivíduo, subsumida à tendência de desconstrução da subjetividade na sociedade moderna. Do enunciado, extrai-se a concepção do sujeito autônomo:

Somos tanto mais valoráveis eticamente, tanto mais bondosos e capazes de compaixão quanto mais cada um é si próprio, ou seja, quanto mais cada qual permite que aquele núcleo interno se torne autônomo e soberano, admitindo assim a identificação entre os homens para além da confusão de ligações sociais e papéis fortuitos (Souza; Oelze, 2014SOUZA, Jessé; ÖELZE, Berthold (Orgs). Simmel e a modernidade. 2 edição. Brasília, Editora Universidade de Brasília. 2014.268 p., p. 111).

Isso nos mostra que o ser social é, antes de tudo, um indivíduo, não precisamente este ou aquele determinado:

Prefiro acreditar, no entanto, que a ideia da mera personalidade livre e da mera personalidade singular não sejam ainda as últimas palavras do individualismo. Ao contrário, a esperança é que o imprevisível trabalho da humanidade produza sempre mais e sempre mais variadas formas de afirmação da personalidade e do valor da existência (Idem, p. 115).

Georg Simmel considera que as lutas dos indivíduos não deveriam ser vistas apenas como obstáculos, mas também como potenciais para desenvolver novas forças e criações. É no sujeito como ser singular e histórico que residem sua identidade e diferenças. O capitalismo, como sistema dominante, centra-se no valor dinheiro e recai no conjunto da sociedade num processo denominado objetivação da cultura.

A divisão social do trabalho seria a causa da divergência entre uma cultura subjetiva e uma cultura objetiva. Contudo, embora todos possuam a cultura subjetiva e a cultura objetiva, recai mais fortemente sobre o homem a segunda codificada na economia do dinheiro. De acordo com Simmel, esse esquema subjaz na dominação masculina na modernidade, pois supõe-se que a mulher fica mais preservada no processo de dominação da cultura monetária devido às suas funções diferenciadas na família. Como consequência, a cultura subjetiva estaria mais preservada na mulher, porque está menos sujeita ao processo de reificação das relações sociais.

Tal reflexão é vista no ensaio A metrópole e a vida mental, em que Simmel utiliza os conceitos de espírito objetivo e espírito subjetivo, mantendo conteúdos semelhantes aos de cultura objetiva e de cultura subjetiva. No ensaio, o autor introduz o conceito de comportamento blasé, que é a indiferença em relação à realidade. Já em outras obras, Simmel reelabora os conceitos de acordo com a matéria em foco, sem perder o conteúdo central.

Seu olhar sobre o sujeito mulher adquire mais singularidade com o uso do conceito de cultura subjetiva. Apesar de inserida no processo da economia monetária, a mulher não é tão afetada quanto o homem na objetivação do sistema capitalista, posto que os indivíduos compartilhem da cultura objetiva e da cultura subjetiva, a subjetiva mostra-se mais preservada na mulher, devido às múltiplas funções que ela exerce na família e na sociedade.

A cultura subjetiva corresponde ao conjunto de experiências acumuladas, das quais o indivíduo se apropriou para elaborar sua personalidade, quais sejam padrões de pensamento, comportamento e gostos que caracterizam as formas como o sujeito se vê, tanto quanto as que o sujeito apreende e com as quais experimenta o mundo.

Já a cultura objetiva centra-se no valor do dinheiro e desenvolve-se em uma lógica própria, enquanto a subjetiva se dá conforme o desenvolvimento pessoal. Segundo Simmel, o dinheiro na modernidade é o recurso mais extremo de um meio que se converte em um fim.

Na episteme simmeliana, a reflexão sobre a liberdade constitui a base do seu conceito de individualismo. A contradição no próprio sistema capitalista leva à objetivação das relações humanas provocada pela cultura do dinheiro e contrapõe-se aos valores da liberdade, constituinte do centro de seu pensamento filosófico.

O ensaio A Metrópole e a Vida Mental é uma crítica à modernidade, em que a cultura do dinheiro se personifica na cultura masculina, reificante das relações humanas em detrimento do indivíduo e de sua subjetividade. A distinção quanto à cultura feminina opõe-se à reificação do masculino, personificada na cultura do dinheiro. O tipo ‘ideal’ a que Simmel compara o indivíduo “real” na cultura moderna é o ser humano cujas escolhas podem ser orientadas por sua subjetividade. Para ele, o indivíduo que faz jus ao ideal de liberdade é o marco fundador dos tempos modernos.

