Open-access Um caso raro: O moço loiro e a formação do acervo comum do romance brasileiro

A Rare Case: O moço loiro and the Formation of Brazilian Literary Repertoire

Resumo:

Este artigo tem por objetivo repensar o lugar que O moço loiro, segundo livro de Joaquim Manuel de Macedo, publicado em 1845, tem na constituição de um acervo comum do romance brasileiro. Defende-se que o romance sentimental (também chamado de romance urbano ou romântico) se estrutura a partir de uma clivagem geracional. De um lado estão os jovens, que agem segundo os valores dos novos tempos; do outro, os velhos, mais sensatos e desconfiados dessa nova ética. Ao contrário dos demais romances de Macedo, em que o polo da velhice assume a direção moral das narrativas em seus momentos de crise, O moço loiro termina em chave liberal. Argumenta-se que essa inflexão progressista, por assim dizer, não tem mais condições de possibilidade em contexto de restauração conservadora como é o do Brasil da segunda metade da década de 1840.

Palavras-chave: Joaquim Manuel de Macedo; Forma literária; Conservadorismo

Abstract:

This essay proposes to reestablish the place Joaquim Manuel de Macedo’s second book, O moço loiro, published in 1845, occupies within the formation of Brazilian literary repertoire. The structure of this sentimental novel (also known as urban or romantic novel) is based on a generational divide. On the one hand, youngsters act according to the values of a new time; on the other, elders, who see themselves as more reasonable, distrust this new behavior. Unlike other novels by Macedo, in which the older side of the spectrum assumes the moral responsibility of the narrative in its climax, O moço loiro pushes a more liberal perspective. This progressive shift, so to speak, however, cannot be sustained in the context of a conservative restauration as is the case of Brazil during the second half of 1840s’.

Keywords: Joaquim Manuel de Macedo; Literary form; Conservatism

1.

Comecemos com uma citação de O moço loiro, segundo romance de Joaquim Manuel de Macedo, publicado em 1845, um ano depois de sua estreia com A more­ninha:

Nas palavras de Emma estava derramado todo o fel da mais acerba ironia.

- Não minha, mãe, respondeu o filho; trabalharei noite e dia por minha filha; irei ser um humilde caixeiro, um simples escrevente de cartório, o que primeiro puder ser enfim; mas trabalharei sempre, e muito... dormirei menos duas horas... vestir-me-ei mal... serei capaz de pedir uma esmola; mas quando trouxer a Honorina o pão comprado com o suor do meu rosto, eu exultarei, minha mãe; porque no meu coração estarei dizendo a mim mesmo - ao menos não sacrifiquei-a!

- Sim! sim! sim! exclamou a velha despeitada; e quando d’aqui a um ano, a dois, ou três pagares o tributo de tua vida, tu a deixarás no mundo só, miserável, nua, faminta, com um pé na miséria e o outro na desonra; mas do fundo do sepulcro teus ossos estarão dizendo: ao menos não sacrifiquei-a...

- Minha mãe! é uma impiedade estar assim redobrando meus tormentos!...

- É que tu estás cavando um abismo debaixo dos pés de tua filha! (Macedo, s. d. [1845], v. II, p. 156-157, grifos meus)1

Antes de proceder com o comentário, trago logo uma outra citação, desta vez extraída de Rosa, romance de 1849:

- Quando eu bradava contra essa licença que chamais civilização, acusavam-me de carrança; quando eu clamava que a boa educação vale dez vezes mais do que a mesma instrução sem ela, e um milhão de vezes mais do que duas dúzias de modinhas e lundus, cinquenta palavras francesas, que se trazem de cor, e as quadrilhas, polcas e valsas, que resumem tudo quanto julgais bastante para fazer o em que vossas cabeças se chama - uma menina instruída - diziam-me que eu estava ainda com as ideias do século passado; pois muito bem! aí está o fruto!

- Mano, eu estou desesperado, e você redobra os meus tormentos.

[...]

- De uma menina com boa índole e excelentes disposições, este pai que não soube ser pai, fez cabeça de vento, uma doudinha! (Macedo, s. d. [1849], v. II, p. 39-40, grifo meu)

Estamos, em ambos os romances, num momento de crise no enredo, que envolve, nesse tipo de narrativa sentimental, a honra de uma moça inocente e, consequentemente, de toda sua família. As conversas se desenrolam entre os pais das meninas e outro membro familiar, igualmente velho, Ema, a mãe de Hugo em O moço loiro, e Anastácio, irmão de Maurício em Rosa. Vale notar ainda o tom incriminatório que ambos lançam sobre os pais das moças, que, de uma forma ou de outra, são responsabilizados pela situação em que a família se encontra. Há até mesmo uma frase que se repete quase que literalmente, devidamente destacada em ambas as passagens.

Se ficarmos apenas nas semelhanças, que de fato existem, estaremos fadados a repetir um lugar comum da fortuna crítica que cerca a obra de Macedo, a de que ele é um autor sem muitos recursos, desprovido de criatividade, que teria encontrado uma fórmula narrativa, repetida ad aeternum.2 A bem da verdade, esse juízo de valor não é inteiramente falso. Macedo é mesmo um autor de pouquíssimos recursos. Contudo, se não descermos aos detalhes, não seremos capazes de perceber que, a despeito das semelhanças, as passagens citadas têm dimensões ideológicas inteiramente distintas. Enquanto, em O moço loiro, a balança pende para Hugo, que encarna certas características modernas, em Rosa, será Anastácio, um velho um tanto desconfiado das novidades que invadem a Corte, quem funcionará como norte moral.

Defenderei neste artigo que está exatamente nessa mudança, ocorrida entre 1845 e 1849, a qual ainda resta detalhar, o achado formal que funciona como a pedra fundamental do acervo comum do romance sentimental brasileiro, isto é, o conjunto de temas, situações narrativas, tipo sociais etc., que tratarão de dar conta da nossa experiência social. E, de quebra, quem sabe, repensar o processo de acumulação literária, recolocando noutros termos o “sistema local de problemas e contradições” (Schwarz, 1999, p. 20) com que os primeiros romancistas brasileiros tiveram que lidar. Dos dois romances citados, deterei atenção quase que exclusivamente em O moço loiro, por uma simples razão: todo o problema do romance está na tensão instaurada entre Ema e Hugo, o núcleo ideológico da narrativa, a qual será corrigida por Macedo nas obras seguintes, o que lhe permitirá encontrar a forma ideal para dar conta, ao mesmo tempo, das novidades modernizantes e de seus limites impostos pelo arraigado conservadorismo nacional.

