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Comentário a “A interminável questão: por que (devo) agir moralmente? Análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer”

O artigo que agora se comenta não poderia ser mais atual. Não apenas por resgatar um tema muito caro à ética, mas porque estamos a viver tempos de grande incerteza presente e futura. Aquilo que é do domínio da ética, aquilo que é do domínio da moral está, de certa forma, suspenso num limbo que ameaça ruir a qualquer momento. Este início de século está inevitavelmente marcado por ideologias e idiotias que pensávamos já não existirem. A sociedade moderna parece estar fragmentada e aturdida por falsas promessas hedonistas que uma economia global tem fomentado e que a tecnologia tem acentuado (as causas são conhecidas e muitos autores tem advertido para tais efeitos, por exemplo, de Guy Debord a Paul Virilio, ou de Giles Lipovestsky a Zygmunt Bauman), e assiste-se ao regresso de extremismos, quer políticos quer religiosos, que acentuam essa fragmentação e geram ainda maior alienação. Ora, aquilo que sabíamos ser, até há algumas décadas atrás, do domínio da verdade ou da mentira (embora a manipulação humana seja uma constante ao longo do processo civilizacional), aquilo que se sabíamos distinguir, com alguma clareza e bom senso, o bem do mal, o certo do errado, tornou-se um terreno pantanoso e, portanto, escorregadio. É neste sentido que a pergunta dada em título ganha a sua relevância.

Castro (2024CASTRO, Paulo Alexandre e. A interminável questão: por que (devo) agir moralmente? Análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400197, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15593.
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) resgata um capítulo fundamental da obra Ética Prática de Peter Singer fazendo aquilo que deve ser o exercício hermenêutico: uma análise incisiva e detalhada dos termos e argumentos empregues ao mesmo tempo que interroga a razão de ser do seu uso. A clareza e o intuito de tal procedimento é bem visível logo nas primeiras linhas, quer do resumo, quer no primeiro parágrafo do artigo. E embora, o estilo de escrita possa ser discutível (algo próximo ao texto de Peter Singer - diga-se em boa verdade, que não se vê como poderia ser de outra forma), é, contudo, inegável a argúcia com que o autor prende o leitor ao texto. A forma como, por um lado, analisa a argumentação e teses de Peter Singer e as desmonta, e, como por outro lado, enreda o leitor na dinâmica textual, não permite distrações ao leitor, obrigando-o a seguir o artigo numa leitura contínua. O autor está ciente do trabalho que desenvolveu e nesse sentido apresenta duas “conclusões”: uma, relativa à análise do capítulo e outra, relativa ao pensamento ético de Peter Singer. Não teria de o fazer dado que o intuito do ensaio é claro, mas terá sentido necessidade de justificar (desta forma) algumas das asserções que se foram lendo ao longo do artigo e que exigiam um lugar adequado para tal.

A pergunta colocada é, como se sabe, de difícil resposta e o filósofo admite-o. A razão desta dificuldade prende-se com a complexidade de relacionar aquilo que é do domínio da racionalidade com o domínio da ética. No fundo, aquilo que Peter Singer quer é apresentar as razões racionais para todo o agir moral. Sabendo que o ideal seria interpretar a pergunta com neutralidade (ou como se diz no ensaio, “não se comprometendo com nenhum ponto de vista específico”), ou para usarmos a nomenclatura de John Rawls, colocando um véu de ignorância, também se sabe a exigência e desígnio que a ética arrasta consigo (os juízos éticos devem ser universalizáveis), que como se lê: «a ética como disciplina exige que se abandone o ponto de vista pessoal dos estados de coisas do mundo e se adote o ponto de vista do espetador universal que procura ajuizar de um modo universal». Ora, da análise entre aquilo que é do domínio do racional e aquilo que é do domínio ético, quer o autor do artigo quer Peter Singer chegam à mesma conclusão:

A possibilidade de sucesso para uma ligação razão-ética parece comprometida. Não se vislumbram soluções para esta ligação dado que nenhum obstáculo pode apresentar mais dificuldades do que a própria natureza da razão. A razão não é exclusivamente teórica e, nessa vertente prática, utilitária, choca com um plano que tem a sua raiz numa teorização mais ou menos abstrata, a ética. Quer isto significar que, embora o ser humano aplique ou tente aplicar quotidianamente um determinado posicionamento ético é levado mais a agir pelo uso prático da razão e, queira-se ou não, essa vertente prática da razão apela interiormente à satisfação de vontades e desejos dos sujeitos

