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MOMENTOS CRÍTICOS NA PRÁXIS DE PROFESSORES DE LÍNGUAS: A CRITICIDADE NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DOCENTE

CRITICAL MOMENTS IN THE PRAXIS OF LANGUAGE TEACHERS: CRITICALITY IN THE CONSTRUCTION OF TEACHER IDENTITY

Resumo

Neste artigo, expomos parte da pesquisa realizada pelo Grupo de Pesquisa Formação de Professores de Línguas-UFPR. O objetivo da pesquisa é analisar, por meio de narrativas, de que forma momentos críticos na práxis de professores de línguas impactam na construção de suas identidades docentes. Formulamos um conceito amplo de momento crítico, após apresentarmos os termos e entendimentos mais comuns encontrados na área de formação docente. A pesquisa ressalta o papel das narrativas na recuperação e construção de tais momentos, conforme Johnson e Golombek (2016)JOHNSON, Karen. E.; GOLOMBEK, Paula. R. (2016). Mindful L2 teacher education: a sociocultural perspective on cultivating teachers’ professional development. Routledge.. Adotamos uma metodologia qualitativa, interpretando narrativas geradas a partir de um grupo focal. Selecionamos as narrativas de dois participantes. As questões levantadas por essas narrativas demonstram a importância de espaços na formação de professores de línguas para a (re)construção compartilhada de momentos críticos e a compreensão de suas identidades docentes visando melhores práticas a atitudes pedagógicas.

Palavras-chave:
momentos críticos; formação de professores; narrativas

Abstract

In this article, we present part of the research carried out by the Grupo de Pesquisa Formação de Professores de Línguas - UFPR (Language Teacher Education Research Group at UFPR). The research aims to analyze, through narratives, how critical moments in the praxis of language teachers impact the construction of their identities. We formulate a broad concept of critical moments, after presenting the most common terms and understandings found in the area of teacher education. The research highlights the role of narratives in the recovery and construction of such moments, according to Johnson and Golombek (2016)JOHNSON, Karen. E.; GOLOMBEK, Paula. R. (2016). Mindful L2 teacher education: a sociocultural perspective on cultivating teachers’ professional development. Routledge.. We adopted a qualitative methodology by interpreting narratives constructed from a focus group. We selected the narratives of two participants. The issues raised by these narratives highlight the importance of building spaces in language teacher education for shared (re)construction of critical moments and the understanding of their identities as teachers aiming at better pedagogical practices and attitudes.

Keywords:
critical moments; teacher education; narratives

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo apresentar um recorte de uma pesquisa desenvolvida pelo grupo de pesquisa Formação de Professores de Línguas (GPFPL-UFPR) sobre a importância de momentos críticos na práxis docente e sua relação com a constituição da sua identidade1 1 Adotamos o entendimento pós-estruturalista que concebe as identidades como construções complexas, multifacetadas, e em permanente desenvolvimento. Conforme Block (2014, p. 32), “[o]s cientistas sociais conceituam as identidades como narrativas em constante desenvolvimento, autoconscientes e socialmente construídas, que os indivíduos desempenham, interpretam e projetam por meio do vestuário, movimentos corporais, ações e linguagem. A construção da identidade ocorre na companhia de outros - seja pessoalmente ou de forma eletronicamente mediada - com os quais, em diferentes graus, os indivíduos compartilham crenças, motivações, valores, atividades e práticas. As identidades envolvem a negociação de novas posições subjetivas no cruzamento entre passado, presente e futuro. Os indivíduos são moldados por suas histórias sociais, mas também moldam essas histórias sociais ao longo da vida. Todo o processo é conflituoso, ao invés de harmonioso, e os indivíduos frequentemente se sentem ambivalentes. Existem relações de poder em torno dos diferentes tipos de capital - econômico, cultural e social - que facilitam ou impedem as interações.” (tradução nossa). . Diversos autores já abordaram esta questão com perspectivas relativamente semelhantes -- momentos críticos (PENNYCOOK, 2004PENNYCOOK, Alastair. (2004). Critical moments in a TESOL praxicum. In: NORTON, B.; TOOHEY, K. (Ed.). Critical Pedagogies and Language Learning. Cambridge: CUP, p. 327-345.), incidentes críticos (TRIPP, 1993/2012TRIPP, David. (2012). Critical Incidents in Teaching: developing professional judgment. Routledge. (Originalmente publicado em 1993).), ou eventos críticos (WOODS, 1993/2012WOODS, Peter. (2012). Critical events in teaching & learning. Routledge. (Originalmente publicado em 1993).), referindo-se a situações ou eventos que tiveram grande impacto na formação e atuação do professor. Tais momentos abrem novas perspectivas e confrontam representações de mundo, possibilitando novas construções de sentido e de realidade. Pennycook (2004)PENNYCOOK, Alastair. (2004). Critical moments in a TESOL praxicum. In: NORTON, B.; TOOHEY, K. (Ed.). Critical Pedagogies and Language Learning. Cambridge: CUP, p. 327-345. também relaciona os momentos críticos a situações que permitem problematizar questões de sala de aula em uma perspectiva crítica, de prática problematizadora.

Tais momentos externalizados por meio de narrativas de professores em formação inicial ou continuada, compartilhados coletivamente, contribuem para sua formação profissional na medida em que se apresentam como espaços para ressignificação de experiências vividas (JOHNSON; GOLOMBEK, 2016JOHNSON, Karen. E.; GOLOMBEK, Paula. R. (2016). Mindful L2 teacher education: a sociocultural perspective on cultivating teachers’ professional development. Routledge.; COCHRAN-SMITH, 2012COCHRAN-SMITH, Marilyn. (2012). A tale of two teachers: learning to teach over time. Kappa Delta Pi Record, 48(3), 108-122.). Em uma perspectiva sociocultural de base vigotskiana, narrativas funcionam como instrumentos mediadores (JOHNSON; GOLOMBEK, 2016JOHNSON, Karen. E.; GOLOMBEK, Paula. R. (2016). Mindful L2 teacher education: a sociocultural perspective on cultivating teachers’ professional development. Routledge.) que possibilitam aos professores a ressignificação de suas experiências de vida em relação às suas emoções, subjetividades e identidades.

Neste texto analisamos dois momentos críticos (re)vividos por dois professores (Pablo e Maria)2 2 Nomes fictícios para proteger a identidade dos participantes. , em épocas e contextos diferentes entre si, mas que possibilitaram reflexões e transformações em suas práxis. Os eventos narrados por Pablo e Maria contribuíram para que pudessem compreender, reorganizar, e ressignificar suas experiências. O fato dessas experiências narradas terem sido compartilhadas com outros professores foi fundamental para que tais vivências adquirissem novos contornos e refratassem outros entendimentos de realidades. Acontecimentos que poderiam ter ficado no esquecimento ganham nova vida e passam a ser vistos de forma produtiva, trazendo novos entendimentos a tais experiências e a quem e como são enquanto docentes.

1. A PESQUISA

Entre o segundo semestre de 2018 e o primeiro semestre de 2019 desenvolvemos uma pesquisa de natureza qualitativa interpretativista. Pode ser caracterizada, mais especificamente, como uma pesquisa narrativa, com base em Johnson e Golombek (2011)JOHNSON, Karen E.; GOLOMBEK, Paula R. (2011). The transformative power of narrative in second language teacher education. Tesol Quarterly, 45(3), 486-509.. Estas autoras vêem a participação em atividades de contar histórias como uma forma de investigação, estimulando processos mentais e emocionais, e funcionando como uma ferramenta para o desenvolvimento profissional de professores. Narrar algo, como uma atividade cultural, molda a forma como entendemos o que estamos contando. O ato de contar ou recontar uma experiência, seja falando ou escrevendo, envolve uma mistura complexa de descrever, explicar, analisar, interpretar e representar nossa realidade pessoal à medida que é compartilhada com outras pessoas. Dentro da metodologia da investigação narrativa, “os métodos mais comuns são entrevistas e conversas, ou entrevistas conduzidas como conversas” (CLANDININ; CAINE, 2008CLANDININ, D. Jean. (2014). CAINE, Vera. Narrative inquiry. In: GIVEN, Lisa M. (Ed.). The Sage encyclopedia of qualitative research methods. Sage publications, 2008, p. 541-544., p.542).