2.

Tudo mudou. Os meninos deixaram de aprender a rezar para ler periódicos e discutir presumidos direitos do homem; os operários abandonaram suas fábricas para cuidar em eleições; a plebe imunda e perigosa agitou-se radiosa e triunfante em todas as nações.

A peste chegou até ao Brasil.

[...]

E pois não se falou mais aqui senão em liberdade, câmaras, deputados, e constituição... (Macedo, s. d. [1845], v. I, p. 101)

Essas palavras são de Ema, que assume a narração do romance por uma boa dezena de páginas. Deixado de lado o narrador tradicional do romance sentimental, com suas preocupações próprias, trata-se agora de colocar sua neta, Honorina, a protagonista feminina do romance, a par dos infortúnios da família, o que faz de um ponto de vista particular e interessado. Como se vê pela citação, os problemas não têm dimensão local; eles se estendem no tempo e no espaço. “A Queda” acontece sob o signo de um dos eventos fundacionais da modernidade, a Revolução Francesa, toda ela condensada em seu desdobramento napoleônico, que pôs de ponta-cabeça a ordem natural do mundo. Segundo essa clivagem, Ema se apresenta de maneira orgulhosa e despudoramente reacionária. Toda sua visão de mundo está assentada numa ordem anterior ao evento constitutivo da modernidade.

A simples menção a Napoleão - “monstro” cuja “espada terrível” espalhou “impiedade” por toda a Europa (ibidem, v. I, p. 99) - não é apenas uma maneira de dar ares de contemporaneidade ao romance. Em 1845, a figura de Napoleão já fazia parte do repertório cultural do país, inclusive com sentido ideológico formalizado. Alguns artistas vinculados à Missão Francesa, grandes responsáveis pela iconografia e pela cenografia do teatro da Independência, vieram para o Brasil após a queda de Napoleão, de quem eram partidários (Grinberg, 2014). Vagner Camilo (2013) localiza em um poema de Natividade Saldanha, escrito sob o impacto da morte do ex-Imperador de França, isso em 1821, mas publicado apenas no ano seguinte, o possível início do ciclo positivo da figuração napoleônica. Se nesse ponto, estritamente cronológico, Camilo se distancia de Hélio Lopes (1997), para quem Napoleão passa a ser interpretado de maneira favorável apenas uma década depois, com Gonçalves de Magalhães, há uma aproximação de fundo, que me interessa mais de perto. Todos esses intelectuais - Saldanha, Magalhães, Macedo - estiveram ligados ao esforço de consolidação política e simbólica da nação recentemente emancipada, processo sobre o qual a figura de Napoleão teve papel fundamental. Foi como resultado de sua expansão militar que a família real se instalou no país, retirando-o do obscurantismo ao qual estava submetido sob a estrutura colonial. Não é de se admirar que, de acordo com essa perspectiva, Caio Prado Jr. (2012) retroceda alguns anos a data da independência, localizando-a em 1808, quando da mudança da sede da monarquia. Em suma, a figuração positiva de Napoleão estaria em linha com o processo de emancipação nacional, além de conectar a nossa história à da Europa.

Contudo, para que não se perca de vista o funcionamento real do sentimento de atualização brasileiro, vale notar não apenas que essa valoração da figura de Napoleão ocorre após sua morte, como sua formalização não se dá nos termos do arrivista sem berço que remodelou o mundo pela força da sua vontade; se dá, isso sim, pela tópica do “homem caído” (Camilo, 2013, p. 22). Macedo, por sua vez, se apresenta Napoleão em seu movimento expansionista, no que inova em relação à tradição, o faz através do olhar negativo de uma velha reacionária. Das duas, uma: estando o norte moral do romance no passadismo de Ema, essa figuração é apenas mais uma das maneiras de travamento da ideologia burguesa em sua fase heroica; ou, ao contrário, a ladainha teria a finalidade de deslegitimar a própria Ema e seu reacionarismo. Noutras palavras, O moço loiro vai tensionando, pelo uso de uma figura histórica já devidamente incorporada ao caldo cultural de uma poesia brasileira, o antagonismo entre, de um lado, uma dimensão mais liberal e, de outro, uma visão de mundo pré-moderna.

No plano da narrativa, esse antagonismo se repõe na figura do neto de Ema, Lauro, o moço loiro do título. A exemplo de Napoleão, que desmantelou a velha ordem política europeia, o rapaz é o responsável pelo desmantelamento da paz doméstica, uma vez que teria roubado uma cruz sagrada, legado de gerações e talismã familiar que garantia a prosperidade da casa. Segundo Ema, seu neto, um “cabeça de louco”, um “coração de serpente” (Macedo, s. d. [1845], v. I, p. 102), não tem respeito por nada. Opunha-se obstinadamente ao que lhe era ensinado, em casa ou na escola. Era inclusive desrespeitoso, porque, se ouvia algo que julgava ultrapassado, ria na cara dos mestres, sem qualquer pudor. Fazia o mesmo com as “nobres crenças” da avó, que ele chamava pelo nome: “prejuízo dos séculos de escravidão - ignorância” (ibidem, v. I, p. 103). Uma vez que nem a escola nem a família eram capazes de suprir sua curiosidade intelectual, tendo em vista o atraso do que pregavam, sua educação se dava na praça pública, na Câmara dos Deputados, onde ouvia os discursos mais exaltados, que fazia questão de memorizar. Ou seja, o protagonista incorpora tudo o que a aristocrática senhora mais abomina. O moço loiro se estrutura, portanto, sobre uma tensão entre duas temporalidades, uma mais moderna, ilustrada, crítica à tradição; outra passadista, abertamente reacionária, que despreza toda a linguagem política liberal.