A Centralidade dos Conceitos de Cultura Objetiva e Cultura Subjetiva

Ao expor sobre o escopo de sua obra máxima, Filosofia do dinheiro, Georg Simmel extrai seus principais conceitos: trata-se de uma teoria da modernidade e de um sistema de pensamento fundado numa estrutura histórica e numa cultura própria. No prefácio, é feita uma digressão porque a denominou filosofia, ao argumentar que a filosofia trata da totalidade da vida, ao abranger a motivação principal que move uma cultura.

O autor argumenta que, se existe uma filosofia do dinheiro, ela só pode se situar além da ciência da economia do dinheiro. Sua função representa os pressupostos que outorgam ao dinheiro sentido e posição prática na estrutura espiritual, nas relações sociais e na organização lógica da realidade e de seus valores.

A obra demonstra não se tratar do estudo da origem do dinheiro, que pertence à história e não à filosofia. Salienta que não se trata de um estudo de economia política nem de história. Essas disciplinas apenas interessariam a ele na medida em que fizessem interface com o fenômeno estudado:

El dinero no es más que un medio, un material o ejemplo para la representación de las relaciones que existen entre las manifestaciones más externas, reales y contigentes y las potencias más ideales de la existência, las corrientes más profundas de la vida del individuo y de la historia (Simmel, 2013SIMMEL, Georg. Filosofía del Dinero. Madrid, Espana; Gráficas Gracell, Alcobendas. 2013. 612 p., p. 35).

Quanto à metodologia, o autor afirma que sua intenção primária é encontrar os cimentos no edifício do materialismo histórico, de forma a se manter o valor explicativo da importância da vida econômica na causação da cultura espiritual. Nessa importante passagem da obra Filosofia del Dinero fica explícita sua visão em relação ao marxismo, ao pontuar suas diferenças como sociólogo da cultura, não da infraestrutura.

De acordo com Simmel, a preocupação central de Marx não fora estudar a cultura nem a política, mas, sim, a estrutura econômica do capitalismo e seu modo de produção. O principal olhar de Simmel foi para as repercussões da infraestrutura na superestrutura. Em a Filosofia do Dinheiro, ele examinou a modernidade não nos aspectos econômicos, embora também o tenha feito ao enfatizar os efeitos das relações de produção na superestrutura. Os fundamentos de sua exposição se encontram na análise dos resultados da economia monetária na vida cultural e na ideologia.

Georg Simmel opõe-se às teorias monocausais, como é o caso do materialismo histórico, assim como é também crítico da dicotomia base-superestrutura. Para David Frisby, Simmel dirige sua principal atenção para a análise das relações de intercâmbio, não para as relações de produção. Com o estudo das relações sociais influenciadas pelo dinheiro, o sociólogo alemão identificou as representações mais profundas decorrentes da cultura monetária. De acordo com Simmel, o que está implícito em cada interação é sempre uma energia pessoal.

Contudo, como seu intérprete, David Frisby sugere que Simmel desenvolve uma teoria da alienação cultural semelhante à do jovem Marx. Uma teoria da alienação no contexto do desenvolvimento cultural moderno. A cultura do dinheiro objetiva-se nas relações sociais, por um processo que Simmel diferencia entre a cultura objetiva, cujo valor principal é o dinheiro, e a cultura subjetiva, do indivíduo em sua subjetividade. No processo da relação entre cultura objetiva e cultura subjetiva, a cultura objetiva prepondera.: “Esta ‘preponderancia de la cultura objetiva sobre la cultura subjetiva’ se manifiesta en la enigmática relación entre ‘la vida social y sus productos, por una parte, y el contenido fragmentário de la vida de los individuos por el outro” (Frisby, 2013, p. 25).

Ainda na obra Filosofia do Dinheiro, Simmel elabora os conceitos de cultura objetiva e cultura subjetiva, fundamentados na compreensão da cultura como processo objetivo e subjetivo de assimilação e interação do sujeito com o mundo exterior. Ele diz:

Al llamar cultura a los refinamientos, las formas espiritualizadas de la vida y los resultados de los trabajos internos y externos a ella, estamos ordenando estos valores en una dirección en la que ellos no, se encuentran sin más, por razón de su significación própria y objetiva (2013, p. 530).

Na obra, os itens em que se desenvolve uma reflexão sobre os conceitos de cultura objetiva e cultura subjetiva são: El carácter cauculador de los tiempos modernos; El concepto de cultura; El aumento de la cultura material y el retraso en la cultura individual; La objetivación de la mente; La división del trabajo como la causa de la divergência de una cultura subjetiva y objetiva; e la importância ocasional de la cultura subjetiva. No livro, tais tópicos são abordados na parte sintética, (página 527 à 557), constituindo propriamente uma reflexão sobre os conceitos de cultura objetiva e cultura subjetiva.