Nossa pesquisa envolveu dez membros do GPFPL-UFPR, tratados como um grupo focal (GONDIM, 2002GONDIM, Sônia Maria Guedes. (2002). Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos. Paidéia (Ribeirão Preto), 12, 149-161.; KRUEGER, 2014KRUEGER, Richard A. (2014). Focus groups: a practical guide for applied research. Sage Publications.)3 3 As entrevistas, gravadas em áudio em vários dias, eram individuais, mas com a presença de todos os participantes da pesquisa. Eventualmente, os demais participantes faziam alguma pergunta não estruturada e a narrativa era expandida. . As perguntas que nortearam as dinâmicas das entrevistas no grupo foram as seguintes: a) Faça um breve histórico profissional; como se tornou professor de línguas; o que é ser um professor de línguas no seu contexto? b) Você trabalha em uma perspectiva crítica? Em que momento de sua trajetória você se percebeu crítico? c) Como é sua perspectiva? Em que medida “ser crítico” foi mudando (ou não)? d) Você vê o ensino crítico como transformador? Em que sentido? e) Que momento crítico teve relevância para sua formação como professor/a? De que forma tal momento crítico impactou sua identidade profissional? f) Comente alguns possíveis desenvolvimentos em estudos sobre uma perspectiva crítica de ensino de línguas e/ou formação de professores de línguas; g) Como a criticidade pode ser trabalhada na formação inicial de professores? A partir dessas perguntas, nos indagamos sobre o que é ser crítico, se o professor se via como crítico, e se houve alguma situação (momento crítico) que tenha tido impacto na nossa atuação e formação docente. A interpretação dos dados gerados permitiu levantar quando, na trajetória profissional, tais momentos ocorreram, como foram avaliados pelo professor e que conceitos de crítico estavam sendo construídos naqueles momentos. Apontamos a partir desse quadro os pontos convergentes e os divergentes, buscando contribuir para a compreensão da criticidade, a partir da práxis docente, como elemento constituinte da identidade dos professores de línguas. Neste recorte da pesquisa, selecionamos apenas as perguntas em negrito (questão norteadora “e”), e os dados gerados a partir delas. As respostas a essas perguntas permitem considerar exemplos do que pode ser considerado um momento crítico e de que como podem ser narrados e problematizados.

Neste recorte da pesquisa, focamos nos relatos de dois professores: a escolha de Pablo e Maria como participantes-chave para a presente pesquisa é fundamentada em suas trajetórias profissionais distintas, que oferecem uma rica variedade de perspectivas sobre a criticidade na prática docente. Pablo, com sua experiência significativa na área de língua inglesa em universidades públicas desde 2005, traz uma abordagem que se destaca pela longa reflexão sobre sua prática. Sua capacidade de revisitar e examinar criticamente os momentos selecionados ao longo de um extenso período oferece uma visão aprofundada do processo de conceituação de criticidade, contribuindo assim para uma compreensão mais abrangente e aprofundada do tema. Por outro lado, a escolha de Maria, que atua em um curso de Letras Libras, complementa o panorama ao introduzir uma perspectiva mais recente e um forte componente emocional em sua narrativa. Ao destacar momentos críticos mais recentes em sua trajetória, Maria oferece uma visão recente e dinâmica sobre os desafios enfrentados no contexto educacional. A ênfase no aspecto emocional de sua reflexão adiciona uma camada de complexidade à compreensão dos desdobramentos pedagógicos desses momentos críticos. Assim, a combinação desses dois perfis de professores enriquece a pesquisa, proporcionando uma gama de experiências e reflexões sobre a criticidade na prática docente e na construção identitária docente. Essa é a questão central que dá oportunidade para o relato de momentos que foram construídos como críticos pelos professores, com as consequentes mudanças que trouxeram para suas práxis.4 4 No decorrer das entrevistas, a pergunta sobre o momento em que os professores se perceberam críticos, na segunda parte da questão (b), por vezes levava diretamente à reflexão proposta pela questão (e).

2. MOMENTOS CRÍTICOS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Diversos autores tratam do tema de momentos, eventos, ou incidentes críticos na formação docente, ainda que com perspectivas um pouco distintas entre si. O termo “incidente crítico” é usado por Richards e Farrell para referir-se a “um evento não planejado ou previsto, que ocorre durante uma aula, e que serve como gatilho para novos insights ou aspectos relacionados ao ensino ou aprendizagem” (RICHARDS; FARREL, 2005, p. 113). Tripp utiliza o mesmo termo com sentido semelhante, ao definir um incidente crítico como “algum evento ou situação que marcou um momento de virada significante na vida de uma pessoa ou uma instituição’’ (TRIPP, 1993/2012TRIPP, David. (2012). Critical Incidents in Teaching: developing professional judgment. Routledge. (Originalmente publicado em 1993)., p. 24).

Já Woods analisa o que chama de “eventos críticos”, de mais longa duração, que “se situam entre um incidente crítico e períodos em uma carreira profissional”, “são programas integrados e focados de atividades formativas que podem durar de semanas até mais de um ano” (WOODS, 1993/2012WOODS, Peter. (2012). Critical events in teaching & learning. Routledge. (Originalmente publicado em 1993)., p. 2). Embora possa haver elementos imprevisíveis em tais eventos, são até certo ponto controlados e planejados, com objetivos específicos de desenvolvimento profissional. O foco está mais no potencial transformador de tais eventos, do que na contingencialidade de incidentes aparentemente furtivos, casuais, quase imperceptíveis.

Pennycook fala em “momentos críticos” para referir-se a situações de sala de aula (na formação docente) com potencial problematizador. Para ele, um momento crítico é

um ponto significativo, um instante quando as coisas mudam. Parece-me que na observação de um estagiário, e, pensando mais amplamente, no nosso ensino de forma geral, isso é o que buscamos -- esses momentos críticos quando agarramos a oportunidade de fazer algo diferente, quando percebemos que um novo entendimento está ocorrendo (...) em que algo muda, quando alguém “entende”, quando alguém joga um comentário que modifica o discurso. (PENNYCOOK, 2004PENNYCOOK, Alastair. (2004). Critical moments in a TESOL praxicum. In: NORTON, B.; TOOHEY, K. (Ed.). Critical Pedagogies and Language Learning. Cambridge: CUP, p. 327-345., p. 330).

Um momento crítico, nessa perspectiva, é uma oportunidade para uma prática problematizadora com potencial reflexivo, uma possibilidade de desestabilização das crenças e pressupostos que os professores em formação carregam consigo, uma possibilidade de ampliação ou mudança de entendimento da realidade, de transformação de sua práxis. Os autores citados acima concordam que momentos ou incidentes não são críticos por si só, por serem de natureza crítica. Tais situações se tornam críticas por meio de reflexão e análise, por meio de nossas percepções e pela forma como as enxergamos. Do contrário, seriam apenas situações quaisquer, que pouco ou nenhum impacto teriam em nossas vidas.

A partir desses entendimentos de momentos, incidentes ou eventos críticos, chegamos ao nosso próprio entendimento de “momentos críticos”. Para nós, trata-se de um conflito que ocorre na nossa prática de ensino, como resultado do confronto de diferentes representações, que desencadeia novas percepções em nossas identidades como professores. O momento se torna crítico por meio de nossa percepção de como tal momento desafia nossos pressupostos e impacta nossas identidades e práxis docente.

Abaixo, apresentamos um quadro síntese com as definições discutidas até o momento (a versão em inglês encontra-se no Apêndice 1).