O romance, contudo, não entrega o que promete, no que, por sinal, está em linha com o liberalismo brasileiro. O enfrentamento entre neto e avó, entre essas duas temporalidades, nunca ocorre de fato - mas é exatamente aí, nesse problema formal, que reside o interesse do romance. Todas as categorias desse novo mundo (os discursos inflamados na Câmara, o descaso com a boa tradição, a existência de uma constituição etc.) existem apenas em sua superficialidade, um vínculo efêmero e sem função narrativa do romance com os grandes temas contemporâneos. Mais ainda: quando o protagonista, que havia sido expulso de casa por causa da acusação do roubo, reaparece na história, seu arco narrativo segue em duas direções distintas, mas complementares. Uma diz respeito ao desejo de provar sua inocência e ser readmitido no seio da família, de cujas ideias tanto caçoou. A outra é sentimental: a mulher por quem se apaixona é Honorina, sua prima, e o desfecho feliz de ambos é mais um ponto da reestruturação dos laços familiares. O romance que promete antagonizar neto e avó - e, nesse sentido, as respectivas visões de mundo que incorporam - se desenvolve noutra chave, contrária a essa, mais de acordo com o conservadorismo nacional, que é a da recomposição da família patriarcal, outrora ameaçada por certos arroubos modernizantes. Do mesmo modo que o imaginário conservador brasileiro recupera a figura de Napoleão Bonaparte de maneira rebaixada, o acervo comum do romance nacional se fará sob o signo de uma extravagância juvenil desprovida de uma dimensão política que ponha em risco a ordem familiar e a efetivação do vocabulário liberal.

3.

A estrutura de O moço loiro, organizada ao redor de uma demarcação temporal entre um antes e um depois, este visto sob o signo da queda, é, em linhas gerais, o grande achado, o princípio formal dos romances que Macedo escreve entre 1844, quando estreia, e 1853, ano em que publica Vicentina. Seu romance seguinte, O culto ao dever, aparecerá apenas em 1865 e em muito pouco lembrará suas obras de juventude.3 Há, nesse meio tempo, uma narrativa inacabada, A carteira do meu tio, de 1855, que, embora funcione de acordo com outra convenção, a satírica, também guarda vestígios daquela estrutura temporal: “Eu........”, principia seu narrador, único em primeira pessoa até então, arrematando em seguida: “Bravo! bem começado! com razão se diz que - pelo dedo se conhece o gigante! - Principiei tratando logo da minha pessoa; e o mais é que dei no vinte; porque a regra da época ensina que - cada um trate de si antes de tudo e de todos” (Macedo, 1855, p. 1, grifos meus).

Como me parece importante enfatizar que essa divisão geracional estrutura a primeira fase da obra de Macedo como um todo, configurando um achado formal com certa eficácia, abro um breve desvio na linha argumentativa. Em A moreninha, além do “cordão sanitário” (ibidem, s. d. [1844], p. 143), que separa os velhos dos jovens nos folguedos que dominam o enredo do romance, temos o puxão de orelha que D. Ana, uma boa senhora4 e a anfitriã da festa, dá em Augusto, o protagonista afeito a volubilidades quando o assunto é relacionamento, um comportamento nada cristão, típico da nova juventude, que coloca em suspenso “o sossego das famílias” (ibidem, p. 68). Mais ousados ainda são os demais jovens do romance, moços e moças que se comportam segundo “a teoria do amor do [...] tempo” (ibidem, p. 43), que é rebaixada, amoral, estes sim um tanto mais degenerados e sem recuperação. Rosa, de 1849, retoma e amplia a dinâmica de A moreninha. Aqui o velho Anastácio anda desconfiado das “luzes do século” (ibidem, s. d. [1849], v. I, p. 14), que, sem o devido filtro, desvirtuam a educação dos jovens, das moças principalmente, com sérias implicações para o futuro do país. Também aqui é o grupo de jovens que se move ao redor do casal principal, que assume essa postura de maneira aberta. Faustino, além de planejar casamento de acordo com o dote das mulheres, ainda se faz passar por um periodista conservador ou liberal segundo a conveniência do momento, gabando-se de ser um “representante da época” (ibidem, v. I, p. 216). Embora essa estrutura seja típica dos romances urbanos, cujo cenário é visto como degradado, corrompido por uma moral libertina, ela persiste mesmo em Vicentina, uma narrativa ambientada distante da Corte. Nesse livro, contudo, já se começam a ver sinais de seu esgotamento. Seu personagem central, o jovem Américo, sofre de um problema análogo ao de Lauro. Embora seja descrito por todos como um extravagante, possivelmente uma das características mais comuns dos protagonistas dos romances e peças macedianos, ele é apático, agindo pouco ao longo da narrativa.5 Contudo, ainda temos aqui o defensor da ordem, que se coloca contra a moral de quem age com excessiva civilidade e, portanto, é incapaz de impedir a entrada do mal na própria casa. A título de conclusão desse desvio, note-se que quem assume a voz narrativa em A carteira de meu tio, vangloriando-se de agir segundo a “regra da época”, nada mais são do que os personagens secundários dos demais romances, aqueles que levavam às últimas consequências os desmandos do novo tempo. Se é para fazer a crítica da falta de juízo do tempo, nada melhor do que dar a palavra para os tipos mais irresponsáveis, um procedimento ao qual Machado retornará em 1880, em suas Memórias póstumas de Brás Cubas. Em resumo, ao longo dessa década, que vai de meados de 1840 a 1855, em que se constitui o romance nacional, estar em dia com o espírito do tempo significa, na melhor das hipóteses, ser visto com desconfiança por aqueles elementos que representam o norte moral da obra, seja o próprio narrador, seja um personagem que incorpore o bom senso (como é o caso das figuras de autoridade descritas), que é para usar uma expressão cara ao conservadorismo brasileiro da primeira metade do século XIX.

