Open-access Sorria, você está sendo filmado: Roubo de cargas e segurança pública

Smile, you are being filmed: Cargo theft and public security

OSTRONOFF, Leonardo José. Não existe almoço grátis. Curitiba: Brazil Publishing, 2021. 268

Resumo

Como resultado de um instigante esforço de investigação, ocorrido de 2017 a 2019, no livro Não existe almoço grátis, Leonardo Ostronoff nos apresenta os meios pelos quais os sistemas de vigilância presentes em supermercados, que observam coisas e pessoas, fornecem pistas analíticas instigantes sobre a dinâmica do roubo de carga no Brasil. Valendo-se de um inventário exaustivo do funcionamento das estratégias de controle de mercadorias em lojas, centros de distribuição e dos meios de transporte, a pesquisa ata os laços da relação entre atores aparentemente desconexos, nomeadamente o estado (polícias), as empresas (segurança privada) e o crime envolvidos no mercado de cargas líticas e ilícitas. É a partir desse lugar, opaco porque borra as circunscrições normativas usualmente atribuídas a esses sujeitos e/ou espaços, que o autor nos convida a refletir sobre as implicações da segurança dita “pública” no Brasil, onde o interesse privado sobrepõe, ou se confunde, com a gestão pública da ordem. O mercado de segurança transforma em ativo o que antes era monopólio do estado, o uso legítimo da violência.

Palavras-chave crime; vídeo vigilância; roubo de cargas; polícia; metodologia

Abstract

As an outcome of an instigating research effort that last three years, from 2017 to 2019, Leonardo Ostronff’s book Não existe almoço grátis [“No such thing as a free lunch”] introduces us to the ways in which video surveillance systems located in supermarkets, which observe things and people, provide challenging analytical clues about the operation of cargo theft in Brazil. Drawing on an exhaustive inventory of surveillance strategies of goods in stores, distribution centers, and transportation, the research ties the relationship between seemingly unconnected actors, namely the state (police), companies (private security), and crime, involved in the market of illicit and licit cargo. It is from this place, difficult to realize because it blurs the normative borders of those categories, that the author invites us to think about the implications of the so-called “public” security in Brazil, where private interest overlaps, or is confused with the public management of order. The security market transforms into an asset what was state´s monopoly, the legitimate use of violence.

Keywords crime; video surveillance; cargo theft; police; methodology

Para resenhar o livro Não existe almoço grátis (2021), escrito por Leonardo Ostronoff, vou propor um argumento ligeiramente distinto do tema principal da obra, que trata das implicações, para trabalhadores e clientes, dos sistemas de vídeo vigilância em hipermercados e do roubo de cargas. Com o pequeno desvio de rota, não me esquivo de apresentar uma leitura crítica do conteúdo, mas quero realçar um aspecto que me parece estar nas entrelinhas e que diz respeito aos usos possíveis de formulações teóricas na pesquisa social. Embora o autor não mire no tema, ao menos não diretamente, proponho que seja o nosso fio condutor nessa resenha. É também uma confissão de leitor; revelo o que mais me provocou no livro, sobretudo pela experiência de ensino da disciplina de métodos de pesquisa na universidade em que trabalho. Sucede que, a cada nova turma, sou desafiado a enfrentar a tentação dos alunos, quando da construção dos seus objetos de estudo e adoção de estratégias metodológicas para responder à pergunta/problema que se colocam, em querer “começar pela teoria”, como eles dizem. Idealmente, vai-se assim do que Bourdieu, Giddens, Marx teriam dito em termos de teoria, sobre algum tema, para a posterior eleição dos problemas empíricos que supostamente podem ser analisados pelo prisma desta ou daquela teoria.