Definição Como se torna crítico Incidente crítico(Richards; Farrell, 2005) [...] evento não planejado ou previsto, que ocorre durante uma aula, e que serve como gatilho para novos insights ou aspectos relacionados ao ensino ou aprendizagem (p. 113) À primeira vista, esses incidentes podem parecer insignificantes ao invés de críticos, mas tornam-se críticos quando são colocados sob revisão e análise. (114) Incidente crítico (Tripp, 1993/2012) O termo ‘incidente crítico’ vem da história onde ele se refere a algum evento ou situação que marcou um momento de virada significante na vida de uma pessoa ou uma instituição (p.24) Incidentes críticos não são ‘coisas’ que existem independentemente de um observador e que ficam aguardando serem descobertos como pepitas de ouro ou ilhas desertas, mas que, como todo os dados, são criados. Incidentes acontecem, mas incidentes críticos são produzidos pelo modo como enxergamos uma situação: um incidente crítico é uma interpretação do significado de um evento. (p.8) Evento crítico (Woods, 1993/2012) Eventos críticos se situam entre um incidente crítico e períodos em uma carreira profissional. Eles são programas integrados e focados de atividades formativas que podem durar de semanas até mais de um ano. (p.2) Diferentemente de incidentes críticos, eventos críticos são em grande medida desejados, planejados e controlados. Mas os planos contêm dentro deles sementes para crescimento e escopo para oportunidades. Há elementos, portanto, que são amplamente imprevistos, e novos pastos imprevisíveis nos quais todos, tanto professores quanto alunos, se aventuram, cujas consequências ninguém sabe exatamente. (p. 2) Momentos críticos (Pennycook, 2004) [...] um ponto significativo, um instante quando as coisas mudam. Parece-me que na observação de um estagiário, e, pensando mais amplamente, no nosso ensino de forma geral, isso é o que buscamos -- esses momentos críticos quando agarramos a oportunidade de fazer algo diferente, quando percebemos que um novo entendimento está ocorrendo (...) em que algo muda, quando alguém “entende”, quando alguém joga um comentário que modifica o discurso. (p. 330) Torna-se crítico através de uma prática problematizadora: uma perspectiva que insiste em lançar muito mais dúvidas sobre as categorias que empregamos para entender o mundo social e nos pressupostos sobre conscientização, racionalidade, emancipação, entre outros. (p. 229) Nossa visão de momentos críticosMomentos críticos na formação de professores Um conflito que ocorre em nossa atividade docente, resultante da confrontação de diferentes representações (crenças), o qual desencadeia alguns insights sobre nossas identidades enquanto professores. Ele se torna crítico por meio da percepção de como o momento desafia nossas perspectivas e impacta sobre nossas identidades e práticas docentes.

3. O PAPEL DAS NARRATIVAS NA INTERPRETAÇÃO DE MOMENTOS CRÍTICOS

Momentos críticos podem ser compartilhados na formação inicial ou continuada de professores de línguas por meio de narrativas, que podem ser analisadas individualmente ou coletivamente, em busca de um entendimento sobre tais situações. Em uma perspectiva sociocultural de ensino e aprendizagem, de base vigotskiana, narrativas podem ser entendidas como instrumentos de mediação para o desenvolvimento de professores (JOHNSON; GOLOMBEK, 2016JOHNSON, Karen. E.; GOLOMBEK, Paula. R. (2016). Mindful L2 teacher education: a sociocultural perspective on cultivating teachers’ professional development. Routledge.). A abordagem sociocultural vê o desenvolvimento cognitivo e afetivo como inerentemente social, ou seja, dá-se por meio de diversas formas de interação social. A aprendizagem ocorre quando tais experiências sociais são internalizadas e apropriadas pelos sujeitos, tornando-se ferramentas psicológicas. Essa transformação do externo para o interno se dá por meio de mediação -- instrumentos mediadores materiais ou psicológicos. O formador de professores tem uma importante função mediadora, contribuindo para o desenvolvimento de professores, à medida em que estes se apropriam de conceitos científicos, ou articulam conceitos cotidianos (oriundos da prática) e conceitos mais elaborados. A internalização ocorre quando os professores em formação inicial ou continuada dão um sentido próprio ao objeto de aprendizagem.

Para Johnson e Golombek (2016)JOHNSON, Karen. E.; GOLOMBEK, Paula. R. (2016). Mindful L2 teacher education: a sociocultural perspective on cultivating teachers’ professional development. Routledge. professores em formação são atores nas práticas sociais em que estão inseridos, sendo moldados por tais práticas e moldando-as simultaneamente. Assim, os processos psicológicos são ao mesmo tempo sociais -- inseridos dentro das práticas históricas de uma cultura -- e também individuais. Professores de línguas são moldados por suas experiências como alunos, por práticas culturais de formação de professores e as particularidades de seu contexto de ensino, imersos que estão em suas histórias de vida, em seu contexto sócio-histórico-cultural.

As narrativas de professores resgatam suas histórias de vida, experiências psicológicas chamadas por Vigotski de perezhivanie. Tal termo é usado “para capturar os sentidos subjetivos de experiências vividas durante o desenvolvimento de nossas personalidades, especialmente o impacto emocional e visceral de tais experiências”5 5 [t]o capture the subjective significance of lived experiences that contribute to the development of one’s personality, especially the emotional and visceral impact of lived experiences. (JOHNSON; GOLOMBEK, 2016JOHNSON, Karen. E.; GOLOMBEK, Paula. R. (2016). Mindful L2 teacher education: a sociocultural perspective on cultivating teachers’ professional development. Routledge., p. 43, tradução nossa).

Em entrevista (FONTES et al, 2019FONTES, Flávio Fernandes; FALCÃO, Jorge Tarcísio da Rocha.; ANDRADE, Leticia Raboud Mascarenhas, SOUSA, Priscila Cristine Andrade de; MARQUES, José Arnaud (2019). Psicologia histórico-cultural, perezhivanie e além: uma entrevista com Nikolai Veresov. Educação & Sociedade, 40.), Verezov afirma que perezhivanie é “percepção visual, memória, pensamento, emoções, imaginação, tudo é perezhivanie”. Em outros termos, as narrativas de professores revivendo momentos críticos podem ser percebidas como uma forma de presentificar e ressignificar essas experiências, uma forma de tentar compreender os impactos subjetivos e emocionais em seu desenvolvimento como professores em todos os seus aspectos. Ao presentificar tais momentos, os professores têm novas vivências, emoções, percepções, que adquirem outros sentidos nos contextos em que atuam.6 6 Para Fleer et al (2017, p.10), “perezhivanie é um conceito para analisar a influência do meio sociocultural, não no indivíduo em si, mas no processo de desenvolvimento do indivíduo (...) Em outras palavras, o ambiente determina o desenvolvimento do indivíduo por meio da perezhivanie do indivíduo em relação ao ambiente ``. (tradução nossa). No original: “What is important is that perezhivanie is a tool (concept) for analysing the influence of the sociocultural environment, not on the individual per se, but on the process of development of the individual (...) In other words, the environment determines the development of the individual through the individual’s perezhivanie of the environment.

Nessa perspectiva, Cochran-Smith (2012)COCHRAN-SMITH, Marilyn. (2012). A tale of two teachers: learning to teach over time. Kappa Delta Pi Record, 48(3), 108-122. afirma que as narrativas podem ser vistas como uma forma de entender e organizar nossas experiências vividas. Narrativas são também:

uma forma fundamental de construir nossas múltiplas identidades como seres humanos, para quem raça, gênero, classe, cultura, etnia, língua, e posição fazem uma profunda diferença na natureza e na interpretação da experiência. Uma história tem a capacidade de carregar contradições, nuances, tensões, e complexidades de aprender a ensinar, que os primeiros anos do discurso acadêmico tradicional, com sua voz impessoal e distante, geralmente negligenciam (p. 11) (tradução nossa).7 7 [a] way we construct our multiple identities as human beings for whom race, gender, class, culture, ethnicity, language, and position make a profound difference in the nature and interpretation of experience. Story has the capacity to contain and entertain within it the contradictions, nuances, tensions, complexities of learning to teach in the early years that traditional academic discourse, with its more distanced impersonal voice, often lacks.