Mas um corte geracional não implica necessariamente uma ruptura com a velha ordem. No caso de Macedo, na verdade, isso nunca ocorre. Há desconfiança de uma parte, a passadista, e pilhéria de outra, a mais jovem, a qual, por sinal, parece não respeitar muita coisa. Os primeiros romances de Macedo, portanto, dão forma a uma percepção social da classe senhorial que não sabia lidar com o conjunto de mudanças por que vinha passando o país ao longo do século XIX, que Gilberto Freyre (2006) vai chamar de “re-europeização”, um lento processo de deslegitimação do patriarcado rural.6 “É vasta e lamentável, sem dúvida, nossa má-criação. Onde existe mais aquele respeito sumo que os filhos tributavam a seus pais? [...] Hoje, que fedelho há aí de dez e onze anos que não diga chalaças, que não zombeteie nas barbas de seu pai?” (Gama, 1996, p. 350). Escrita em 1840, apenas 5 anos, portanto, antes de O moço loiro, essa crônica do padre Lopes Gama expressa os mesmos agastamentos de Ema que vimos há pouco.

O sentido ideológico das narrativas, de quase todas que comentamos (a exceção é exatamente O moço loiro), privilegia o ponto de vista dos velhos em detrimento dos jovens, mesmo o dos protagonistas, que, ao fim e ao cabo, precisam ser trazidos para o universo da ordem, fora do qual não há possibilidade de concretização do enredo sentimental. E é bem nesse ponto que reside a grande encruzilhada ideológica com que a forma do romance brasileiro vai ter que lidar, a peça fundamental do seu acervo comum. Por um lado, a incorporação das novidades europeias (os bailes, a moda, o próprio romance etc.) é condição sine qua non para que nos vejamos em dia com o conjunto das nações ditas civilizadas;7 por outro lado, a contradição interna desse processo é que ele desorganiza as formas de vida - e de mando - tradicionais. Note-se como a própria dinâmica sentimental é parte constitutiva dessa desestruturação:

As meninas da sua parte também vão-se adestrando no espírito de insubordinação. Dona Adelina já arrebita o narizinho, já trombeja quando a repreendem, e na presença de seus progenitores canta com todo desembaraço:

Um pai não pode privar A filha de querer bem, Se as leis dos pais são sagradas, As de amor mais força têm.

Que belo! Que menina espirituosa! Todos a denominam uma jovem sentimental, e com grande aptidão para filósofa. (Gama, 1996, p. 351)8

A ironia de Lopes Gama marca a desconfiança patriarcal com as categorias liberal-românticas, desconfiança que está presente nos romances de Macedo, embora de maneira requalificada. Margareth Cohen, que estudou detalhadamente o gênero sentimental, aponta como este está atravessado por uma dupla moralidade, que rege as escolhas das personagens. De um lado, o bem-estar coletivo; do outro, a liberdade individual. Embora nenhum desses dois termos seja desprovido de tensões internas, ambos estão atravessados por uma perspectiva já ilustrada da vida. Em resumo, “[a]o opor a liberdade individual ao bem-estar coletivo, o romance sentimental lida com uma tensão fundamental que fratura o pensamento político liberal francês desde sua gênese no Iluminismo” (Cohen, 1999, p. 42), que é saber como integrar essas duas dimensões sem que uma se sobreponha à outra.

O problema posto ao romance brasileiro, se não é o mesmo, é análogo. Os nossos romances urbanos, sentimentais em sua grande maioria, isso para não dizer todos, estão assentados na premissa, moderna por excelência, de que a escolha do par amoroso é exclusivamente individual, não podendo ser coagida por nenhuma força externa, no que, se faz coro ao ideário moderno, está deslocada em relação à experiência nacional, marcada pelo autoritarismo patriarcal, identificado com o bem-estar coletivo. Quando a coação é regida pela lógica dos cálculos materiais, que alguns fazem com os dotes das moças, o romance não encontra problema algum em deslegitimá-lo, pois vai ao encontro das convenções românticas; quando a coerção é familiar, a coisa muda de figura, porque o controle do matrimônio, assunto sério demais para deixar a cargo dos jovens, faz parte constitutiva do repertório senhorial. A solução de Macedo, bastante engenhosa, guarda ares conciliatórios e vai constituir seu grande legado para o acervo comum do gênero romanesco no país. (A contribuição machadiana para o “aperfeiçoamento do paternalismo”, de que trata Schwarz [2000, p. 117], é um aprofundamento dessa descoberta.) Falo em “ares de conciliação”, porque ela é mais autoritária do que aparenta à primeira vista. Como o desfecho é sempre feliz, ou seja, os jovens se casam com os escolhidos do coração, parece haver uma concessão feita à dimensão moderna do enredo sentimental. Esse desfecho, contudo, não é conquistado, mas autorizado de cima - “[...] ainda não disse a última palavra sobre esse casamento, e a última palavra hei de dizê-la eu” (Macedo, s. d. [1853], v. II, p. 126) na expressão de uma dessas figuras de autoridade -, o que não deixa de implicar a manutenção da prerrogativa senhorial, nada moderna, que faz do casamento uma das atribuições do mando tradicional.

Em 1845, contudo, essa solução ainda não estava inteiramente clara.

4.

No plano da composição, do conflito, O moço loiro nos coloca numa posição inusitada - uma avaliação, naturalmente, que só pode ser feita desde um ponto de vista avançado no tempo. Um dos choques antecipados, que se promete, mas não se cumpre, está organizado em torno do moço liberal, de ideias modernas, injustamente condenado, e sua avó, que vive segundo os valores doutros tempos, pré-modernos e autoritários. Depois de uma série de reviravoltas tipicamente românticas - que envolvem chantagem, falsificação de letras de câmbio, revelações bombásticas e o que mais se possa imaginar -, chegamos ao seguinte ponto de tensão: Hugo havia sido enganado por seu guarda-livros, Félix, o verdadeiro ladrão da cruz da família, e agora sua casa comercial se via endividada, fruto de “negociações proibidas, e perigosas” (Macedo, s. d. [1845], v. II, p. 108) do tempo do pai, as quais, vale dizer, como homem iluminado que é, ele havia mandado pôr fim. O dinheiro era devido a Otávio, jovem ambicioso e apaixonado por Honorina, que, conhecedor do pecado de Félix, o chantageou a adulterar as promissórias. Pois bem, a tensão que se forma gira ao redor da família, que se vê à beira da falência, a menos que se cumpra a exigência de Otávio: a dívida seria perdoada em troca da mão de Honorina.