Não raro, as monografias de conclusão de curso e, em menor medida, as dissertações e teses começam pela catalogação da paisagem teórica, o afamado “referencial teórico”, para em seguida, com o pedágio pago, apresentar os achados colhidos na pesquisa empírica. O suposto contido nas entrelinhas desse arranjo é o de evitar que alguém acuse a palidez teórica do trabalho. Já ouvi em bancas, “falta teoria”. Pois bem, em Não existe almoço grátis, Ostronoff oferece munição para arguirmos em desfavor da hipotética superioridade cognitiva da investigação teoricamente orientada. Antes, porém, vejamos como a pesquisa foi feita.

A curiosidade do autor pelos supermercados teve início, como ele alega, em pesquisa anterior cujo foco eram as relações de trabalho nesses ambientes. Oriundo desse domínio do conhecimento, a sociologia do trabalho, o novo projeto, agora em nível de pós-doutorado, mirava na compreensão dos sistemas de vídeo vigilância no setor de varejo, em hipermercados, metáfora mais ampla do que alguns têm como “cultura de controle na sociedade contemporânea” (Deleuze, 1992). Nesse novo investimento, levantou-se como problema de pesquisa a organização da vigilância nos espaços de trabalho. No fundo, havia o anseio em compreender o “vigiar” e o “punir”. Mas a confissão de partido teórico logo sairá do palco em favor das consequências analíticas dos achados colhidos em campo.

No capítulo um, temos o registro de observações etnográficas feitas em três lojas em São Paulo, anonimizadas como “loja A”, “loja B” e “loja C”, em que o autor nos apresenta uma cartografia/imagem do entorno das lojas, sua localização no bairro, a disposição interna e, em meio a isso, o posicionamento/presença das câmeras de vigilância. A descrição minuciosa permite ao leitor, certamente um usuário desses espaços, compreender a ênfase dada a alguns setores da loja na localização das câmeras, a sensação de que não há zona morta imune à vigilância e diferenças mais sutis tais como a presença, ou não, de seguranças uniformizados, a depender do bairro em que a loja está situada. Impedido de, no primeiro momento, ter acesso autorizado às lojas para a realização da pesquisa, Ostronoff se vale do expediente de “consumidor” para adentar e, com isso, observar.

O exotismo inicial que pode suscitar no leitor apressado o interesse pelo tema – afinal, por que fazer pesquisa sobre câmeras de vigilância? – vai se dissipando à medida que se restitui a complexa trama dos sistemas de vigilância modernos em nossas vidas – esse passo é dado já no segundo capítulo. Conquanto ele abra esta seção com alguns esclarecimentos conceituais, como faz lançando mão da afirmação de Latour (2006) sobre os “sistemas sociotécnicos que visam à vigilância e controle dos corpos e comportamentos em espaços fechados das sociedade contemporâneas” (Latour, 2006, apud Ostronoff, 2021, p. 47), ou quando pede auxílio a Foucault (1998) para retomar o conceito de micropoder, é mesmo o campo que mostra ao autor a necessidade de esmiuçar ainda mais as provas empíricas que estava colhendo. No texto, esse movimento será chamado de “deslocamento”, termo que, a meu juízo, deixa escapar a tradução do que ocorreu em termos analíticos. Explico.

O móbil inicial da pesquisa estava na compreensão dos sistemas de vídeo vigilância dos hipermercados e suas implicações para clientes e trabalhadores. Contudo, em uma conversa fortuita, Ostronoff colheu a referência à “prevenção” para designar o setor que administra o Circuito Fechado de TV (CFTV). O sindicalista entrevistado revelou que houve uma mudança significativa nas estratégias de segurança patrimonial, que agora estavam concentradas na “prevenção de perdas”. Assim, os circuitos de vídeo vigilância constituem apenas um aspecto de uma logística mais ampla que tem a ver com o tracking das mercadorias. Era preciso, então, incorporar, não propriamente “deslocar”, outros domínios na pesquisa, inclusive externos aos supermercados. Portanto, “deslocar” tem como sinônimos desarticular, desconjuntar, o que, insisto, não traduz o que estava sendo feito em termos analíticos. O que houve foi a incorporação de outros elos da cadeia de vigilância, dada a urgência em perseguir as mercadorias.