Narrativas podem promover os processos cognitivos e emocionais para o desenvolvimento profissional. Assim, as narrativas podem ser vistas como uma ferramenta de mediação em tais processos. Para Johnson e Golombek (2011JOHNSON, Karen E.; GOLOMBEK, Paula R. (2011). The transformative power of narrative in second language teacher education. Tesol Quarterly, 45(3), 486-509., p. 490),

o ato de narrar, como uma atividade cultural, influencia o modo como entendemos o que estamos narrando. Contar ou recontar (por meio oral ou escrito) uma experiência envolve uma combinação complexa de descrição, explanação, análise, interpretação, e construção de nossas realidades particulares à medida em que as trazemos para a esfera pública.

Johnson e Golombek (2016)JOHNSON, Karen. E.; GOLOMBEK, Paula. R. (2016). Mindful L2 teacher education: a sociocultural perspective on cultivating teachers’ professional development. Routledge. explicitam três funções das narrativas, que se sobrepõem: a) narrativas como externalização; b) narrativas como verbalização; c) narrativas como uma análise sistemática. Como externalização, as narrativas dão voz aos sentimentos e à compreensão de eventos passados, presentes, ou mesmo eventos imaginados. É uma forma de compartilhar experiências, abrindo-as para contribuições sociais. Nesse sentido, tais narrativas têm valor não apenas para quem as compartilha, mas também para formadores de professores e demais pessoas envolvidas. Ao contar histórias de experiências vividas, os professores em formação dão um sentido mais concreto às suas experiências e permitem a formadores de professores terem insights sobre como contribuir para a formação dos professores de línguas.

Como forma de verbalização, as narrativas permitem aos professores internalizar os conceitos acadêmicos aos quais são expostos em um programa de formação. Ao tentar dar sentido às suas experiências, podem nomear, conceitualizar, reexaminar suas experiências de vida, articulando-as com conceitos científicos, dando origem a uma nova forma de entendimento de sua prática -- a práxis que Freire discute em seu livro Pedagogia do Oprimido (1970/1987FREIRE, Paulo. (1987). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra. (Originalmente publicado em 1970).). Para Vigotski (1934/2005VIGOTSKI, Lev Semenovich. (2005). Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1934).) conceitos cotidianos (originados das experiências de vida) operam de forma ascendente (do concreto ao mais abstrato), estabelecendo uma relação com conceitos mais elaborados (os conceitos científicos) que, por sua vez, descendem aos conceitos cotidianos, dando origem a um ciclo permanente. Conforme Johnson e Golombek (2016JOHNSON, Karen. E.; GOLOMBEK, Paula. R. (2016). Mindful L2 teacher education: a sociocultural perspective on cultivating teachers’ professional development. Routledge., p. 15):

[p]ara uma narrativa funcionar como verbalização, os conceitos acadêmicos, aos quais os professores são expostos em programas de formação docente, devem estar situados nos contextos e circunstâncias dos mundos profissionais em que atuam, e compreendidos por meio das atividades de prática de ensino.

Ou seja, nenhum conceito científico tem sentido se não estiver ancorado em atividades práticas, para que possa ser mais do que uma mera abstração intelectual. Certamente, cada professor irá se apropriar de tais conceitos à sua maneira, dando-lhes sentido conforme seu contexto de ensino e sua perezhivanie.

A narrativa como uma forma de análise sistemática se relaciona a procedimentos e parâmetros pelos quais ocorre um engajamento com a atividade narrativa. A aprendizagem, numa perspectiva sociocultural, é entendida como sendo originada por meio do engajamento em práticas sociais, sendo intrinsecamente associada a tais práticas. Sendo assim, diferentes formas de engajamento em atividades narrativas vão envolver inúmeras possibilidades de análise e propiciar diversas formas de desenvolvimento. Uma narrativa sobre como alguém se tornou professor, por exemplo, pode conduzir o foco da análise para a construção de sua identidade como professor, enquanto uma narrativa baseada em uma pesquisa-ação pode proporcionar uma análise voltada para a de sala de aula. Portanto, diversos modos de engajamento na atividade narrativa vão possibilitar diferentes formas de analisá-la e de construir conhecimento a partir dela (JOHNSON; GOLOMBEK, 2016JOHNSON, Karen. E.; GOLOMBEK, Paula. R. (2016). Mindful L2 teacher education: a sociocultural perspective on cultivating teachers’ professional development. Routledge.).

As três funções das narrativas estão presentes no trabalho de recuperação/construção, significação e compartilhamento de momentos críticos na práxis docente. Trazemos aqui reflexões sobre duas das narrativas orais geradas a partir das perguntas das entrevistas realizadas dentro de nosso grupo de pesquisas.

4. MOMENTOS CRÍTICOS NA PRÁXIS DE DOIS PROFESSORES

Nesta seção apresentamos os relatos dos momentos críticos vividos por dois professores de línguas, em um contexto universitário. Pablo trabalhava como professor de inglês em uma universidade pública no estado do Paraná na ocasião em que tais momentos ocorreram. Atualmente, segue como professor universitário, mas em outra instituição. Maria (nome fictício) era professora de Libras em uma universidade pública no estado do Paraná quando os momentos relatados ocorreram, e segue trabalhando na mesma instituição. Como explicado no início, focamos no ponto das entrevistas em que os professores respondiam às questões sobre qual momento crítico teve relevância para sua formação docente e de que forma ele impactou sua identidade profissional.

4.1 Momento 1 de Pablo

A seguir, relatamos um momento crítico ocorrido com Pablo, quando este era professor substituto em uma instituição estadual de ensino superior, no estado do Paraná. O momento ocorreu há cerca de quinze anos atrás, mas, segundo ele, teve grande influência sobre suas concepções de ensino de línguas na universidade, as quais foram sendo construídas ao longo dos anos. Como ele explica:

[O] meu entendimento inicial de dar aula na universidade era muito baseado na escola de idiomas. Eu achava que tinha que ensinar língua, né. Eu lembro de um aluno (...) que me questionou, ele disse “poxa, pensei que a gente ia discutir textos [de linguística aplicada] (...) e não assim, ter aula de língua, né”. E eu fiquei pensando naquilo, assim, foi um baque. Eu pensei “poxa, eu achei que tava fazendo uma coisa certa, né?”. Mas aquilo me fez pensar a respeito do papel da universidade, na formação [inicial] do professor (...) E... a gente usava livros [didáticos para ensino de inglês] naquela universidade; aqui também, no início. Não um livro texto específico, mas partes de livro, né, a gente usava. Hoje eu não uso mais, eu invento a minha aula, uso outros recursos. Então, assim, mudou muito.

Pablo reflete sobre o papel da universidade na formação de professores de línguas. O momento crítico, que serviu de gatilho para o processo reflexivo, foi o questionamento de seu aluno em relação aos conteúdos estudados no curso de Letras. O aluno entendia que um curso de Letras não deveria se preocupar apenas com a formação linguística do aluno, mas com conteúdos sobre ensino e aprendizagem de línguas, processo de aquisição, metodologias, e outros temas estudados em Linguística Aplicada. Ou seja, ele argumentava que ao estudar sobre os conteúdos formativos para o exercício da profissão docente, os alunos de Letras poderiam aprender e praticar a língua ao mesmo tempo.

Essa forma de estudar conteúdo e língua ao mesmo tempo é chamado de CBI (content-based instruction) ou CBLT (content-based language teaching) na América do Norte e de CLIL (content and language integrated learning) na Europa (MORTON, 2016MORTON, Tom. (2016). Content and language integrated learning. The Routledge handbook of English language teaching, p. 252-264.). Para Graves (2016GRAVES, Kathleen. (2016). Language curriculum design: possibilities and realities. In The Routledge handbook of English language teaching. Routledge, p. 79-94, p.83-84), o foco no conteúdo

tem o potencial de criar um contexto de uso (…) que fornece um foco comum para a criação de significado - explorar e descobrir sobre o mundo - e para usar a língua alvo. “Eles usam a língua enquanto aprendem o idioma. Também fazem uso do contexto da sala de aula de maneiras que são coerentes com suas práticas sociais. As salas de aula são contextos naturais para os textos da sala de aula, papéis e atividades que giram em torno dos temas [formação docente]. Eles não são contextos naturais para outros tipos de papéis, textos e tarefas (...).