Segundo Simmel, os valores da vida também são de caráter cultivado e não têm significados isolados. Da compreensão da cultura como interação entre realidade objetivada e recepção pelos indivíduos, ele constrói os dois conceitos fundamentais da sociologia da cultura: cultura objetiva e cultura subjetiva, para tratar da cultura feminina e de sua especificidade. Podemos dizer que a relação entre cultura objetiva e cultura subjetiva, de certo modo, é análogo ao conceito sociológico de vivência, essencial para a construção da sociologia como uma ciência da cultura:

De acordo com Georg Simmel,

La cultura objetiva es la representación histórica o la condensación completa o incompleta - de aquella verdad objetivamente válida de la que nuestro conocimiento constituye una copia (Idem, p. 538).

Em sua obra, Simmel considera ser de grande importância reduzir o processo econômico ao que se sucede na mente de cada sujeito, devendo-se conceber cada interação como intercâmbio entre realidade e energia pessoal. A cultura subjetiva constrói-se no processo de relação entre indivíduo e sociedade, portanto, a totalidade do estilo de vida de uma sociedade depende “de la relación que existe entre la cultura objetivada y la cultura de los sujetos” (Idem, p. 539).

Simmel atribui à divisão do trabalho na modernidade a causa da divergência das culturas subjetiva e objetiva:

Si la división del trabajo - que entendemos aquí em su sentido más amplio, como división de la producción, fraccionamiento del trabajo y especialización - separa a la persona creadora de la obra creada y permite que esta última gane uma autonomia objetiva, algo parecido sucede con la relación entre la producción y el consumidor (Idem, p. 543-544).

Seria, então, nesse âmbito em que a divisão social do trabalho e a especialização dariam lugar ao processo de objetivação da cultura, de modo que se compõe o quadro de conjunto cujo conteúdo cultural se mostra mais claro e consciente, convertendo-se em espírito objetivo, não só nos que o recebem, mas com respeito àqueles que o produzem. A mercadoria surge como independente do produtor como dado objetivo. Suas existência e qualidade resultam autônomas frente ao produtor.

Existe uma tensão entre sujeito individual e as motivações decorrentes da economia do dinheiro, a se expressar no tensionamento “cultura objetiva versus cultura subjetiva”. De acordo com Simmel, ao aumento da cultura material corresponde o atraso da cultura individual, dado o autêntico triunfo da cultura objetiva.

El tesoro de la cultura objetiva aumenta progressivamente en todas suas partes, mientras que el espíritu individual únicamente puede ampliar las formas y contenidos de su formación de modo mucho más lento y como cono cierto retraso respecto a aquel tesoro. (Idem, p. 534).

O processo se refletirá na existência prática do indivíduo: “Nuestra existencia práctica, a pesar de ser insuficiente y fragmentaria, contiene una certa significación y una cohesión por cuanto que, por así decirlo, es la realización parcial de una totalidad” (Idem, p. 536). A objetivação da mente dá-se no percurso entre a cultura objetivada e o sujeito individual. Na análise simmeliana, essa relação universal e básica encontra analogia no sentido estrito na relação entre o sujeito individual e a cultura objetivada.

O produto impessoal é expressão da cultura objetiva. Ampliar o consumo depende do crescimento da cultura objetiva. Quanto mais objetivo e impessoal o produto for, resultará mais apropriado para um maior número de pessoas. O processo de objetivação completa da produção e o da objetivação dos conteúdos culturais aumentará a distância entre o sujeito e suas criações, afetando a intimidade da vida cotidiana.

O processo de objetivação da cultura leva a que o conteúdo cultural se converta em espírito objetivado:

Tal es, pues, el ámbito en el qual la división del trabajo y la especialización, tanto en el sentido de las personas como de las cosas, dan lugar al gran processo de objetivación de la cultura contemporánea. Con todas estas manifestaciones se compone el cuadro de conjunto en el que el contenido cultural, cada vez más clara y conscientemente, se convierte en espíritu objetivo, no solamente respecto a aquellos que lo reciben, sino también respecto a quienes lo producen (Idem, p. 551).

Na medida em que avança esta objetivação, torna-se mais compreensível a distância entre as manifestações objetivas e subjetivas. A construção conceitual de Simmel baseia-se na análise da filosofia do dinheiro, própria da economia monetária e da relação entre as culturas objetiva e subjetiva, que vão constituir o conceito de cultura feminina. Mais uma vez, é possível afirmar que a divisão social do trabalho na economia monetária é a causa da divergência das culturas subjetiva e objetiva.

Na esfera da cultura objetiva, definida também como cultura material, se encontrariam estes processos: relações de produção e meios de produção; produto impessoal (a mercadoria); divisão do trabalho; processo de alienação em relação ao trabalho e ao seu produto. Na cultura subjetiva, destaca-se o sujeito, o indivíduo. Na cultura objetiva, a filosofia do dinheiro.