Assim Peter Singer, percebe que tem de utilizar uma nova forma de abordagem ao problema ou um novo argumento que mostre [...] que é racional para nós todos agir[mos] de modo ético, independentemente do que queiramos” (Singer, 1994SINGER, P. Ética Prática. Tradução De Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Livraria Martrins Fontes Editora, 1994., p. 338). Para tal o filósofo faz uma passagem por Hume, por Nagel e Sidgwick perscrutando as razões e argumentos que podem ajudar a solucionar a questão. Acontece que mesmo considerando tais argumentos e procurando a conciliação possível entre ética e interesse pessoal (admitindo que as pessoas são movidas pelos seus interesses e motivações), Peter Singer vê-se obrigado a fazer uma recondução natural (porque não dizer, paradoxal?) para a felicidade e só a perspicácia do autor do artigo permite ilustrar (e bem) com o exemplo dos vendedores de automóveis aquilo que está em causa e o que o filósofo pretende dizer (entre interesses pessoais e ação ética). Talvez por isso, Castro (2024CASTRO, Paulo Alexandre e. A interminável questão: por que (devo) agir moralmente? Análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400197, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15593.
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) diga no final do ponto 3 do seu artigo (antes da primeira “conclusão”) que «a busca de razões para o agir moral conduziu inevitavelmente à questão pelo sentido da vida, o que, parece, encobre a afirmação de que é o agir moral que confere sentido à vida». Paulo Alexandre e Castro percebe que na transmutação da pergunta (ou problemática) para o sentido da vida permite a Peter Singer inscrever a moralidade nela. Isso significa nas palavras do autor do artigo que, se por um lado, Peter Singer demonstra a inviabilidade do percurso humano através do individualismo ou egocentrismo [não deixa de ser verdade que apelando à comunhão, à comunicação, à identificação com o universo que nos rodeia] há o apelo moral para a consciência individual de cada homem (o que revela ainda uma ligação à moral kantiana, no estrito sentido em que a lei moral estaria inscrita em todos os homens) como forma de estabelecimento de uma comunidade verdadeira de seres humanos em comunhão com o mundo.

O sentido da vida - e aqui Peter Singer deveria ter percebido com clareza suficiente- não se pode circunscrever aos crentes (confundindo-se aqui a ação moral com a prática religiosa) pese embora a aproximação social e cultural que tal ideia propaga. Paulo Alexandre e Castro percebe esta subtil fraqueza no texto do filósofo da mesma forma que percebe que ele poderia ter-se socorrido de Albert Camus já na obra Ética Prática para conceber um sentido mais alargado e justificado para o sentido da vida. Neste sentido e perscrutando alguns dos principais críticos do filósofo eticista (destaque-se Huemer (2009HUEMER, M. Singer´s Unstable Meta-Ethics. In: SCHALER, J. A. Peter Singer Under Fire. Chicago: Open Court, 2009.)), refere o autor do artigo, concluindo:

O desejo de prescritivismo moral de Peter SingerSINGER, P. Como havemos de viver? A ética numa época de individualismo. Lisboa: Dinalivro, 2005. parece expressar mais um paradigma de avaliação, ou melhor, um paradigma de aprovação ou desaprovação das ações morais do que relatar objetivamente fatos morais. Contudo, pode ser o caso de que o aparente jogo que Peter Singer realiza seja o mais adequado: ter uma conceção natural da moralidade (seja o intuicionismo moral ou emotivismo) não significa que não haja lugar para a racionalidade e, sobretudo, para o desejo de objetividade moral. Por isso a pergunta «por que devo agir moralmente?», se transmuta numa pergunta pelo sentido da vida, em que subjetividade e objetividade se controvertem também nesse jogo frágil, mas constante entre expressar desejos latentes e afirmar razões objetivas para a existência.

Referências

  • CASTRO, Paulo Alexandre e. A interminável questão: por que (devo) agir moralmente? Análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400197, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15593
    » https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15593
  • HUEMER, M. Singer´s Unstable Meta-Ethics. In: SCHALER, J. A. Peter Singer Under Fire. Chicago: Open Court, 2009.
  • SINGER, P. Ética Prática. Tradução De Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Livraria Martrins Fontes Editora, 1994.
  • SINGER, P. Como havemos de viver? A ética numa época de individualismo Lisboa: Dinalivro, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2024
  • Aceito
    25 Maio 2024
  • Publicado
    25 Jun 2024
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