Aprender um conteúdo relacionado à formação inicial docente tem implicação direta com os interesses dos alunos, ao contrário de outras atividades nas quais os alunos apenas “ensaiam” situações para eventualmente serem usadas fora de sala de aula, e, portanto, mais artificiais, como simular uma situação de pedido de comida em um restaurante, ou se preparar para uma entrevista de emprego, exemplos típicos de atividades de um livro didático para o ensino de inglês.

O olhar de Pablo aqui é retrospectivo, quinze anos após o comentário do aluno e de sua reação e reflexão. Mas, a partir de então, se tornou um questionamento constante em suas atividades de sala de aula, o desafio de como tornar o ensino mais significativo para os alunos, com foco maior na formação dos alunos e não apenas em aspectos linguísticos. O momento se tornou crítico a partir da reflexão sobre o que havia ocorrido, e sobre as possibilidades de ação. Não é um momento preciso, no sentido de que possa ser localizado exatamente em relação ao tempo, mas um processo que se estabeleceu à medida em que os sentidos foram (e continuam) sendo construídos. Recontar uma história pessoal faz com que tenhamos novos entendimentos sobre o fato ocorrido. O pensamento, segundo Vigotski (1934/2005VIGOTSKI, Lev Semenovich. (2005). Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1934).), se estrutura na fala (ou expressão escrita). Quando falamos, não estamos apenas transpondo pensamentos já formados em palavras. Durante o processo de expressão verbal, os pensamentos se transformam e se reestruturam. Eles não são meramente transmitidos, mas se desenvolvem na linguagem falada. Isso significa que os pensamentos estão em constante mudança enquanto falamos, sendo influenciados e influenciando, ao mesmo tempo, a história pessoal do falante, o contexto social em que estão inseridos e sua capacidade de agir e tomar decisões.

4.2 Momento 2 de Pablo

A seguir um outro momento crítico que fez Pablo questionar seus pressupostos acerca do conceito de criticidade, causado por um comentário de uma aluna que fazia um curso de língua inglesa proposto pelo programa de extensão de uma universidade pública do norte do Paraná, no qual Pablo era ministrante, conforme o seguinte relato:

A gente fez um curso [de extensão] de formação de professores, e teve um livro como resultado. E eu lembro que também teve uma discussão, talvez um turning point, assim, né? Uma aluna questionou: “poxa, a gente estuda tanto essas coisas de ser crítico, de mudar a realidade, tal, e eu não vi isso neste curso (...) eu não vi isso, e tal”. Daí a gente teve uma discussão, né, porque talvez ela tivesse uma perspectiva crítica muito rígida, muito fixa, um entendimento muito específico do que é ser crítico, talvez ela não tivesse uma abertura... Sei lá, e eu fiquei com aquilo, né, na cabeça. (...) Eu me dei conta, por exemplo, que no contexto onde eu trabalhava, das escolas de línguas, (...) nós não tínhamos uma perspectiva crítica de formação de professores. Era reflexiva, sim, mas uma reflexão mais técnica, mais prática, né, sobre didática, sobre atividades de sala de aula, mas nunca questionando relações de poder, né, por que é assim, e não assado…

Pablo percebeu que havia diversos entendimentos em relação ao que seria “ser crítico”. Para a aluna a que Pablo se refere, o curso oferecido no âmbito da extensão universitária não havia sido crítico porque não questionava a relação de poder entre diferentes classes sociais, e não explorava possibilidades de desenvolvimento de uma consciência crítica por parte dos participantes do curso. Ser crítico significava, então, uma posição emancipadora na tradição freiriana da Pedagogia Crítica. O foco nessa tradição é transformar a realidade e a relação assimétrica entre opressores e oprimidos, dando a estes condição para lutarem por uma vida melhor e por justiça social. Trata-se de uma perspectiva crítica que estabelece a priori a realidade que se almeja alcançar por meio da transformação social, calcada na luta de classes e em uma concepção social de cunho marxista (Pennycook, 2004PENNYCOOK, Alastair. (2004). Critical moments in a TESOL praxicum. In: NORTON, B.; TOOHEY, K. (Ed.). Critical Pedagogies and Language Learning. Cambridge: CUP, p. 327-345.; Monte Mór; Menezes de Souza, 2018MENEZES DE SOUZA, Lynn Mario Trindade; MONTE MÓR, Walkyria. Still Critique? (2018). Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 18, n. 2, p. 445-450.). De fato, Monte Mór e Menezes de Souza (2018MENEZES DE SOUZA, Lynn Mario Trindade; MONTE MÓR, Walkyria. Still Critique? (2018). Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 18, n. 2, p. 445-450., p. 447) explica que, embora Freire nunca tenha se declarado marxista, sua noção de “conscientização” pressupunha um sujeito racional, centrado, bem dentro da tradição modernista e marxista:

A noção de crítico de Freire, quando escreveu Pedagogia do Oprimido, era muito baseada na dicotomia entre opressor/oprimido, que se aproximava da dicotomia entre colonizador/colonizado que predominava naquele período. Apesar de Freire nunca ter afirmado ser Marxista, seu discurso analítico e modernista, que dava importância ao “rigor” e à “conscientização” ou “compreensão”, pressupunha um sujeito consciente e centrado, aos moldes do discurso Marxista e Modernista.8 8 No original: “Freire’s notion of critique when he wrote Pedagogy of the Oppressed was very much based on the dichotomy oppressor/oppressed which ran parallel with the colonizer/colonized dichotomy prevalent at the time. In spite of the fact that Freire never claimed to be Marxist, his modernist analytic discourse, giving importance to analytic “rigour” and “consciousness” or “awareness”, presupposing a self-present all-knowing thinking subject ran parallel to much of modernist and Marxist orthodox discourse.” (tradução nossa).

Segundo Pablo, esse entendimento de “crítico” trazido pela aluna lhe causou estranhamento, fazendo-o pensar sobre a possibilidade de diferentes concepções de criticidade (conforme PENNYCOOK, 2004PENNYCOOK, Alastair. (2004). Critical moments in a TESOL praxicum. In: NORTON, B.; TOOHEY, K. (Ed.). Critical Pedagogies and Language Learning. Cambridge: CUP, p. 327-345.). Ser crítico, de fato, pode significar diversas coisas segundo diferentes autores: pode referir-se ao pensamento crítico (critical thinking) (FISCHER, 2011FISHER, Alec. (2011). Critical thinking: an introduction. Cambridge University Press.); à Pedagogia Crítica (FREIRE, 1970/1987FREIRE, Paulo. (1987). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra. (Originalmente publicado em 1970).), à Teoria Crítica da Escola de Frankfurt; a uma prática problematizadora (PENNYCOOK, 2004PENNYCOOK, Alastair. (2004). Critical moments in a TESOL praxicum. In: NORTON, B.; TOOHEY, K. (Ed.). Critical Pedagogies and Language Learning. Cambridge: CUP, p. 327-345.); ou, ainda, a uma crítica decolonial (MIGNOLO, 2007MIGNOLO, Walter. (2007). La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa Editorial.; CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007CASTRO-GÓMEZ, Santiago.; GROSFOGUEL, Ramón. (2007). El Giro Decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Pontificia Universidad Javeriana / Siglo del Hombre.).9 9 Entendemos que a crítica decolonial guarda semelhanças com a Pedagogia Crítica freireana, uma vez que podemos estabelecer uma proximidade entre as dicotomias opressor/oprimido de Freire, e colonizador/colonizado, do movimento Decolonial. A concepção do que vem a ser crítico para Pablo está em permanente construção, conforme o mundo muda, e, com ele, as diferentes leituras possíveis da realidade (ou as possíveis construções da realidade). O momento se tornou crítico por meio do processo reflexivo desencadeado, que desafiou suas perspectivas teórico-práticas e impactou sua identidade profissional.