Com base na diferenciação entre cultura objetiva e cultura subjetiva, Georg Simmel insere sua reflexão sobre o sujeito feminino. A construção dos conceitos de cultura objetiva e de cultura subjetiva relaciona-se à sua análise do sujeito feminino.

Como enquadrar a filosofia do dinheiro quanto à relação com a cultura feminina? Na teoria social da modernidade, segundo Simmel, o dinheiro é responsável pelas relações interpessoais. Há, entretanto, dependência mútua entre o ter e o ser. Na teoria do sujeito se encaixam suas reflexões sobre a construção do sujeito feminino. Sua reflexão sobre o sujeito feminino insere-se no desdobramento dos conceitos de cultura objetiva e de cultura subjetiva no processo histórico de objetivação da cultura. Em sua abordagem sociológica há permanente tensão entre duas realidades imanentes: a cultura objetiva, própria da modernidade, e a subjetiva, própria do sujeito nessa relação.

A Cultura Feminina

É na tensão entre a cultura objetiva como processo de objetivação da cultura na modernidade e a cultura subjetiva própria do sujeito que Georg Simmel elabora reflexões sobre o sujeito feminino. Em ensaios sociológicos, alguns anteriores à Filosofia do dinheiro, o autor enfoca aspectos particulares da cultura feminina e nesses textos pode-se perceber que os traços da dominação masculina estão presentes. Seus estudos sobre o sujeito feminino tratam de aspectos específicos da sociedade moderna quanto à inserção social da mulher e devem ser lidos como parte da reflexão desta considerada sua maior obra.

Dentre os ensaios anteriores à Filosofia do dinheiro destacam-se: Algumas reflexões sobre a prostituição no presente e no futuro (1892), A sociologia da família (1895) e O papel do dinheiro nas relações entre os sexos - fragmento de uma filosofia do dinheiro (1898). Dois outros, no entanto, são posteriores à citada obra: A cultura feminina (1902) e a Psicologia do coquetismo (1909). Em todos eles, o autor aborda a construção de uma cultura feminina na modernidade.

Na sociedade moderna, Simmel entende que a atividade da prostituição é parte de construções sociais mais próximas da cultura objetiva, ou seja, da objetivação das relações humanas pelo dinheiro. Quanto mais a mulher sofre os efeitos da objetivação da cultura, mais ela é invadida em sua subjetividade. O ensaio Algumas reflexões sobre a prostituição no presente e no futuro trata da atividade da prostituição, não como fenômeno moderno, mas ressalta: na modernidade, essa atividade assume características distintas, pela objetivação que assume: “O dinheiro é a coisa mais impessoal que existe na vida prática; como tal, é de todo inadequado a servir de meio de troca contra um valor tão pessoal quanto a entrega de uma mulher” (Simmel, 1993, p. 5). E ele ainda complementa ao dizer que “Cada vez que um homem compra uma mulher por dinheiro, vai-se um pouco do respeito devido à essência humana” (p. 6).

O diagnóstico é que a prostituição representa “a sífilis moral da economia monetária”. O livre arbítrio seria a única coisa a justificar a indignação moral da prostituição nessa “boa sociedade” e deixa um recado em relação à atividade de monetarização do corpo: “É só com o amor plenamente livre, quando caducar a oposição entre a legitimidade e ilegitimidade, que não se precisará mais de pessoas especiais dedicadas à satisfação sexual do gênero masculino” (p. 10).

As respostas do autor aos problemas da objetivação das relações humanas devido ao domínio do dinheiro estão fundamentadas em uma filosofia do ser, que tem como cultivo a liberdade humana. Neste ensaio sobre a prostituição, Simmel argumenta que apesar dessa atividade ser tão antiga quanto a história da civilização, somente na sociedade monetária passou a assumir o caráter de mercadoria.

Para ele, a posse do dinheiro presume que se pode tudo e argumenta que não se deve concluir, de sua análise crítica do papel da prostituição na economia monetária, ser contra legalizar os direitos de organização das prostitutas, de suas associações e sindicatos. A abordagem reside sobre o conteúdo dessa atividade, no sentido de que o corpo da mulher não deveria ser vendido como mercadoria. De acordo com sua reflexão, nenhuma mulher pode se sentir bem ao vender seu corpo.