Todo o capítulo dois é dedicado a explorar o sistema de prevenção de perdas, e isso é feito com algumas interferências teóricas, que não deprimem, mas igualmente pouco agregam ao argumento que está sendo trabalhado. Vejamos um exemplo. Foucault aparece mais uma vez como recurso para supostamente explicar a utilização de tecnologias de controle do trabalho, na metáfora mais ampla da “sociedade disciplinar” e do “adestramento dos corpos”. Ostronoff se vale de Deleuze (1992) para dizer que o avanço do capitalismo teria suscitado outras formas de controle não mais baseadas no confinamento em espaços restritos e que agora apresentam um caráter mais difuso, que propala um discurso sobre “participação e criatividade” (p. 61). Mas logo Ostronoff resgata as suas próprias evidências para contrariar tais hipóteses ao arguir que não há uma simetria entre as situações de trabalho para todos os trabalhadores; vai além, uns são mais vigiados que outros. Como vemos, ele deve muito pouco ao referencial teórico mobilizado. Ao contrário, seus achados mostram-se muito mais ricos em termos analíticos.

Aprendemos com isso que o sistema anterior, considerado policialesco, derivado do princípio de monitorar para bem punir, foi gradualmente cedendo lugar para um sistema cujo foco estava na antessala do furto/roubo, donde a importância de vigiar as mercadorias. Mas como isso resvala nas práticas dos trabalhadores? O termo nativo para se referir a uma prática de resistência cotidiana (Scott, 1990) relatada pelos entrevistados é a “degustação”. Ela ocorre quando o funcionário pega algum produto, em geral alimentos, sem autorização. Segundo um entrevistado, “às vezes o cara não leva a garrafa, leva a bebida dentro dele” (p. 74). Embora Ostronoff encontre tais práticas, não extrai maiores consequências em termos analíticos, que poderia mostrar, por exemplo, como as estratégias de controle e prevenção de perdas das mercadorias são negociadas lá na ponta, momento em que são efetivadas. São elos que igualmente criam mecanismos de solidariedade entre os trabalhadores contra o que veem como formas de opressão das gerências. Mas qual gerência?

No esforço por exaurir as evidências empíricas que segue colhendo, o autor percebe que o sistema de vigilância representa, em verdade, um complexo mais amplo que envolve, por sua vez, a polícia e as empresas de segurança. As que têm como mercadoria ofertar segurança no transporte dos produtos. Estes percorrem um longo caminho até chegar à gôndola do hipermercado. A câmera da loja, vê-se, era apenas a ponta do iceberg.

Mas aqui as coisas se complicam um pouco mais. Sim, porque aprendemos com Ostronoff, e nisso ele se alinha a um conjunto mais amplo de pesquisas (Hirata; Grillo, 2019; Misse, 2007; Telles, 2009), que o mercado de segurança privada envolve diferentes atores e práticas obscuras, ambíguas para dizer o mínimo. Nos relatos, o autor nos mostra como a estruturação das políticas de gestão da segurança dos hipermercados teve o auxílio de militares das forças armadas, ex-policiais, a denotar como as ações implementadas irão se valer desse know-how outrora chamado de “policialesco”. Contudo, a implementação das mesmas práticas em espaços normativamente demarcados por princípios mais além dos interesses das empresas borrará as fronteiras que demarcam a separação do interesse público e do privado, em termos de segurança. A malha rodoviária, caminhos pelos quais transitam as mercadorias, é palco onde incidem distintos, nem sempre congruentes, regimes normativos.