Tendo em vista o momento de crise, o passo seguinte da narrativa é ainda mais incomum. Como apontado, com a morte do pai e do irmão, homens de velha cepa - “do século passado, que chegara[m] até o nosso com todas as ideias firmes e inabaláveis” (ibidem, v. I, p. 50) -, Hugo assume o posto de chefe de família, responsável pela direção moral de todos os incapazes (jovens, mulheres, agregados, escravos etc.).9 Cabe a ele, portanto, ocupar o núcleo duro da autoridade senhorial, decidindo, pela posição privilegiada que herdou, aquilo que julga melhor para o bem-estar de todos. Sua caracterização literária, contudo, o distancia do mandonismo, tão convenientemente exercido por seu pai e irmão: Hugo “era, posto que às vezes timidamente, um representante da nova época: o primeiro que de sua família abandonara os antigos hábitos, e velhas ideias [...], [em] contraste de sua mãe; pois pensava, falava e vestia-se segundo a ordem do dia” (ibidem, v. I, p. 65). Assim, no momento de tensão, ao invés de centralizar, como manda a ideologia senhorial, uma decisão de tal importância para o futuro não só da filha, como para a honra da própria família, delega a responsabilidade para a moça, que passa a ter “toda a liberdade de responder” como melhor lhe aprouver, sendo sua palavra “terminante e livre” (ibidem, v. II, p. 116).

Embora um tanto disparatada, cheia de vaivéns típicos de um enredo folhetinesco, a situação está em dia com um momento turbulento da história nacional, às voltas com o fim do tráfico de escravos. A Macedo, porém, falta a capacidade de dar-lhe uma dimensão analítica mais rigorosa. Os elementos da história nacional recente são elencados de maneira pontual, sem cumprir propósito maior na composição da narrativa. Nesse sentido, o vínculo com o país é superficial, mera notação que dá um quê de cor local a O moço loiro. Contudo, seu vínculo mais profundo com um processo social brasileiro, apreendido segundo uma determinada ansiedade de classe, não está aí, mas na formalização de certo autoritarismo, que se vislumbra nas disputas referentes ao casamento da moça: de um lado, a imposição do casamento por Ema (em linha com patriarcalismo nacional, mas atrasado se comparado ao mundo civilizado a que se aspira); do outro, o liberalismo romântico de Hugo (respeitoso da autonomia individual, mas não apenas sem qualquer vínculo com as práticas locais, como ainda visto de maneira apreensiva pelos detentores do mando). Noutras palavras, em conjunto com certo uso frívolo de elementos que indicariam os laços do romance com a história moderna do país, há toda uma outra dimensão, mais importante para a organização da narrativa, que não deixa de ser ela mesma igualmente contemporânea, ainda que estruturada segundo outros termos: até onde o desejo de participar da forma prestigiosa do momento pode se dar ao luxo de pôr em cena a autonomia individual frente à ingerência externa?

O romance, como veremos, não chega ao ponto de permitir que uma decisão de tal monta seja levada a cabo por uma mocinha inexperiente, no que respeita o arbítrio de quem manda. Ainda assim, a julgar pela maneira como essa mesma situação narrativa será reformalizada nos romances seguintes, ela parece ter se mostrado, em O moço loiro, equivocada. De certa maneira, como já havia sido insinuado em A moreninha, o momento de crise se torna o ponto de inflexão do enredo. É a hora em que a autoridade tradicional, pouco afeita à vida da corte e por isso mesmo mais capaz de lidar com os desmandos que aparecem como consequência de uma forma de vida desregrada, interfere de maneira contundente no andamento do enredo. Pode-se inclusive dizer que será essa a dinâmica estruturante do romance brasileiro, ao menos até a década de 1870, que se desenvolve em contexto de restauração e hegemonia conservadora. Em Rosa, publicado quatro anos depois de O moço loiro, esse paradigma já está completamente reformulado e dando a direção formal a ser seguida pelo acervo comum do romance nacional.

Se o leitor prestar atenção, demos uma volta completa e retornamos às citações que abrem este artigo. Não só Rosa, nossa protagonista inconsequente, reconhece que, quando deixada só, é incapaz de tomar decisões corretas, como Anastácio não poupa palavras para estabelecer o grau de responsabilidade do pai, Maurício, que, a exemplo de Hugo, é um homem de verniz mais modernizante. Contudo, agora, ao contrário do que ocorre em O moço loiro, é Anastácio - “herdeiro das carunchosas ideias do século passado” (Macedo, s. d. [1849], v. I, p. 14) - e não mais Maurício, mais afeito à dinâmica desses novos tempos,10 quem ocupa a posição moralmente privilegiada da estrutura da narrativa. Por outra, o acervo comum do romance brasileiro, como o do europeu, se faz através de um jogo de tentativas e erros, em que soluções formais para os problemas postos pela matéria bruta da experiência vão sendo testados, trabalhados e, quando for o caso, descartados como ineficientes. Nesse sentido, O moço loiro ocupa um lugar especial dentro desse processo de consolidação de um repertório nacional, porque a tensão ideológica que cria não se repete mais, isto é, não é incorporada à convenção do gênero, não ao menos segundo aquela configuração específica, em que o elemento moderno da narrativa tem mais peso para tomar as rédeas da situação.

5.