Com o tema da prostituição no ensaio O papel do dinheiro nas relações entre os sexos - fragmento de uma filosofia do dinheiro (1993)) introduziu uma análise da sociedade moderna comparada a outras sociedades. Sempre houve compra de mulheres na representação do dote e da concubina, embora existisse com caráter eminentemente social. Na economia monetária, a relação se manifesta, sobretudo, como mercadoria:

Ao desejo que culmina de imediato e que expira não menos depressa, tão bem servido pela prostituição, só convém o equivalente monetário, que não estabelece compromisso algum e permanece, em princípio, disponível e bem-vindo a todo instante (Simmel, 1993SIMMEL, Georg. Psicologia do coquetismo. In: _____. Filosofia do amor. São Paulo, Martins Fontes, 93-111. 1993., p. 51).

Para se compreender um objeto de estudo, faz-se necessário compará-lo. Ao examinar a diferença intersexos, a compreensão de dualidade é fundamental, tanto na dimensão de opostos como na de conflito, uma forma de sociação. Conflito é uma forma de sociação que o sociólogo define como objeto da sociologia (1983) e ele assim se dá no processo de comparação entre os sexos.

Nas reflexões sobre a cultura feminina, o problema dual entre os sexos é exposto e detalhado, sem afastar-se da moldura final da reflexão em a Filosofia do dinheiro. Seus ensaios retratam formas particulares de sociação, inseridas no universo existencial da cultura moderna em que as subjetividades se intercruzam. O autor correlaciona a relação de intercâmbio e tensionamento entre sujeito e valores objetivados do mundo. Associa a relação entre cultura objetiva e cultura subjetiva, ao tratar do sujeito feminino, retratando tensão entre as duas realidades.

Por vezes, Simmel utiliza os conceitos de espírito objetivo e de espírito subjetivo com os conteúdos de cultura objetiva e de cultura subjetiva. No ensaio A metrópole e a vida mental, por exemplo, refere-se aos conceitos de “espírito objetivo” e de “espírito subjetivo”:

O desenvolvimento da cultura moderna é caracterizado pela preponderância do que se poderia chamar de o ‘espírito objetivo’ sobre o espírito ‘subjetivo’. Isso equivale a dizer que, na linguagem como na lei, na técnica de produção como na arte, na ciência como nos objetos do ambiente doméstico, está incorporada uma soma de espírito” (...) O indivíduo se tornou um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-los de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva (p. 23).

Otávio Guilherme Velho, no livro O Fenômeno Urbano (1979), reúne uma seleção de textos clássicos sobre as cidades. O ensaio de Simmel A metrópole e a vida mental está incluído. Otávio Velho justifica:

George Simmel, o teórico da Sociologia formal, exerceu grande influência, talvez maior nos Estados Unidos que na Europa. Aqui, interessa-nos uma conferência proferida no início do século a respeito da ‘vida mental metropolitana’, onde coloca certos insights sociopsicológicos bastante brilhantes - como suas considerações em torno da sofisticada atitude blasé do típico habitante da metrópole moderna e seus determinantes. O desenvolvimento da cultura moderna é caracterizado pela preponderância do que se poderia chamar de o ‘espírito objetivo’ sobre o espírito ‘subjetivo’ (1979, p. 23).

Otávio Velho ainda argumenta que isso equivale a dizer que tanto na linguagem como na lei, tanto na técnica de produção como na arte, tanto na ciência como nos objetos do ambiente doméstico, está incorporada uma soma de espírito. Isso significa que o indivíduo se tornou um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-los de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva (Idem, p. 23).

Em Simmel, o conceito de cultura subjetiva constrói-se comparativamente aos conceitos de espírito objetivo e de espírito subjetivo relacionados à economia monetária. Em Filosofia do Dinheiro, os dois conceitos são introduzidos na análise do processo da divisão do trabalho, tratada como causa da divergência entre cultura subjetiva e cultura objetiva.

Conforme o enfoque de Simmel na análise da divisão social do trabalho, a cultura subjetiva está mais preservada no sujeito feminino, porque a mulher assume mais atividades domésticas. Ao se distanciar mais das forças destrutivas do mercado, a mulher tem mais força moral como sujeito do que o homem. Há uma ausência de limites no espírito objetivo. A vida é sobrecarregada de superficialidades de que o indivíduo não consegue libertar-se e não consegue ser criativo, mas, sim, consumidor passivo de mercadorias.

Na sociedade moderna, os conteúdos culturais perdem qualidade por objetivos quantitativamente desmedidos. Os objetos exteriores seguem a lógica de formação, sem levar em conta seus próprios criadores, como se a cultura objetiva, de certa maneira, os dominasse. O capitalismo moderno impulsiona de modo eficiente a tragédia da cultura, tema tratado em um de seus ensaios (2014), dado que a cultura objetiva é ilimitada quantitativamente e limitada qualitativamente.