Estamos ainda no capítulo dois, não percamos o fio da meada. Por tudo o que foi dito até aqui, é neste momento que Ostronoff colhe a expressão “não existe almoço grátis”, que traduz a relação oficiosa entre, por exemplo, a polícia e as empresas supermercadistas. Vai além, porque inclui igualmente as empresas de seguros de cargas. Nesse momento, quem aparece de assalto, mais uma vez mobilizado pelo autor, é Foucault (2010), para supostamente nos advertir sobre as origens e os efeitos da vigilância e da punição. Apressadamente, o sistema de prevenção de perdas torna-se a ilustração empírica do que Foucault havia dito, uma vez que ele exerce esse poder através dos mecanismos de julgamento soberano nas empresas, deprimindo, como quero arguir, a riqueza analítica da evidência empírica colhida em campo, que transborda, e muito, o que Foucault havia dito sobre o exercício da disciplina que produz comportamentos. Afinal, todos devem saber que estão sendo vigiados. Da página 81 à 102, o leitor é constrangido com a supressão da rica descrição que vinha tecendo o argumento, em favor de uma longa digressão sobre o dispositivo de segurança, o seu efeito panóptico e o controle dos corpos. No entanto, a pesquisa vai muito além do que considero um reducionismo simplista. Felizmente é o próprio autor que nos resgata desse imbróglio teórico em que havia se metido. Com a licença do leitor, recorro a uma longa citação para mostrar o momento em que isso é feito. Lembro, não sentiremos falta de Foucault. Vejamos.

A questão do trabalho e vigilância foi bastante explorada nos dois primeiros anos da pesquisa, mostrando como se desenvolve o controle dos funcionários. Por meio dela é que cheguei até o sistema de prevenção de perdas. Ele permitiu avançar na compreensão da relação entre os espaços de trabalho e os sistemas de vigilância. Encerrar a pesquisa com os resultados dos dois primeiros anos, demonstrando tal relação, cumpriria os objetivos apresentados no projeto inicial. Contudo, seria deixar de lado elementos que o campo também ofereceu e que instigaram uma análise mais cuidadosa. Ao final dos dois primeiros anos de pesquisa, o que poderia ser afirmado pelo trabalho de campo realizado nessa investigação era uma associação entre os supermercados e a polícia, tanto civil e militar, e sobretudo quanto a última pela sua responsabilidade no policiamento ostensivo. A relação com a polícia civil estaria na incorporação das técnicas de investigação dentro das empresas, seria uma relação profissional com indivíduos que ensinariam seu Know-how, o que também se mostrava importante

(Ostronoff, 2021, p. 106).

Segue com o arremate.

O ponto dessa ligação não está no interior das lojas, mas na cadeia de distribuição, especificamente no transporte de cargas entre as empresas fornecedoras e os CDs e destes até as lojas. É nesse momento que ocorrem os roubos que oferecem grandes riscos para as empresas. Dessa maneira, a questão do roubo de cargas se tornou fundamental na minha pesquisa

(Ostronoff, 2021, p. 107).

Insisto, é sobretudo a perseguição exaustiva das provas empíricas que colhe em campo que o conduz à sofisticação da análise.

O roubo de cargas é esmiuçado nos capítulos três e quatro do livro, e o autor opta por interpretá-lo pelo prisma do mercado, ligeiramente distinto da rubrica que entende o fenômeno como crime. Ele acusa a carência de dados sobre o roubo de cargas no Brasil pari passu um certo vácuo na literatura de criminologia que trata do tema. Pela necessidade de dados secundários que permitissem dimensionar a ocorrência e distribuição do fenômeno em São Paulo é que Ostronoff acessa um relatório produzido pela Coordenadoria de Análise e Planejamento, da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (CAP/SSP), que mostrava o crescimento do roubo de cargas no país. As tabelas apresentadas no texto dão prova desse mapeamento, pontuando uma inflexão em 2017, o que coincidia com a intervenção militar ocorrida no Rio de Janeiro no ano seguinte, em 2018. Tal medida havia sido tomada pelo governo federal em face da ameaça de desabastecimento do estado, portanto, o foco estava no combate ao roubo de cargas. As polícias estaduais também foram mobilizadas nesse esforço.