Grosso modo, e resumindo o que foi dito, uma dimensão moderna e outra arcaica se encontram e se confrontam na estrutura dos primeiros romances de Macedo.11 Essas duas dimensões possuem raízes vinculadas ao processo social brasileiro. Ema é uma matrona portuguesa, exilada no país, onde enriquece às custas do tráfico negreiro e do poder mágico da cruz da família, uma união que dá o que pensar. E como se não bastassem as forças históricas que desorganizaram a velha ordem europeia, agora ela as vê chegando ao Brasil, até bem pouco ainda resguardado pelo altar e pelo trono do ímpeto deletério dos caprichos modernos. Do outro lado estão Hugo e Lauro, adeptos dos novos tempos, o que implica dizer que não só se colocam na contramão dos interesses materiais da família, a cujo comércio puseram fim, como também são liberais e constitucionalistas, talvez ainda ateus. Não é forçar a nota dizer que os elementos de que Macedo se vale para construir suas personagens se inscrevem sob a lógica de uma cultura política que se consolida após a revolução de 1820, em Portugal. De feições liberais, gestadas com as revoluções de finais do século XVIII, a ênfase dessa cultura política recai na liberdade, que se torna o conceito norteador de todo um novo sistema de valores, cujo grande inimigo, o seu outro, é o despotismo, a besta-fera da época. Segundo um panfleto citado por Lucia Maria Neves (2003, p. 121), o Manual político do cidadão constitucional, despótico é todo governo no qual o “soberano [tinha] autoridade ilimitada, e [podia] ao seu arbítrio dispor sem a mínima responsabilidade da vida, dos bens e honra dos seus escravos”. Mesmo nunca tendo sido radical, o liberalismo português de 1820 e sua extensão brasileira deixam pouco espaço para que o conceito de despotismo (assim como seus satélites semânticos, como tirania, arbítrio etc.) pudesse ser usado de maneira positiva no imaginário local, ainda que isso configurasse uma clara contradição com o funcionamento real do mandonismo senhorial sem muitas peias. Mas como esse caldo liberal, por mais ralo que seja, alimentará o discurso emancipatório nacional, ele ganha certa tração. Em síntese, num dos seus momentos de tensão, o livro contrapõe dois pontos de vista, duas temporalidades, privilegiando, no embate, o liberal sobre o reacionário.

Contudo, se havia espaço para um uso moderno, ou funcionalmente moderno, da retórica liberal no período da emancipação política, entre a década de 1820 e a de 1840, quando Macedo começa a sua produção ficcional, muita água passa por debaixo da ponte, inviabilizando o sentido progressista da conciliação proposta ao final de O moço loiro. Como já pontuei, seguindo as deixas de Lucia Maria Neves, a revolução de 1820, em Portugal, foi fundamental para que o vocabulário das Luzes ganhasse terreno na arena pública, pendendo a cultura política, por lá e por aqui, para o lado liberal da balança. Essa dinâmica se mantém ainda após a independência, especialmente frente a certos arroubos autoritários de Pedro I, como a dissolução da Constituinte. Nesse sentido, pode-se dizer que há, entre 1822 e 1831, um recrudescimento da retórica liberal. Foi, primeiro, diante da inclinação recolonialista das Cortes de Lisboa e, depois, dos arbítrios do Imperador, que os tropos emancipatórios do liberalismo ganharam impulso real, ainda que classista, vale sempre lembrar (cf. Losurdo, 2006; Bosi, 1992). Não é por menos que, tendo em vista esse esquema perceptual, o ano da abdicação do trono tenha sido experienciado como o ponto final de um poder que era exercido de maneira tirânica por uma força externa, o que abriria espaço para a liberdade efetiva da nação. Segundo Mattos (2009), o período que vai de 1831 a 1848 é vivido como um experimento revolucionário, que se faz sobre as cinzas da velha ordem. Em suas memórias, Francisco de Paula Resende (1988, p. 53) escreve:

nasci e me criei no tempo da regência; [...] nesse tempo o Brasil vivia, por assim dizer, muito mais na praça pública do que mesmo no lar doméstico; ou, em outros termos, vivia em uma atmosfera tão essencialmente política que o menino, que em casa muito depressa aprendia a falar liberdade e pátria, quando ia para a escola, apenas sabia soletrar a doutrina cristã, começava logo a ler e aprender a constituição política do império.

Excetuando-se que também em casa Lauro era submetido à doutrina do altar, essa passagem poderia muito bem caracterizar seu período formativo.

O que essas breves reflexões extraliterárias buscam apontar não é a dinâmica ascensional da retórica liberal, mas sua inflexão diante do assalto conservador, que tem início já no decênio de 1830. Com a abdicação de Pedro I, a aliança entre os grupos moderados e exaltados do campo liberal se desfaz. Os exaltados, alijados do poder, pressionam os moderados, muito mais pragmáticos, pela radicalização das reformas. Embora o cenário aponte ainda para a persistência da hegemonia liberal, que se movimenta no sentido de descentralizar o poder da coroa, tornando-o mais local, a disputa pelo controle do campo retórico muda de figura: “Se para os moderados a revolta seria expressão da anarquia na luta contra a ordem, para os exaltados seria a manifestação da liberdade no embate contra o despotismo” (Basile, 2007, p. 53, grifos no original).

O conjunto de revoltas do período regencial parece levar água para o moinho dos moderados, o que imprimirá, nos anos subsequentes, um conteúdo inteiramente diverso aos tropos liberais. Segundo Jeffrey Needell (2006, p. 61), já em meados da década de 1830 a percepção do corpo dirigente da nação é a de que o Estado estava excessivamente fraco para conter as rebeliões que punham à prova sua unidade. Não é de se estranhar, portanto, que, já em 1837, os liberais de outrora fundem o Partido Conservador, também conhecido por Partido da Ordem, cuja finalidade era desfazer as reformas descentralizadoras, responsáveis pelo estado anárquico que, segundo eles, o país vivia.

No período que Ilmar Mattos (1987) chama de regresso conservador, o tempo saquarema, o esforço se dá no sentido de requalificar a noção de liberdade, que, se havia cumprido sua função ao cimentar ideologicamente a independência política, precisava agora ser resguardada das demandas dos grupos subalternos para quem a emancipação ainda era uma ilusão. Para os novos autodeclarados conservadores, uma liberdade pensada sem o devido respeito à autoridade subverte o seu propósito e se transforma em anarquia.12 Caberá exatamente ao romance sentimental brasileiro, de que Joaquim Manuel de Macedo é o pai, formalizar, através dos enredos amorosos com sua metáfora de autonomia individual na livre escolha do parceiro amoroso, essa inflexão conservadora, reduzindo a pecha reacionária de uma personagem tão central para o enredo como é a figura de autoridade em O moço loiro.