4.3 MOMENTO 1 DE MARIA

Passamos ao relato de Maria, professora em uma universidade pública do Paraná, responsável por disciplinas da área de Linguística num curso de graduação em Libras. Ela é ouvinte, usuária de Libras e contava com o apoio de tradutores/intérpretes em sala de aula, os quais realizam tradução simultânea (ela fala em português e eles fazem a tradução para Libras). A maioria de seus alunos eram surdos; apenas quatro eram ouvintes e já trabalhavam como tradutores/intérpretes de Libras. Às vezes havia comunicação direta em Libras entre a professora e os alunos; se havia alguma dificuldade, os alunos procuravam ajudar, e negociavam-se os significados. O que se apresentou como um obstáculo para todos ao longo das aulas, como será visto no relato, foi o uso de Libras para tratar de conceitos, termos e conteúdos específicos da Linguística. Havia, por parte da professora, certo receio em ministrar ela mesma as aulas em Libras, em vista de sua entrada relativamente recente no quadro de professores (cerca de dois anos) e da existência, entre alguns docentes, de comparações quanto à proficiência em Libras entre professores surdos e professores ouvintes.

Seu primeiro relato reporta a um momento ocorrido no ano anterior a esta pesquisa:

Do que eu mais me assustei foi quando um aluno surdo no ano passado disse, professora a senhora não precisa de intérprete (...) eu queria que a senhora desse aula sinalizada olhando pra mim, eu não consigo ficar olhando pros intérpretes, então eu não consigo prestar atenção no conteúdo da sua aula. Eu achei tão bonito assim o jeito que ele abordou, o jeito que ele falou. E ele disse, o intérprete interpreta bonitinho, mas eu quero ficar olhando, a senhora é minha professora, não ele. E aí o olho encheu de lágrima assim. Aí depois eu conversei com os intérpretes e disse, então, olha. durante o processo de férias vocês ficam comigo, essa disciplina que eu já estou há dois anos com o Antonio [intérprete - nome fictício], eu acho que eu consigo, e aí foi na turma dele que eu me senti segura pra entrar, que é o primeiro semestre que eu estou sozinha ensinando Introdução aos Estudos Linguísticos [...]

O aluno havia pedido para conversar em particular com a professora, após as aulas. Maria começa dizendo ter se assustado com o momento. Ele explica que, com ela como professora e o trabalho simultâneo dos intérpretes, acaba por perder conteúdo durante a aula por procurar acompanhar tanto um quanto outro. Ele deseja ter a professora assumindo outra posição na comunicação em sala de aula, mais direta, sem intermediários, mesmo entendendo que os intérpretes fazem um bom trabalho (“o intérprete interpreta bonitinho”). Foi então que ela decidiu conversar com os intérpretes e pedir a ajuda deles para se preparar para lecionar diretamente em Libras a disciplina de Introdução aos Estudos Linguísticos no semestre seguinte. Tratava-se de estreitar o trabalho da docente com o dos intérpretes, intensificando a colaboração.

Quando se conta com a atuação de intérpretes, a posição dos professores ouvintes fica mais segura e mais confortável com o uso de sua primeira língua, o português (não precisando se expor no seu uso de Libras como segunda língua), ainda que precisem trabalhar junto com os intérpretes quanto ao conhecimento específico da disciplina. A resposta positiva de Maria ao pedido do aluno exigiu dela e dos intérpretes adequação e preparação para a proposta de lecionar em Libras no semestre seguinte. Foi com o começo das aulas que Maria pôde passar a perceber que mudanças sua resposta ao pedido do aluno trouxe quanto à sua identidade como professora da área de Linguística e usuária de Libras e também quanto à eficiência de sua prática pedagógica.

Junto ao grupo de pesquisa, ao narrar sua história, ela refletiu que ao se assumir perante seus alunos como falante de Libras como segunda língua, passou a ser reconhecida como parte da comunidade de surdos. Também relatou que ao mesmo tempo em que houve um empoderamento enquanto docente falante de Libras, a relação com seus alunos ficou mais horizontalizada. Ao negociar com seus alunos frente a dificuldades comuns no uso de Libras em sala de aula (dúvidas sobre termos e conceitos específicos), ela se mostrou mais vulnerável. Soa paradoxal, mas foi a abertura para essa posição mais vulnerável que permitiu mudanças significativas nas atividades em sua prática pedagógica.

4.4 MOMENTO 2 DE MARIA

Uma dessas mudanças foi a percepção de um entrave para que o conteúdo de suas aulas fosse compreendido por seus alunos. Como ela explica a seguir:

E aí foi a hora que eu percebi também uma outra coisa, que não bastava eu ser proficiente em Libras, meus alunos tinham que ser proficientes num processo de equiparação linguística, por exemplo, pra mim é muito claro fazer estrutura e funcionamento da língua [sinalizando], [...], só que quando eu executava [a sinalização] eles ficavam em dúvida. E eu dizia “meu deus, mas eu fiz a sinalização certa”, eu ia pra casa, ficava pensando, pensando. Na verdade é porque eles não tinham repertório linguístico da área técnica, [mesmo o repertório básico que se espera que alunos tragam do Ensino Médio] e eu não tinha me dado conta disso ainda, né, foi quando aí eu comecei a introduzir também no nível das minhas pesquisas a importância dos glossários e sinalários técnicos10 10 Sinalários técnicos são conjuntos de expressões (sinais) que compõem o vocabulário de um determinada área ou disciplina em língua de sinais (ver OLIVEIRA e STUMPF, 2013). (...) Então aí foi a hora que eu tomei mais um pouquinho de um choque, e modelar as minhas aulas que eu achava que eram bilíngues, maravilhosas, com slides, com colorido, com história em quadrinhos, com tira, mas não era suficiente porque o conteúdo técnico não estava sendo passado. Então é como se eu trabalhasse com o glossário e o sinalário antes, e aí depois o conteúdo vai, sai aquele bloqueio, tanto meu quanto deles.

Essa é uma questão pedagógica básica para o ensino de qualquer língua, mas que ficou mais explícita nessa situação de sala de aula: a professora trazia sua aula preparada, cuidando da sinalização adequada dos termos relativos ao funcionamento da língua (ou seja, a metalinguagem e os conceitos teóricos), no entanto, os alunos demonstravam não conseguir compreender bem. Ao longo das aulas, observando e conversando com seus alunos, viu que o que faltava era justamente uma introdução a tais conceitos e terminologia em Libras. Isso passou a ser feito com a produção e uso de sinalários e glossários específicos para o vocabulário chave exigido pelas disciplinas.

Além disso, continuaram as negociações sobre os papéis desempenhados por professores, intérpretes e alunos em uma sala de aula em que Libras é a primeira ou segunda língua. Ela assumiu também uma turma na disciplina de Semântica e Pragmática, composta em sua maioria por alunos seus de semestres anteriores. Em certo momento, ela e seus alunos precisaram conversar sobre a importância do trabalho dos intérpretes em sala:

(...) os alunos já me alocam [sic] dentro da sala, eles não permitem que eu olhe para o intérprete e nem eles olham, [alunos e alunas] olham [para mim] e aí arrumam o sinal, se eu erro ou se há dúvida. [Um dos alunos] disse “não, professora, a gente não quer intérprete, a senhora está dando aula sem intérprete, lá”. Daí eu expliquei, disse “olha, eu preciso do intérprete aqui não é porque a professora não domina o conteúdo ou não domina [Libras], (...) mas eu quero transmitir o conteúdo com segurança.

Nesse momento, houve uma compreensão melhor do papel dos intérpretes e da relação que podia se estabelecer entre alunos, intérpretes e professora. Dos primeiros esforços para estabelecer uma interação mais direta com seus alunos, passando pelo reconhecimento das dificuldades de conhecimento de base para as disciplinas (com o recurso aos glossários e sinalários), a professora e seus alunos chegam ao momento de reintegrar em novos termos o papel dos intérpretes em sala de aula. O objetivo do trabalho dos intérpretes continua sendo a mediação da comunicação entre professora e alunos, mas agora a base das relações é outra: alunos e professora conseguem se comunicar, procuram cooperar na negociação de significados e passam a reconhecer seus limites. Como Maria explica depois, foi possível integrar o trabalho dos intérpretes ajustando-o à interação mais direta entre professora e alunos. Um exemplo foi encontrar posições adequadas em sala de aula que permitissem que os alunos pudessem olhar para a professora ou para os intérpretes, conforme quisessem; passaram a ficar em uma posição mais triangulada, permitindo uma visão melhor entre todos os interlocutores.