Avançando na análise e retomando a abordagem intensiva, o autor acusa uma fragilidade na produção dos dados secundários que alimentavam as estatísticas, a saber, o que tipifica um “roubo de cargas”? A acepção do sintagma, em sua forma de registro a partir do boletim de ocorrência, pode encampar uma diversidade de casos, e era preciso enfrentar essa aparente imprecisão. Não foi um tropeço; um entrevistado alertou para essa diversidade taxonômica nos modos de nomear o que se considera “roubo de carga”. Um exemplo do livro ajuda a ilustrar. Uma coisa é roubar um caminhão carregado de produtos, outra, bem diferente, é roubar uma mercadoria transportada em um veículo urbano de menor porte que transporta bolos. Outra, um roubo a veículos dos correios é um roubo de cargas? A definição do conceito alimenta estratégias de segurança, precifica seguros e, por via de consequência, o custo das mercadorias. Outros detalhes do preenchimento da ocorrência exercem efeito na apreensão do fenômeno tais como a localização do roubo (se em área urbana e/ou em rodovia), a eventual participação efetiva do motorista no roubo/furto (porque vêm dele as informações prestadas) e, por fim, a precariedade das delegacias.

Inquieto com a debilidade, Ostronoff amplia e dá consequência à hipótese do mercado legal/ilegal. O argumento poderia claudicar caso ele o compreendesse unicamente na chave do crime, e ele nos apresenta bons indícios para tanto. Sendo possível ir além, podemos explorar a participação dos agentes no mercado, a dinâmica das trocas e os modos de regulação, sem o peso do rótulo. Ele confessa a inspiração weberiana, mas permanece, e isso é decisivo, refém dos dados. Voltemos à trama.

Uma conjunção de fatores atua em favor da prática criminosa em termos contábeis/legais: amenidade da pena quando comparado a outros crimes, facilidade de escoamento dos produtos (dificuldade de prisão) e o que se considera “menor status” na métrica dos crimes investigados pela polícia. Sobre esse último ponto, o autor busca refúgio em Durkheim (2002) para nos lembrar que este já havia sentenciado que crimes tais como matar, ferir e roubar têm valências diferentes, sendo os dois primeiros atos imorais por excelência. Em suas palavras, “[c]onsiderando o código penal, fica claro que a noção de Durkheim está presente em nosso país, pois o homicídio possui penas maiores do que roubos e furtos” (Ostronoff, 2021, p. 157). Notem, não há problema em mobilizar/alinhar-se a teorias para arguir em favor ou desfavor de um enunciado, meu ponto aqui é sobre quando, e acredito ser este o caso, transformamos a singularidade dos casos empíricos em uma sorte de caução probatória de tese assumida ex ante. Quando os casos contingentes servem de exemplos eloquentes de enunciados teóricos assumidos como sendo trans-históricos, perde-se o potencial heurístico de modelagens teóricas que não precisam ser blindadas contra a prova das evidências e, no mesmo diapasão, constrange a tese que poderá ser enunciada a partir dos dados. Acaso esta não seria prenhe em teoria?

As explicações de senso comum que vão emergindo nos relatos dos entrevistados revelam um aspecto decisivo na cadeia de funcionamento do roubo de cargas, a figura do “receptador”. Como mostra Ostronoff, entre todos os envolvidos na prática criminosa, a letra da lei é mais branda quando se dirige a ele. Contudo, o receptador é o elo que completa o circuito no mercado das trocas. O livro oferece uma rica descrição das estratégias de roubo e do escoamento das mercadorias. Como figuras de um comércio, a narrativa expõe o processo de especialização de práticas delituosas que operam com extrema racionalidade na contabilidade dos custos e benefícios, o que envolve a facilidade para vender, o risco do rastreamento, o valor da carga, para citar os mais palpitantes.

