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Cristãos-novos, marranos e judeus no espelho da Inquisição

Resumos

No mundo ibérico dos séculos XVI, XVII e XVIII todos os judeus remanescentes eram necessariamente clandestinos, o que implicava a necessidade de dissimular suas práticas e seus sentimentos religiosos. Na medida em que aquilo que sabemos a seu respeito resume-se, quase exclusivamente, às informações produzidas pela Inquisição, podemos ter a certeza de que nem todas tinham uma base factual. Não dispomos, entretanto, de critérios claros e objetivos que permitam determinar quais confissões e acusações eram verdadeiras. Portanto, como veremos neste ensaio, entender por que determinado indivíduo era considerado judeu passa por um exame contextual mais aprofundado da situação dos cristãos novos na sociedade ibérica, do papel da Inquisição em diferentes lugares e épocas, e, por fim, das circunstâncias específicas de cada acusação individual.

cristãos-novos; marranos; judeus; sociedade ibérica; Inquisição.


The only Jews who remained in the Iberian world were, of necessity, clandestine Jews, concerned with dissimulating their religious sentiments and practices. The Judaism of Iberian New Christians, as recounted in Inquisitorial records, cannot thus be taken at its face value. So, we can also be sure that not every confession to having practiced Judaism in secret, and not every accusation made during interrogation, had a factual basis. As we do not possess unambiguous criteria for deciding which accusations and confessions were true, the clarification of the issue - as we shall see in this essay - can only be provided by closer attention to context: to the changing situation of New Christians in Iberian society, to the role played by the Inquisition at a given time and place, and to the circumstances surrounding individual acts of accusation.

New Christians; Marranos; Jews; Iberian society; Inquisition.