Nessa sociedade, a prostituição encontraria seu equivalente monetário na expressão mais nítida do coquetismo. Suscitada pelo dinheiro, a economia acentua a divisão de trabalho entre os sexos. Quanto maior o preço pago por uma mulher, mais respeitada ela se torna, podendo até frequentar a alta sociedade. Este seria o exemplo da cortesã:

A cortesã que se vende a alto preço ganha com isso um ‘valor de raridade’ não só porque as coisas com valor de raridade alcançam um preço elevado, mas também, inversamente, porque têm valor de raridade as coisas que alcançam um preço elevado por alguma outra razão, ainda que ao capricho da moda (Simmel, 1993SIMMEL, Georg. Psicologia do coquetismo. In: _____. Filosofia do amor. São Paulo, Martins Fontes, 93-111. 1993., p. 65).

No ensaio Psicologia do coquetismo (1909), os conceitos de cultura objetiva e de cultura subjetiva mostram-se presentes com clareza e o masculino é a cultura dominante. O amor é tratado como uma forma de sociação. Esse ensaio pode se aproximar (ou não) ao da prostituição, pois é mais sutil e se assemelha ao jogo e à arte da conquista ou da sedução, traços mais desenvolvidos culturalmente pela mulher. Porém, pode também se caracterizar no homem, por ser um jogo intersexos. Neste ensaio, Simmel parte do conceito de dualidade nas relações humanas, que surge como características primárias das formas de sociação. O coquetismo consiste numa manifestação de relações duais que há na vida, ante as coisas e o outrem: “Toda decisão definitiva põe fim à arte do coquetismo; por isso, ele manifesta a soberania de sua arte chegando bem perto de um definitivum, que contrabalança, porém, a cada instante, por meio de seu contrário” (Simmel, 1993, p. 97).

Neste ensaio, o autor, completa, ainda, afirmando que na sociedade moderna, o coquetismo adquire uma característica mais feminina, por desenvolver a arte da sedução relacionada ao vínculo do dinheiro. Como comportamento feminino, o coquetismo se torna próprio da economia monetária. Porém, o coquetismo não existe tão somente no modo de a mulher procurar agradar, mas no jogo pendular do sim e do não, de entrega e de recusa, de ter e não ter. O olhar de frente não representa o traço específico do coquetismo.

O homem, contudo, enxerga esse tipo de relação na sua provisoriedade e prefere se comportar assim a entrar na relação. A dualidade do comportamento coquete não põe em risco a unidade da mulher, porque ela tem consciência da transitoriedade de tal atividade e “não se entrega totalmente na relação”.

No ensaio A cultura feminina, elaborado em 1902, um dos estudos mais debatidos sobre o tema, Georg Simmel argumenta que a cultura não é neutra e estabelece distinção entre cultura masculina e cultura feminina na modernidade. Ele ressalta que, para se referir às condições e às consequências da problemática, ser necessário ter consciência de que a cultura da humanidade não é assexuada, “não reside numa faculdade pura além do homem e da mulher” (Simmel, 1993, p. 70). O autor também menciona que, em relação à cultura, a modernidade “se revela inteiramente masculina, à exceção de raros domínios” (Simmel, 1993, p. 70).

Simmel apoiava as lutas sindicais das mulheres operárias por melhores condições de vida. As diferenciações quanto ao movimento das mulheres de classe média residiam nas lutas pela ascensão à esfera pública, espaço objetivado da cultura. O pensamento simmeliano valoriza a esfera subjetiva como refúgio da individualidade. Com certa ambiguidade, o problema é exposto do seguinte modo:

Tal alternativa, que parece obrigar as mulheres a escolherem entre a preservação de sua natureza própria e o trabalho cultural produtivo, desaparece quando se sabe a que ponto a cultura existente não é neutra e o quanto é modelada, com exceção da economia doméstica, segundo um modo de trabalho unicamente masculino, proporcionando, pois, todo o espaço desejado, se necessário, a outro modo de trabalho que suporia e exprimiria a natureza feminina (Simmel, 1993SIMMEL, Georg. Psicologia do coquetismo. In: _____. Filosofia do amor. São Paulo, Martins Fontes, 93-111. 1993., p. 86).

Criar uma “nuança” ou um “novo continente da cultura” corresponderia à “grande fórmula social do desenvolvimento”. A proposta seria o “novo continente da cultura”, ao aproximar sua visão à do movimento das mulheres. Neste ponto, Simmel sugere um novo paradigma:

Estabelecer, em vez da concorrência entre trabalhos idênticos, uma complementaridade das atividades múltiplas devidas à divisão do trabalho - essa complementaridade parece-me ser também, em si, o benefício próprio que a cultura objetiva pode tirar do movimento das mulheres na época moderna (Simmel, 1993SIMMEL, Georg. Psicologia do coquetismo. In: _____. Filosofia do amor. São Paulo, Martins Fontes, 93-111. 1993., p. 86).