Recuperando parte do que se desenrolou a partir daquele momento crítico em que conversou com seu aluno e procurou entender a demanda que ele trazia, Maria procurou refletir sobre o que “criticidade” significava para ela. Se a reação dela tivesse sido diferente, se tivesse tido receio, não tivesse ido falar com esse aluno e depois com a turma, se tivesse mantido suas escolhas pedagógicas, apoiada nos intérpretes e usando principalmente a língua portuguesa, quaisquer que fossem as razões, muito teria se perdido. Sua reação, como ela colocou, permitiu se “colocar na posição de um aprendiz surdo, dentro da cultura, dentro da visualidade, e a partir dessa experiência em que o aluno [a] pôs na parede”. Perguntou então se criticidade teria relação com emoção e sensibilidade: “o conceito maior é sensibilidade - com a língua, com o conhecimento do aluno”. Para Maria, criticidade é um conceito que ela está construindo aos poucos a partir de suas práticas e experiências.

De fato, o que a narrativa de Maria traz é um cruzamento entre a maneira como ela e seus alunos conseguiram negociar relações de poder envolvendo não só o papel da professora, dos intérpretes e dos alunos, mas também os conhecimentos básicos necessários para o ensino e a aprendizagem (o uso de Libras por parte de Maria e os conceitos básicos em Libras para os estudos de linguística por parte dos alunos). São questões sensíveis que provocam emoções diversas: medo, frustração, entusiasmo, confiança, admiração. À medida que surgiam, essas emoções também foram sendo modificadas pelos participantes de todo esse processo. Ao refletir sobre esses momentos, Maria conseguiu estabelecer uma ligação entre criticidade, emoção e sensibilidade que reconheceu como necessária para sua própria formação docente. Ao compartilhar sua narrativa com nosso grupo, nós tivemos a oportunidade de reconsiderar o papel das emoções em meio aos conflitos inerentes à nossa práxis docente. São questionamentos que até pouco tempo não eram validados, sem espaço dentro do foco cognitivo que dominava as pesquisas nas áreas de Educação e de Aquisição de Línguas (OLIVEIRA, 2021OLIVEIRA, Ana Cláudia Turcato de. (2021). Emoções e Ensino Crítico de Línguas: uma abordagem político-cultural das emoções de uma professora de Inglês. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 21, n. 1, p. 81-106., p.86-88; PALMA, 2021PALMA, Ane Cibele. (2021). A Representatividade das Emoções nas Práticas de EMI de Professores do Ensino Superior da Universidade Federal do Paraná. Tese (Doutorado em Letras) Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná. Curitiba. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/31831?locale=en. Acesso em 20 out. 2021.
https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/...
, p.77). Esse espaço começou a ser consolidado a partir da década de 1990, acompanhando a virada social na Linguística Aplicada (FIRTH; WAGNER, 1997FIRTH, Alan; WAGNER, Johannes. (1997). On discourse, communication, and (some) fundamental concepts in SLA research. The modern language journal, 81(3), 285-300.; BLOCK, 2003BLOCK, David. (2003). The Social Turn in Second Language Acquisition. Edinburgh, UK: Edinburgh University Press.). A chamada “virada afetiva” (PAVLENKO, 2013PAVLENKO, Aneta. (2013). The affective turn in SLA: from ‘affective factors’ to ‘language desire’ and ‘commodification of affect’. In: GABRYŚ-BARKER, D.; BIELSKA, J. (eds.). The Affective Dimension in Second Language Acquisition. Bristol: Multilingual Matters, p. 3-28.) permite que hoje, em situações complexas como as vividas por Maria, as emoções sejam vistas como “fenômenos intersubjetivos e não individuais, constituídos nas relações de poder entre as pessoas” (OLIVEIRA, 2021OLIVEIRA, Ana Cláudia Turcato de. (2021). Emoções e Ensino Crítico de Línguas: uma abordagem político-cultural das emoções de uma professora de Inglês. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 21, n. 1, p. 81-106., p.89). O trabalho reflexivo de Maria, compartilhado dentro de nosso grupo, se aproxima da noção de perezhivanie (VIGOTSKI, 1998VIGOTSKI, Lev Semenovich. (1998). The collected works (Vol. 5). New York: Springer.), mencionada anteriormente, na qual, de forma holística, pela narrativa presentificamos e ressignificamos nossas experiências.

Acreditamos que esse relato dos momentos de Maria ilustra a reflexão sobre emoções desenvolvida por Benesch (2017)BENESCH, Sarah. (2017). Emotions and English language teaching: Exploring teachers’ emotion labor. Routledge., dentro de uma perspectiva político-cultural. Como nossa colega no grupo de pesquisa, Ane Cibele Palma, veio a explicar:

[nessa perspectiva] as emoções são contextuais, culturais, sobrepõem-se e estão imbricadas em relações de poder; dito isso, a autora não concebe as emoções como inatas, estados psicológicos internos, universais, mensuráveis, monolíticas, estáticas ou imutáveis ao longo do tempo e espaço. Para Benesch (2017)BENESCH, Sarah. (2017). Emotions and English language teaching: Exploring teachers’ emotion labor. Routledge., o foco do estudo nas emoções não está no que são, no seu conceito, mas sim no que as emoções fazem, nas suas consequências sobre as pessoas [...]. (PALMA, 2021PALMA, Ane Cibele. (2021). A Representatividade das Emoções nas Práticas de EMI de Professores do Ensino Superior da Universidade Federal do Paraná. Tese (Doutorado em Letras) Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná. Curitiba. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/31831?locale=en. Acesso em 20 out. 2021.
https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/...
, p.88)

Momentos críticos como os narrados por Maria, que envolvem reações cognitivo-emocionais a desafios pedagógicos em disciplinas específicas dentro da formação de futuros professores de Libras, também não são apenas parte da trajetória individual da professora formadora. As ações negociadas por professores, alunos e intérpretes modificaram microestruturas de poder dentro daquelas salas de aula, assim como concepções teóricas e práticas pedagógicas. Essas mudanças não ficam estanques naquelas salas. Elas reverberam dentro de comunidades maiores, como o curso e a comunidade surda, e na instituição da qual fazem parte, a universidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A (re)construção de momentos críticos por meio de narrativas de professores (em formação inicial ou continuada) pode constituir-se como espaço de reflexão e de ressignificação de vivências. Tais momentos, revividos em um contexto e experiência de vida e profissional diferentes, adquirem novos significados e contribuem para o desenvolvimento de professores, conforme o conceito de perezhivanie (Vigotski, 1998VIGOTSKI, Lev Semenovich. (1998). The collected works (Vol. 5). New York: Springer.) nos informa, ajudando-os a compreender o impacto que tais experiências trazem para suas subjetividades, emoções e identidades. Sejam como uma forma de externalização, de verbalização, ou de análise sistemática, conforme Johnson e Golombek (2016)JOHNSON, Karen. E.; GOLOMBEK, Paula. R. (2016). Mindful L2 teacher education: a sociocultural perspective on cultivating teachers’ professional development. Routledge., narrativas apresentam-se como uma importante forma de (re)construir as múltiplas identidades dos professores, podendo envolver questões de raça, gênero, classe, cultura, etnia, língua, e posição, que impactam na interpretação das experiências vividas (Cochran-Smith, 2012COCHRAN-SMITH, Marilyn. (2012). A tale of two teachers: learning to teach over time. Kappa Delta Pi Record, 48(3), 108-122.).