Outra comparação entre os romances nos dará uma boa ideia de como essa reorganização se dá no interior da forma romanesca, tornando-se constitutiva do acervo comum do gênero. Ainda no início de O moço loiro, Ema se propõe a contar à neta sua versão dos fatos, algo que sabe incomodar o filho. Este, contudo, sequer pestaneja: “Pois bem, minha mãe [...] eu me vou, para deixá-la em completa liberdade: Honorina fará justiça a seu pai” (Macedo, s. d. [1845], v. I, p. 99). Do mesmo modo, quando se consolida o clímax sentimental do romance, e o futuro da família passa a depender do casamento da moça, retoma a postura mais moderna: “quero, que ela tome uma resolução definitiva, sim; mas quero também, que o faça livremente: trata-se da felicidade ou da desgraça da sua vida, e já que a seu pai não é dado ler no futuro, faça-se ela feliz ou desgraçada por suas próprias mãos” (ibidem, v. II, p. 157).

Essa nota moderna, segundo a qual cada um é dono do seu próprio destino, já não goza de prestígio em contexto de restauração conservadora, à qual não faltam boas doses de autoritarismo. Agora, em meados de 1840, a postura de Hugo, que poderia ter valor positivo no decênio anterior, passa a ser lida noutro sentido, de fraqueza, incapaz que é de exercer o monopólio da responsabilidade. Será o próprio Macedo quem tratará de reorganizar a economia moral da forma. Deixada a cargo dos incapazes, conceito jurídico que regula a autoridade do senhor sobre os demais membros da comunidade, o resultado é sempre perigoso:

Mauricio fraco e indulgente, em lugar de armar-se de sua autoridade de pai para tomar contas ao coração da sua filha e aconselhá-la ou repreendê-la, conforme o caso o pedisse, calava-se, e contentando-se com uma observação inerte e infrutuosa deixava que Rosa se avizinhasse cada vez mais do abismo fatal, a que pretendia loucamente arrojar-se. (Macedo, s. d. [1849], v. II, p. 24-25)13

Em 1845, quando O moço loiro é lançado, a retórica conservadora, que restabelece o princípio da autoridade sobre a liberdade (ou, por outra, para a qual não existe liberdade sem autoridade), já está em vias de consolidar sua hegemonia. Christian Lynch (2010) localiza o auge da ideologia saquarema durante o gabinete do marquês de Monte Alverne, que assumiu em 1849. Ilmar Mattos (2009) nota como, já nesse ano, o 7 de abril de 1831, que figurara como uma das datas mais importantes do calendário festivo do Império, foi lançado na lata do lixo da história. Mas isso não significa que O moço loiro possua uma estrutura anacrônica. Ou, por outra, não é essa a razão, porque a conciliação de fundo liberal não entra para o acervo comum do romance brasileiro, de que Macedo, a despeito do lugar que ocupa na historiografia nacional, é seu primeiro e principal artífice. A Revolução Praieira é um bom exemplo de que ainda há resquícios de uma retórica que busca levar a cabo certas demandas incompletas da independência (Cf. Schiavinatto [2008]; Marzon [2009]). O mais importante nesse processo de reorganização conservadora, de que o romance sentimental urbano será a forma simbólica, é a manutenção de certo sentido de progresso, ainda que o faça sob uma égide conservadora. Não é tanto o protagonista que está equivocado em sua adesão às ideias do século. Essa será, ainda que com modificações (como, por exemplo, o apagamento das referências políticas explícitas), a dinâmica dos seus personagens centrais. É outro elemento do enredo, ainda que periférico, que precisa ser reestruturado.

A grande correção de rumo recairá sobre o tipo encarnado por Ema, o polo de contestação dos desmandos modernos. Afirmar, como o faz com acerto Needell (2006, p. 5), que a elite política brasileira abandonou o barco do “potencial mais democrático do liberalismo da era 1822-1834” não significa a adesão a uma retórica restauradora. Ao contrário da Europa, onde o reacionarismo aberto de um Bonaldi e De Maitre gozou de certo prestígio nos breves momentos de restauração da velha ordem, no Brasil essa postura nunca teve muita entrada. Não apenas as Luzes, por aqui, foram menos radicais (Neves, 2003), como encarar a reação significa apontar para uma possível recolonização do país, o que não estava em pauta (Lynch, 2008). No plano da narrativa, isso quer dizer que um tipo como Ema, para quem o mundo era melhor antes da entrada em cena de Napoleão, o monstro que subverteu a ordem natural das coisas, acaba cedendo lugar ao pragmatismo conservador de um Anastácio: “Tenho assim meu receio delas [das luzes do século] [...], porque sinto que vão queimando, com muita cousa má, muita cousa boa” (Macedo, s. d. [1849], v. I, p. 14). Fazer parte do concerto das nações civilizadas implica adotar um conjunto considerável de preceitos liberais, que não vão bem com a ideologia senhorial. O regresso conservador não vai negá-los abertamente, à la Ema; vai submetê-los ao crivo da experiência nacional, cuja finalidade é a de manter a ordem. Nas palavras do marquês de Caravelas, que poderiam ser as de Anastácio, “Não queremos pôr peias, mas também não queremos uma total liberdade” (apud Lynch, 2010, p. 29).

6.

O acervo comum do romance brasileiro, aquele conjunto de temas, personagens, enredos, seus problemas e soluções, não se desenvolve apenas em relação ao influxo externo - pelo menos até a entrada em cena de Machado de Assis, que teria dado o devido peso às coisas; ele ocorre também segundo uma lógica interna, em contato direto com o processo social ao qual atribui sentido. Se nos fechamos numa dimensão em que o descompasso entre forma literária e processo social dá as cartas, perdemos de vista a encenação, muito nossa, de algo caro a uma ideologia em processo de consolidação de uma hegemonia conservadora: até onde vai a autonomia individual, cuja metáfora central será a da escolha do par amoroso, bem típica dos enredos sentimentais dos romances urbanos? Ao enterrar, em O moço loiro, uma conciliação que se dá em termos mais liberais (isto é, pela deslegitimação do polo reacionário, incorporado na personagem de Ema), Macedo formaliza aquela que será a pedra de toque da visão de mundo saquarema: não há possibilidade de manutenção da ordem sem a presença de uma autoridade que se curve às demandas dos novos tempos, a começar no que diz respeito ao casamento e à constituição da família, unidade mais importante da ordem social do Império.