Mas não nos enganemos. Ostronoff lembra ao leitor que categorias mais englobantes podem esconder a diversidade interna da mesma, o que requer alguma cautela nos modos de se referir e nomear as situações. Para bem ilustrar, voltemos ao “receptador”. Em verdade, a pesquisa encontra modalidades distintas de receptação. Eis que temos o “receptador doméstico”, figura que pulveriza a carga roubada no comércio da região onde ocorreu o roubo; o “receptador empresário”, que são negociantes de maior porte e possuem comércio legal – aqui entram, inclusive, grandes redes de varejo, industriais, a sugerir um segmento VIP entre os receptadores. Como diz um dos entrevistados, a oferta e a demanda atuam nesse mercado. O que explica o roubo de produtos tais como bobina de cobre? Seria impossível escoar uma mercadoria dessa natureza de maneira improvisada entre compradores de pequena escala.

Achados assim desconcertam enquadramentos categoriais prévios que suspendam o traço contingente, contextual. É nessa “zona cinzenta” que os signos por vezes aparecem trocados, quando o “lícito” opera por meio do “ilícito”, quando o “crime” é elo em cadeia do mercado e assume novas roupagens. Não estamos diante, pois, como sustenta o autor, de uma questão de mero planejamento policial. Nesse sentido, não resisto ao relato de um dos entrevistados quando diz,

E são aqueles mesmos empresários que comumente participam de uma associação de classe. Por isso que tem dificuldade. Chefiei a delegacia aqui, a 3ª Delegacia de Patrimônio, delegacia de crimes contra os concessionários públicos, tem muito roubo de cobre, furto de fio. OK. Aí você identificava os receptadores. Quem são os receptadores? É um cara que durante dois anos, ele foi presidente da Associação Brasileira do Cobre, ele é diretor executivo da associação

(entrevistado V., Ostronoff, 2021, p. 182).

Para o nosso desespero, a coisa ainda piora. O crime organizado vê nesse quase-setor de atividade econômica a oportunidade para, no termo êmico, “fazer cash”. Pela mesma lógica de mercado. Acontece que as outras modalidades de crime, notadamente os homicídios, atraem maior atenção das forças policiais, as penalidades e os riscos são maiores, daí porque o roubo de cargas apresenta-se como um greenfield para investimentos. Tudo isso ocorre no momento em que as novas formas de pagamento e circulação de valores monetários foi informatizada, o dinheiro em espécie sofreu drástica redução e as organizações criminosas, como diz um dos entrevistados, “não passam cartão de crédito”.

Chegamos ao último capítulo do livro, eis a intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro. Ostronoff percebeu que a maior incidência de roubo de cargas em 2017 e a ameaça de desabastecimento do Rio de Janeiro, com o agravante dos problemas políticos que o estado vinha passando, suscitaram a imediata ação do governo federal com o objetivo de restaurar a ordem, e isso foi feito por meio do Decreto n. 9.288, de fevereiro de 2018, que explicitamente menciona o risco de desabastecimento. Naquela ocasião, as atividades de segurança pública passaram a ser geridas pelas forças armadas. Mas aqui um problema que já havia aparecido anteriormente torna-se mais evidente, qual seja, o ofuscamento dos interesses públicos e privados na gestão da segurança – desculpem a redundância – pública. Como isso ocorre?

Estaria além do meu alcance neste espaço retomar a fértil contribuição da literatura que já colocou na mesa o modo como “mercadorias políticas” são negociadas no Rio de Janeiro,1 mas não somente lá, através da nebulosa relação entre milícias, crime organizado e forças de segurança. Fiquemos com Ostronoff, que também reúne provas na mesma direção para questionar o monopólio estatal da segurança quando há uma zona cinzenta onde atuam polícia e empresas privadas no combate ao roubo de cargas. Nas palavras de um coronel entrevistado,

Aí, qual é o papel da polícia nessa parceria? Então você é gerenciador de risco, ou sei lá, dono de uma transportadora e se faz uso aí de uma determinada ferramenta, detectou ali um sinistro, ou uma situação crítica, você compartilha a informação conosco. Eu tenho uma equipe aqui, de pronta resposta, que ela vai atender, ela vai investigar o caso. Então, – oh, aqui no meu painel aqui há um suposto desvio de carga.