As situações vividas por Pablo e Maria mostram que nem sempre a percepção de um momento crítico ocorre naturalmente. E mesmo que tal percepção ocorra, tais momentos podem permanecer no esquecimento, perdidos em alguma parte de nossas memórias, soterrados pelos milhares de fatos que ocorrem em nossas vidas todos os dias, ou mesmo apagados para sempre. É possível que nunca tenhamos a oportunidade de recuperá-los como formas de organizar nossas ideias, nossa compreensão de mundo, ou, no caso, de formação docente. Muitas vezes tais reflexões ocorrem muito tempo após os incidentes terem acontecido, ou, ainda, mesmo que ocorram, não tenhamos a possibilidade de compartilhar nossas reflexões com colegas -- seja pelo pouco tempo que dispomos, ou pelo próprio isolamento de nossas práticas. Entretanto, entendemos que é importante que o professor em formação desenvolva sua percepção para momentos críticos, e que encontre espaços para que tais momentos possam ser analisados e contribuam de fato para sua formação. Embora a ressignificação de tais momentos possa ser vista como um processo individual, porque a percepção de momentos críticos é construída pelo esforço de um docente e se relaciona a sua trajetória profissional, ela é também coletiva, quando compartilhada, narrativamente, e discutida com pares, mobilizando vários campos de reflexão coletivos. 11 11 Agradecemos ao Prof. Eduardo Henrique Diniz de Figueiredo pela leitura cuidadosa e ao Grupo de Pesquisa Formação de Professores de Línguas pelo engajamento no desenvolvimento desta pesquisa.

  • 1
    Adotamos o entendimento pós-estruturalista que concebe as identidades como construções complexas, multifacetadas, e em permanente desenvolvimento. Conforme Block (2014BLOCK, David. (2014). Second language identities. London & New York: Continuum., p. 32), “[o]s cientistas sociais conceituam as identidades como narrativas em constante desenvolvimento, autoconscientes e socialmente construídas, que os indivíduos desempenham, interpretam e projetam por meio do vestuário, movimentos corporais, ações e linguagem. A construção da identidade ocorre na companhia de outros - seja pessoalmente ou de forma eletronicamente mediada - com os quais, em diferentes graus, os indivíduos compartilham crenças, motivações, valores, atividades e práticas. As identidades envolvem a negociação de novas posições subjetivas no cruzamento entre passado, presente e futuro. Os indivíduos são moldados por suas histórias sociais, mas também moldam essas histórias sociais ao longo da vida. Todo o processo é conflituoso, ao invés de harmonioso, e os indivíduos frequentemente se sentem ambivalentes. Existem relações de poder em torno dos diferentes tipos de capital - econômico, cultural e social - que facilitam ou impedem as interações.” (tradução nossa).
  • 2
    Nomes fictícios para proteger a identidade dos participantes.
  • 3
    As entrevistas, gravadas em áudio em vários dias, eram individuais, mas com a presença de todos os participantes da pesquisa. Eventualmente, os demais participantes faziam alguma pergunta não estruturada e a narrativa era expandida.
  • 4
    No decorrer das entrevistas, a pergunta sobre o momento em que os professores se perceberam críticos, na segunda parte da questão (b), por vezes levava diretamente à reflexão proposta pela questão (e).
  • 5
    [t]o capture the subjective significance of lived experiences that contribute to the development of one’s personality, especially the emotional and visceral impact of lived experiences.
  • 6
    Para Fleer et al (2017FLEER, Marilyn; REY, Fernando González; VERESOV, Nikolai. (2017). Perezhivanie, emotions and subjectivity: setting the stage. In: Perezhivanie, emotions and subjectivity. Springer, Singapore, p. 1-15., p.10), “perezhivanie é um conceito para analisar a influência do meio sociocultural, não no indivíduo em si, mas no processo de desenvolvimento do indivíduo (...) Em outras palavras, o ambiente determina o desenvolvimento do indivíduo por meio da perezhivanie do indivíduo em relação ao ambiente ``. (tradução nossa).
    No original: “What is important is that perezhivanie is a tool (concept) for analysing the influence of the sociocultural environment, not on the individual per se, but on the process of development of the individual (...) In other words, the environment determines the development of the individual through the individual’s perezhivanie of the environment.
  • 7
    [a] way we construct our multiple identities as human beings for whom race, gender, class, culture, ethnicity, language, and position make a profound difference in the nature and interpretation of experience. Story has the capacity to contain and entertain within it the contradictions, nuances, tensions, complexities of learning to teach in the early years that traditional academic discourse, with its more distanced impersonal voice, often lacks.
  • 8
    No original: “Freire’s notion of critique when he wrote Pedagogy of the Oppressed was very much based on the dichotomy oppressor/oppressed which ran parallel with the colonizer/colonized dichotomy prevalent at the time. In spite of the fact that Freire never claimed to be Marxist, his modernist analytic discourse, giving importance to analytic “rigour” and “consciousness” or “awareness”, presupposing a self-present all-knowing thinking subject ran parallel to much of modernist and Marxist orthodox discourse.”
  • 9
    Entendemos que a crítica decolonial guarda semelhanças com a Pedagogia Crítica freireana, uma vez que podemos estabelecer uma proximidade entre as dicotomias opressor/oprimido de Freire, e colonizador/colonizado, do movimento Decolonial.
  • 10
    Sinalários técnicos são conjuntos de expressões (sinais) que compõem o vocabulário de um determinada área ou disciplina em língua de sinais (ver OLIVEIRA e STUMPF, 2013OLIVEIRA, Janine Soares; STUMPF, Marianne Rossi. (2013). Desenvolvimento de glossário de Sinais Acadêmicos em ambiente virtual de aprendizagem do curso Letras-Libras. Informática na Educação: teoria e prática. Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 217-228. Jul./dez.).
  • 11
    Agradecemos ao Prof. Eduardo Henrique Diniz de Figueiredo pela leitura cuidadosa e ao Grupo de Pesquisa Formação de Professores de Línguas pelo engajamento no desenvolvimento desta pesquisa.

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Os dados públicos utilizados na pesquisa estão disponíveis em [https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/71756. permitindo amplo e irrestrito acesso. As gravações não estão disponíveis ao público, uma vez que esse material pode comprometer a privacidade dos participantes da investigação se mostrado na íntegra.

Apêndice 1

Tabela comparativa de definições de termos. (em inglês)

Definition How it becomes critical Critical incident(Richards; Farrell, 2005) A critical incident is an unplanned and unanticipated event that occurs during a lesson and that serves to trigger insights about some aspect of teaching and learning. (p. 113) At first glance, these incidents may appear insignificant rather than critical, but they may become critical when they are subject to review and analysis. (114) Critical incident (Tripp, 1993/2012) The term ‘critical incident’ comes from history where it refers to some event or situation which marked a significant turning-point or change in the life of a person or an institution (p.24) critical incidents are not ‘things’ which exist independently of an observer and are awaiting discovery like gold nuggets or desert islands, but like all data, critical incidents are created. Incidents happen, but critical incidents are produced by the way we look at a situation: a critical incident is an interpretation of the significance of an event. (p.8) Critical Events (Woods, 1993/2012) Critical events (…) lie between the flash-point incidents and the career phase periods. They are integrated and focused programmes of educational activities which may last from a number of weeks to over a year. (p. 2) Unlike critical incidents, critical events are in large measure intended, planned and controlled. But the plans contain within them seeds for growth and scope for opportunities. There are elements, therefore, that are largely unforeseen, and unpredictable new pastures that all, teachers and pupils alike, are venturing into, with what consequences no one exactly know (p. 2) Critical Moments(Pennycook, 2004) [a] point of significance, an instant when things change. It seems to me that in the practicum observation, and, come to think of it, our teaching more generally, this is what we’re looking for - those critical moments when we seize the chance to do something different, when we realize that some new understanding is coming about. (…) where something changes, where someone “gets it,” where someone throws out a comment that shifts the discourse (p. 330) Becomes critical through a problematizing practice - “a perspective that insists on casting far more doubt on the categories we employ to understand the social world and on assumptions about awareness, rationality, emancipation, and so forth.” (p. 229) Critical moments as we see themCritical moments in teacher education A conflict that happens in our teaching practice, resulting from the confrontation of different representations (beliefs), which triggers some insights in our identities as teachers. It becomes critical through the awareness of how the moment challenges our perspectives and impacts our identities and teaching practices.

REFERÊNCIAS

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  • BLOCK, David. (2003). The Social Turn in Second Language Acquisition Edinburgh, UK: Edinburgh University Press.
  • BLOCK, David. (2014). Second language identities. London & New York: Continuum.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2022
  • Aceito
    17 Ago 2023
  • Publicado
    10 Abr 2024
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