Referências

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  • SERRA, Tânia Rebelo Costa. Joaquim Manuel de Macedo ou os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional: Dep. Nacional 1994
  • 1
    Dos romances do século XIX, a caligrafia foi atualizada; a pontuação, por sua vez, permanece como no original.
  • 2
    Tania Serra (1994, p. 42) chama, não sem razão, esse paradigma de “ótico romero-veríssima”.
  • 3
    Para Tania Serra (1994, p. 126), “a rigor ela [essa obra, O culto ao dever] é o divisor de águas: antes dela vem a primeira fase; depois, começa a segunda”.
  • 4
    Pode-se inclusive argumentar que a caracterização da personagem de D. Ana comporta um problema de composição dos mais interessantes. Logo no começo do romance, Felipe descreve a avó como “a velha mais patusca do Rio de Janeiro” (MACEDO, s. d. [1844], p. 4). Contudo, no decorrer do enredo, ela se comporta mais como uma senhora da boa sociedade, ciente das suas obrigações, como é o caso da reprimenda ao comportamento de Augusto. É como se ela incorporasse os dois lados da figura de autoridade - um mais liberal; outro conservador -, que serão desmembrados posteriormente. Moretti (2013, p. 74, grifo no original) nos ajuda a pensar esse problema de composição: “uma importante característica da história literária pensada em termos darwinistas” é a seguinte: “em tempos de mudança morfológica, [...] o escritor se comporta exatamente como o gênero como um todo: tentativamente. Durante uma mudança de paradigma, ninguém sabe o que vai funcionar ou não; [...] ele vai adiante por tentativa e erro”.
  • 5
    Vale a pena ressaltar que essa apatia é uma característica que Américo compartilha com outro protagonista de Macedo, Cândido. Avanço na tese de doutorado (de que este artigo é um recorte, acrescido de dados coletados ao longo das pesquisas posteriores) que essa apatia está ligada a um “problema” que os dois partilham: a orfandade, um tipo social visto com maus olhos numa sociedade familista.
  • 6
    Lidando dentro desse mesmo paradigma sociológico, cf. ainda El Far (2014) e França (1999).
  • 7
    É importante frisar que essa é uma modernidade que não se manifesta, salvo pontualmente (outra raridade de O moço loiro), no plano político, econômico ou técnico; é toda ela indicada pelas danças, roupas e costumes, uma espécie de modernidade rebaixada, de salão, muito bem ironizada por Gama (1996, p. 372): “MR. PIRUETA - Decerto, as quadrilhas e o vapor são duas potências, que têm mudado a face do mundo. Que insípida, que desagradável, que triste não seria a sociedade, se não fossem as divinas quadrilhas. // DONA MARIPOSA - De que seria a vida sem as quadrilhas? O que fora da nossa civilização, o que foram os nossos direitos e garantias, se não existissem os bailes?”.
  • 8
    Compare-se essa passagem com outra, de Macedo (1863, p. 76), para se ter ideia da sua penetração cultural: “MARIA - Minha mãe, pode fazer o que quiser, menos obrigar sua filha a casar contra a vontade, no tempo da Constituição. //GALATÉA - Oh! grandissíssima não sei que diga! pois tu já sabes de Constituição?...”.
  • 9
    “O sexo, a idade, a moléstia e outros impedimentos inabilitam certas pessoas para o exercício próprio ou direto da soberania; mas estas ficam sujeitas como a família a seu chefe ou representante civil” (ALENCAR, 1868, p. 80).
  • 10
    É sintomático que, ao contrário de Hugo, Maurício já não seja mais descrito como abertamente moderno. Quando muito, há, no início do romance, a descrição do vestuário dos “três respeitáveis senhores” que discutiam as demandas financeiras de Rosa para comprar vestido novo para o baile que se aproximava. A roupa de Maurício, embora apresente características modernas, se distancia tanto da de Sancho, um velho ridículo, que recusa a idade e, com isso, é rebaixado na economia moral do romance, quanto da de Anastácio, mais sério e discreto (cf. MACEDO, s. d. [1849], p. 6-9).
  • 11
    É bom deixar registrado o caráter rebaixado desse embate. A parte moderna, que preza pela autenticidade do sentimento do sujeito, ainda depende da autorização paterna. Para ser efetivamente radical, a autorrealização individual não poderia ser constrangida por nenhuma instância. Salvo engano, eu só conheço exemplo dessa postura ao longo da literatura brasileira oitocentista: em Juiz de paz na roça, de Martins Pena, Aninha e José fogem e se casam contra a vontade do pai da moça.
  • 12
    Segundo José Murilo de Carvalho (1999, p. 9), ainda não se pôde comprovar a autenticidade da frase de Bernardo Pereira Vasconcelos que define, como poucas, essa preocupação: “Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas ideias práticas; o poder era tudo: fui liberal. Como então quis, quero hoje servi-la [a sociedade], quero salvá-la, e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono a causa que defendi, no dia do seu perigo, de sua fraqueza: deixo-a no dia em que tão seguro é o seu triunfo que até o excesso a compromete. [...] Os perigos da sociedade variam, o vento das tempestades nem sempre é o mesmo: como há de o político, cego e imutável, servir seu país?”.
  • 13
    Depois de feita a besteira, Rosa volta ao tema ao explicar ao tio sua atitude: “Fiquei completamente louca, e completamente decidida ao horrível sacrifício; meu pai acabava de deixar a sala; eu estava só... sem amparo... sem autoridade sobre mim... a paixão cegava-me... não vi nada... não vi ninguém... meu tio, esqueci-me do meu pudor, ou supitei-o e tive forças para dizer em alta voz, e diante de todos que aceitava [se casar com o ridículo comendador Sancho]” (MACEDO, s. d. [1849], v. II, p. 105-106).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2018
  • Aceito
    01 Ago 2018
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