– Onde?

– Zona Leste.

– Quem é a equipe do dia aí? Você destaca a equipe do dia, ela vai averiguar. E assim a gente tem conseguido recuperar a carga, recuperar o caminhão roubado, veículo roubado

(entrevistado, Ostronoff, 2021, p. 225).

A gestão do interesse público em benefício privado inverte a ordem de prioridade; empresas, seguradoras e forças de segurança transformam em balcão de negócios a segurança dita “pública”.

Ao puxar o fio do novelo dos sistemas de vídeo vigilância da rede mercadista, Ostronoff expõe à luz a intrincada trama da segurança de mercadorias, cujo esteio é o sistema de “prevenção de perdas”, ao fazê-lo, reúne evidências que lhe permitem lançar poderosas injunções explicativas sobre o fenômeno do roubo de cargas. Parece-me acima da dúvida razoável o valor cognitivo do conjunto de observações e dados produzidos/colhidos pelo autor no “inventário exaustivo das variáveis contextuais”, como propõe Gusmão (2012), que se mostram causalmente relevantes na explicação das consequências dos sistemas de vigilância modernos, nesse caso, para a gestão da segurança pública no Brasil. Não quero com isso jogar às traças o conhecimento teoricamente orientado, mas advogar em favor do valor cognitivo (não seria igualmente “teórico”?) das explicações bottom up, ou seja, do relato etnográfico contingente e contextual.

Termino dizendo que qualquer leitor minimamente competente em língua portuguesa conseguirá compreender as conexões lógicas – de considerável alcance teórico – produzidas pela pesquisa de Ostronoff. Inquietante? Notemos a módica bibliografia citada que, em sua maioria, e acertadamente, faz referência a estudos da mesma natureza. À jusante e à montante, o “não existe almoço grátis”, em alusão ao título da obra, é a metáfora do senso comum que mimetiza os significados da zona cinzenta da gestão da segurança pública no Brasil. Boa leitura!

Referências

  • 1DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. São Paulo: Editora 34, 1992.
  • 2 DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  • 3 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
  • 4 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
  • 5 GUSMÃO, Luís de. O fetichismo do conceito: limites do conhecimento teórico na investigação social. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.
  • 6 HIRATA, Daniel V.; GRILLO, Carolina C. Roubos, proteção patrimonial e letalidade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2019.
  • 7 LATOUR, Bruno. Changer de societé refaire de la sociologie. Paris: La Découvert, 2006.
  • 8 MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. Estudos Avançados, v. 21, n. 61, p. 139–157, dez. 2007. https://doi.org/10.1590/S0103-40142007000300010
    » https://doi.org/10.1590/S0103-40142007000300010
  • 9 MISSE, Michel. Trocas ilícitas e mercadorias políticas: para uma interpretação de trocas ilícitas e moralmente reprováveis cuja persistência e abrangência no Brasil nos causam incômodos também teóricos. Anuário Antropológico, n. v.35 n.2, p. 89–107, 1 dez. 2010. https://doi.org/10.4000/aa.916
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  • 10 OSTRONOFF, Leonardo J. Não existe almoço grátis Curitiba: Brazil Publishing, 2021.
  • 11 SCOTT, James C. Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts New Haven: Yale University Press, 1990.
  • 12 TELLES, Vera da S. Ilegalismos urbanos e a cidade. Novos Estudos - CEBRAP, n. 84, p. 153–173, 2009. https://doi.org/10.1590/S0101-33002009000200009
    » https://doi.org/10.1590/S0101-33002009000200009

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2022
  • Aceito
    06 Fev 2023
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