Percebe-se, assim, no autor, ser importante o aspecto da diversidade e o da complementaridade entre as diversas correntes do movimento feminista, na medida em que procura preservar as diferenças. Simmel considera uma ameaça que se estreitem e reduzam as diferenças entre homens e mulheres. O fato diminui um dos “encantos mais profundos” e mais indispensáveis da existência: “É uma das tarefas mais refinadas da vida da alma cultivar ou sentir a existência e a atração das diferenças num fundo de semelhanças consideráveis” (Simmel, 1993, p. 88).

Relativizando suas contribuições à época, o autor defende que o movimento das mulheres deve repousar nas diferenças esperadas, “em um esforço para destacar a especificidade feminina” e menciona que o valor do homem e o da mulher são medidos pelo humano que há em cada um deles. Esta é sua tese central: o humano é “o que mede o valor maior, ou a essência humana” (Simmel, 1993SIMMEL, Georg. Psicologia do coquetismo. In: _____. Filosofia do amor. São Paulo, Martins Fontes, 93-111. 1993., p. 91).

Considerações Finais

Entre os clássicos da Sociologia, Georg Simmel foi o que tratou com mais particularidade o problema feminino. Caracterizou a cultura moderna como inteiramente masculina. Nicole Gabriel, no artigo sobre Georg Simmel, no livro O Gênero nas Ciências Sociais - Releituras críticas de Max Weber a Bruno Latour, prefaciado pelas professoras Lourdes Maria Bandeira e Tânia Mara Campos de Almeida, do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, questiona se Simmel era um homem de seu tempo ou um inovador. Sua resposta, porém, parece não se enquadrar em nenhuma dessas classificações. Nicole Gabriel sugere que Simmel busca uma solução para o mundo moderno ao reafirmar sua crença no ser humano, no ser particular, na existência. Seu destaque está na subjetividade, prevalecente na cultura feminina sobre a cultura masculina. A autora ressalta que:

Eles (os homens) dominam o processo de construção da realidade e a estruturam-na. Os homens definiram o masculino como o humano e asseguraram um lugar inferior ao feminino. G. Simmel, por sua vez, designa o culpado com uma clareza que lhe é habitual. Faltou pouco para que ele usasse a palavra patriarcal. (...) Se qualificarmos de ‘objetivas’ as categorias que se apresentam como absolutas, então a equação: objetivo = masculino está em vigor em nossa espécie (2014, p. 501).

Na Berlim do início do século XX, emergiam o movimento proletário e o movimento burguês, sendo o primeiro próximo da social-democracia e o segundo do partido liberal. Embora apoiasse a social-democracia, Simmel não pertencia à corrente marxista, que romperia com o partido e fundaria o Partido Comunista Alemão. Optou pela tendência reformista da social-democracia, por não crer ser possível uma mudança radical nas sociedades complexas.

Segundo Simmel, a miséria da mulher proletária e o enfraquecimento da mulher burguesa eram efeitos da mesma crise em que o ser humano se encontrava, devido à hipertrofia da técnica e à preponderância das obrigações objetivas. Decerto, o movimento burguês e o movimento proletário não buscavam os mesmos objetivos.

A mulher proletária foi expulsa de seu lar para submeter-se a um trabalho alienado, enquanto a burguesa, que se tornou inútil em seu lar, inclusive pelo desenvolvimento da tecnologia doméstica, procura outras áreas de atividade. Uma solicita uma proteção doméstica contra as condições de trabalho insuportáveis, a outra reivindica leis que lhe trarão novas oportunidades de autorrealização (Gabriel, 2014GABRIEL, Nicole. Georg Simmel, um pensador do gênero entre Caríbdes e Cila. In: CHABAUD-RYCHTER, Danielle et ali. (Orgs.). O Gênero nas Ciências Sociais: releituras críticas de Max Weber a Bruno Latour. São Paulo, Editora Unesp; Brasília, Editora Universidade de Brasília, p. 493-509. 2014., p. 502).

Os dois fenômenos encontram-se entre os casos típicos que constituem o sofrimento da época. Na tentativa de encontrar uma saída para a crise estrutural da sociedade moderna, Simmel reafirma a crença no ser humano que ultrapassa a dimensão do ser mulher e da cultura feminina. Notadamente, ele segue o imperativo kantiano: todo ser humano deve ser considerado um fim e não um meio.

Ao concluir este artigo, A construção do sujeito feminino em Georg Simmel, ressaltamos que nosso objetivo foi redesenhar o processo de construção e o processo de distinção do sujeito feminino, que perpassam as categorias de cultura objetiva e de cultura subjetiva, em Georg Simmel em sua elaboração de uma teoria crítica da modernidade. Procuramos ressaltar, também, sua contribuição nos estudos de cunho culturalista sobre a condição da mulher.