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  • 1
    Este artigo reproduz, com algumas alterações, um texto publicado sob o título de "Être juif au Portugal au temps de l'Inquisition: nouveaux chrétiens, marranes, juifs", Ethnologie française, XXIX/2, 1999, p. 191-203, e de "New Christian, Marrano, Jew", em Bernardini e Fiering, 2001, p. 125-148. Tradução do autor.
  • 2
    Este texto, inicialmente apresentado em 1997, num colóquio organizado pela John Carter Brown Library (Providence, R.I.) sobre o papel dos judeus na construção do Novo Mundo, destinava-se a equacionar e discutir alguns dos pressupostos subjacentes à organização do encontro e à estruturação do respectivo programa. Visava, em particular, chamar a atenção para aspectos que são, por vezes, elididos quando a experiência dos cristãos-novos ibéricos é abordada numa perspectiva de "história judaica", ou "Jewish history". No seu prefácio ao volume que resultou do colóquio, por exemplo, um dos organizadores, depois de referir que "os judeus estabeleceram-se em todo o hemisfério ocidental e participaram (muitas vezes como conversos) nos impérios espanhol, português, francês, holandês e inglês", justificou a inclusão, num estudo sobre "os judeus nas Américas durante a época moderna", dos "milhares de cristãos descendentes de judeus {...}", com o argumento de que estes, "apesar da sua conversão, por mais remota no tempo que esta tivesse sido, e independentemente das suas práticas efetivas, continuavam a ser geralmente considerados como 'judeus'" (FIERING, 2001, p. xi, xiii).
  • 3
    Os judeus convertidos e seus descendentes eram geralmente designados por conversos em Espanha e cristãos-novos em Portugal. Os dois termos podiam, também, ser utilizados para designar os muçulmanos convertidos, pelo que em Espanha se utilizava, por vezes, a expressão mais precisa de cristiano nuevo de judío. Utilizo aqui o termo genérico cristão-novo para designar os judeus convertidos e seus descendentes em ambos os reinos ibéricos. Na esteira de I. S. Révah (1959-60), reservo o termo marrano para aqueles cristãos-novos que, efetivamente, se esforçaram por conservar, ainda que imperfeitamente, uma forma de identidade própria através da manutenção de algumas práticas judaicas.
  • 4
    Que fosse considerado como tal, ou não, pelas comunidades e autoridades religiosas judaicas fora da Península Ibérica é uma questão diferente, que não posso abordar aqui. Sobre as discussões havidas no seio dessas comunidades a respeito do judaísmo dos cristãos-novos ibéricos, ver, em particular, Yerushalmi 1971, cap. 1.
  • 5
    Apesar das ressonâncias atuais de termos como "limpeza de sangue", noções como as de antissemitismo e racismo - que se referem a fenômenos historicamente específicos e mais recentes - são anacrônicas e não têm cabimento no contexto da Espanha e de Portugal na época moderna.
  • 6
    Estes resultados, fruto das pesquisas de E.W. Monter, J. Tedeschi, J. P. Dedieu, J. Demonet, G. Henningsen, J. Contreras, J. Veiga Torres e A. Borges Coelho - foram utilmente sintetizados, numa perspectiva comparativa, por Bethencourt, 1994, p. 268-284.
  • 7
    O Secretariado de Aragão compreendia os tribunais de Barcelona, Logroño, Maiorca, Sardenha, Sicília, Valência, Sarago-ça, Cartagena das Índias, Lima e México; o de Castela, os tribunais das Ilhas Canárias, Córdova, Galiza, Granada, Llerena, Múrcia, Sevilha, Toledo e Valhadolid.
  • 8
    Cf. Tavares 1982, I, p. 74. Segundo as estimativas anteriores de João Lúcio de Azevedo (1921, p. 43), a população judia em finais do século XV poderia ascender a 75.000. Tal número traduz-se, no entanto, numa proporção extraordinariamente elevada de judeus entre a população urbana - da qual não há menção nas fontes qualitativas da época -, devendo, por conseguinte, ser considerada como excessiva.
  • 9
    Estas medidas baseavam-se na bula Sicut iudaeis non, de 2 de julho de 1389, do Papa Bonifácio IX, a qual D. João I mandou publicar em Portugal em 17 de julho do mesmo ano. Segundo as Ordenações Afonsinas (II, p. 120), compiladas em meados do século XV, nenhum cristão tinha o direito de matar ou ferir um judeu, furtar os seus bens, ou ofender os seus costumes. Tampouco tinha o direito de violar os seus cemitérios (com o pretexto da procura de tesouros), de perturbar as suas festas, ou de obrigar qualquer judeu a servi-lo ou a desempenhar trabalhos forçados (KAYSERLING, 1971, p. 39). 9
  • 9
    Segundo a estimativa mais recente de Maria José Ferro Tavares, o número de refugiados não terá ultrapassado os vinte ou trinta mil. Entre os contemporâneos, contudo, Abraão Zacuto fala de 120.000 indivíduos, Damião de Góis de 20.000 famílias. O cronista espanhol Bernáldez afirma que 93.000 judeus terão ultrapassado a fronteira. Estes números têm sido, por vezes, reproduzidos sem reservas por historiadores modernos, mas isto implicaria que, no espaço de poucos anos, a proporção de judeus em Portugal tivesse passado de 3-4% para 15% da população total e, em muitos centros urbanos, talvez de 8% para mais de 30% da população. Como isto, evidentemente, não foi o caso, tais estimativas têm necessariamente que ser consideradas exageradas. Cf. Tavares 1982: I, 252-257, e Azevedo 1921: 20-22.