Consideramos que suas contribuições aos estudos sobre o sujeito feminino representam um avanço nas análises sociológicas correlatas às lutas das mulheres. Vale ressaltar que embora engajado nas lutas sociais de seu tempo, o autor não buscava unanimidade.

Sem dúvida, seu olhar particular para a cultura feminina destacava-se na construção do tema da sociologia das diferenças e ressaltou o lugar que o sujeito feminino representa como resistência ao processo de objetivação da cultura, configurada pela dominação masculina e pelo processo de alienação causado pela filosofia do dinheiro. O olhar de Georg Simmel em relação ao sujeito feminino resulta da sua crítica à filosofia do dinheiro, que nega sobretudo a subjetividade.

Essas são questões e dilemas em um cenário comum, quando se discute a condição humana e as diferenças entre os sexos. Como constituir-se como mulher sem perder o universo comum do ser humano? Lebramos da passagem de Simone de Beauvoir em seu livro O segundo sexo, quando ela menciona que “não nasceu mulher, mas se tornou mulher”. Essa é uma questão que indica um cenário de lutas e de afirmação e ampliação dos direitos das mulheres além de representar importante tema da sociologia da cultura sobre o sujeito feminino.

Sem dúvida, a análise inovadora de Georg Simmel do impacto da cultura do dinheiro na diferenciação entre os sexos permanece atual. De acordo com o sociólogo, mulheres não estão imunes à cultura do dinheiro: vendem seus corpos, desenvolvem a arte do coquetismo, simulam e escondem um ser que “desejaria ser amado e valorizado como tal”. Contudo, como pensador de formação kantiana, Simmel também tem no ser humano seu objeto de reflexão, independentemente de ser homem ou mulher.

Georg Lukács, no mencionado Posfácio à memória de Georg Simmel (1918), sugere que Simmel prende-se ao caráter absoluto de cada enunciação, pois as considera necessárias e incondicionais. A priori, Simmel não crê numa tomada de posição ante o mundo, que abraçasse realmente a totalidade da vida. Cada uma oferece só um aspecto, aspecto apriorístico e necessário, porém, um aspecto, não a própria totalidade (SIMMEL, 1993SIMMEL, Georg. Psicologia do coquetismo. In: _____. Filosofia do amor. São Paulo, Martins Fontes, 93-111. 1993.).

O sociólogo Theodor Adorno (1986ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Sociologia. Gabriel Cohn (Organizador). Sociologia. Editora Ática:1986. p. 167-187.) avaliou que Simmel não foi apenas um ensaísta, embora tivesse no ensaio sua forma de expressão escrita. Apenas como ensaísta, poderia perder o valor crítico de sua obra Filosofia do Dinheiro como aspecto superestrutural da modernidade. Essa também é a análise de Jürgen Habermas sobre Simmel, ao considerar a Filosofia do Dinheiro, considerada a obra máxima de Simmel, como uma obra sistêmica.

As reflexões de Simmel, conforme Adorno, fundamentam-se na filosofia do dinheiro e em seus efeitos como traço superestrutural da modernidade. Tal filosofia amarra todos os pontos de sua obra. A teia que os une, inclusive as análises do movimento feminista, procuram preservar a autonomia do sujeito, sua singularidade. A filosofia do dinheiro, como produto da modernidade, tende a anular a subjetividade dos agentes.

Sobre o estilo literário e de exposição de Georg Simmel, nos identificamos com uma referência de Leopoldo Waizbort, especialista nos estudos sobre o pensamento de Simmel no Brasil, quando o sociólogo resume a contribuição e o estilo metodológico simmeliano na sequinte passagem: “Se o tema do ensaio é a cultura por excelência, é possível, e para nós necessário, relacionar diretamente o ensaio com a ideia de uma cultura filosófica e com a filosofia da cultura de Simmel. Não se trata de negar uma tensão entre ensaio e sistematização no pensamento de Georg Simmel, que pode ser rastreada em sua obra” (2013, p. 52).

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  • WANDENBERGHE, Frédéric. (2005). As sociologias de Simmel. Bauru, SP, Edusc; Belém, Edupfa. 223 p.
  • 3
    Cf. Filosofía del dinero. Madrid, Gráficas Gracell, Alcobentas, Madrid, Espana, 2013.
  • 4
    Theodor W. Adorno. O ensaio como forma. Sociologia (Organizador Gabriel Cohn). Editora Ática, 1986. p. 167-187.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2023
  • Aceito
    17 Ago 2023
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