  • 10
    Várias centenas de cristãos-novos perderam a sua vida no massacre de Lisboa. Segundo Damião de Góis e Samuel Usque, o número de vítimas teria sido, respectivamente, de 1.900 e 4.000, mas isto constitui provavelmente um exagero. Cinquenta dos que foram considerados responsáveis pelo massacre acabaram por ser condenados à morte. A população de Lisboa perdeu alguns dos seus privilégios e a cidade foi sujeita a uma multa pesada.
  • 11
    Os três últimos tribunais tiveram, no entanto, uma existência muito curta. Mais tarde, em 1558, foi criado um quarto tri-bunal em Goa, com jurisdição sobre a África Oriental e todo o Oriente. Sobre o estabelecimento da Inquisição em Portugal, veja-se o estudo clássico de Alexandre Herculano (1854-59).
  • 12
    Sobreviviam, ainda, algumas comunidades isoladas, que a Inquisição veio a descobrir e a dispersar ao longo das décadas seguintes. Para uma visão de conjunto, cf. Contreras, 1993.
  • 13
    Cf. Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL), Reservados, Cod. 863, fol. 1.
  • 14
    A lista está reproduzida em ibid., fols. 97-98. Sem uma análise dos processos individuais, não é possível saber em que medida este grupo era representativo do conjunto da população cristã-nova de Lisboa. Mas o fato de terem confessado espontaneamente, temendo, talvez, ser denunciados por outros (cf. adiante, seção VI), sugere que poderão, no mínimo, ser considerados como representativos do tipo de cristão-novo que, 133 anos após a conversão forçada, poderia ainda, com alguma plausibilidade, ser acusado de judaizar.
  • 15
    Ibid., fols 119-123. Surpreendentemente, quando chegamos ao século XVIII, a grande maioria dos acusados de judaísmo é descrita apenas como "cristã-nova": 94% dos sentenciados no auto da fé celebrado em Lisboa a 19 de outubro de 1704, ou 85% no de 25 de julho de 1728 (ibid., fols. 353-6, 437-9). Embora seja possível que, tal como em Maiorca, estratégias matrimoniais seletivas por parte de algumas famílias possam ter levado à constituição de um grupo endógamo judaizante no interior da população cristã-nova (cf. PORQUERES, 1995), parece mais provável que a esta data, tardia, as sutilezas genealógicas já tivessem sido abandonadas e que o termo genérico "cristão-novo" fosse aplicado indiscriminadamente a todos os de ascendência judaica conhecida. Cf., no entanto, Révah (1959-60, p. 50), que interpreta estes números como uma indicação de que, mesmo no século XVIII, "o cripto-judaísmo português mantivera uma surpreendente homogeneidade racial".
  • 16
    O conteúdo deste documento foi analisado em pormenor por H. P. Salomon (1982), o qual também reproduz, em facsímile, o texto original impresso.
  • 17
    Esta estratégia foi descrita em pormenor num manuscrito redigido, por volta de 1735, pelo conhecido médico cristão-novo Ribeiro Sanches (SANCHES, 1973), o qual, tendo sido educado no catolicismo, veio a ser injustamente denunciado à Inquisição por um seu primo como judaizante. Acabou por fugir para Londres, onde se converteu ao judaísmo, mas posteriormente regressou à fé católica, tendo-se ainda tornado médico de Catarina da Rússia. Sobre a reinvenção de identidades e tradições judaicas, cf. também Bodian, 1997.
  • 18
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Processo Nº 1266.
  • 19
    Ibid., Processo Nº 236.
  • 20
    Os familiares eram colaboradores leigos da Inquisição que, como tal, deviam fazer prova de "limpeza de sangue". Entre outras funções, eram encarregados, mais especificamente, de executar a prisão dos suspeitos e acusados.
  • 21
    Cf. o excelente estudo de Fernanda Olival (1997) sobre as tentativas de acesso à Ordem de Cristo por parte de uma família de remota ascendência cristã-nova.
  • 22
    As informações de que dispomos não permitem uma comparação estatística rigorosa. Cf., no entanto, os números apresentados por Borges Coelho (1987, I, p. 383) e por Veiga Torres (1994, p. 133). Dos 5.382 indivíduos processados pela Inquisição de Évora entre 1537 e 1668, 22% eram mercadores ou comerciantes, 42% artesãos, 9% lavradores e 4% trabalhadores. Durante o mesmo período, os lavradores representavam quase metade dos familiares, enquanto que os artesãos, mercadores e fidalgos perfaziam, respectivamente, 15%, 13% e 6% do número total. Entre 1721 e 1770, a proporção de lavradores tinha diminuído para 28%, representando os outros três grupos, respectivamente, 6%, 37% e 5%.
  • 23
    Tradução: Robert Rowland
  • 24
    Revisão técnica: Maria Aparecida Rezende Mota

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2010
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