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Pernilongo tem coração? A representação de conceitos científicos por meio da contação de histórias

Does mosquito have a heart? The representation of scientific concepts from storytelling

¿El mosquito tiene corazón? La representación de conceptos científicos a partir de cuentacuentos

RESUMO

Este trabalho teve o objetivo de analisar como a contação de histórias pode contribuir para a divulgação científica. O estudo baseou-se nas contribuições de Vigotski, especialmente sobre a imaginação, criatividade e desenvolvimento de conceitos. A pesquisa analisou desenhos produzidos por três crianças e uma adolescente após a realização de uma sessão remota de contação de história com temas científicos. Fundamentado no materialismo histórico e dialético, especialmente na relação entre a parte e o todo, os resultados evidenciaram o interesse das crianças em temáticas científicas, bem como a produção de sentidos aos conceitos científicos em diferentes níveis de profundidade. As análises encontraram nos desenhos formulações equivalentes a pensamentos por complexos, conceitos potenciais e científicos. Por fim, a pesquisa destacou que a contação de histórias pode contribuir para a divulgação científica seja em níveis mais elementares, seja em níveis mais complexos de formulação conceitual.

Palavras-chave:
Contação de Histórias; Divulgação Científica; Imaginação; Psicologia Histórico-cultural; Desenho

ABSTRACT

This work aimed to analyze how storytelling can contribute to science communication. The study was based on Vygotsky's contributions, in particular on imagination, creativity and concept development. The research analyzed drawings produced by children and adolescents after a remote storytelling session. Grounded on historical and dialectical materialism, especially the relationship between part and whole, the results showed the children's interest in scientific themes, as well as the production of meanings for scientific concepts at different levels of depth. The analyses found in the drawings formulations equivalent to thoughts by complexes, potential and scientific concepts. It was highlighted that storytelling can contribute to science communication, whether at more elementary or at more complex levels of conceptual formulation.

Keywords:
Storytelling; Science Communication; Imagination; Cultural-historical Psychology; Drawing

RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo analizar cómo la práctica de contar cuentos puede contribuir a la divulgación científica. El estudio se basó en las contribuciones de Vygotsky, en particular, sobre la imaginación, la creatividad y el desarrollo de conceptos. La investigación analizó dibujos producidos por niños y adolescentes después de una sesión de cuentacuentos a distancia. El método se basó en el materialismo histórico y dialéctico a partir de la relación entre la parte y el todo y analizó los dibujos buscando comprender los significados expresados por sus autores. Los resultados mostraron el interés de los niños por temas científicos, así como la producción de significados a conceptos científicos en diferentes niveles de profundidad. Los análisis encontraron en los dibujos formulaciones equivalentes a pensamientos por complejos, potenciales y conceptos científicos. Se destacó que la narración puede contribuir a la DC, ya sea en niveles más elementales o más complejos de formulación conceptual.

Palabras clave:
Narración; Comunicación Científica; Imaginación; Psicología Histórico-cultural; Dibujo

INTRODUÇÃO1

A divulgação científica consolidou-se como uma prática comunicativa relevante na sociedade que tem como propósito a aproximação da população da esfera da cultura científica e tecnológica. Essa atividade tem se apresentado cada vez mais importante à medida que diversos problemas sociais e naturais podem ser solucionados com as contribuições da ciência e da tecnologia. No campo da educação, a divulgação científica estabelece relações principalmente com a educação não formal, que de acordo com Gohn (200610 GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal, participação da sociedade civil e estruturas colegiadas nas escolas. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, v. 14, n. 50, p. 27-38, 2006. https://doi.org/10.1590/S0104-40362006000100003
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, p. 28) se refere à educação "que se aprende ‘no mundo da vida’, via os processos de compartilhamento de experiências, principalmente em espaços e ações coletivos cotidianas" e a educomunicação.

Entre os públicos-alvo desse tipo de comunicação, ressaltamos o infantojuvenil, uma vez que as crianças e adolescentes deveriam ter direito à educação, cultura e lazer. Assim, defender a divulgação científica para esse público deve ir além dos tradicionais motivos para a divulgação científica, relacionados ao interesse, acesso, necessidade da própria comunidade científica etc., para contemplar, sobretudo, o direito das crianças e adolescentes, tal como aponta Rocha, Scalfi e Massarani (2021)19 ROCHA, Jessica Norberto; SCALFI, Graziele; MASSARANI, Luisa. ECA 30 anos e o direito das crianças e adolescentes aos museus e à divulgação científica. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, v. 12, n. 1supl., p. 115-137, 2021. https://doi.org/10.5433/2236-6407.2021v12n1suplp115
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.

A divulgação científica para o público infantil possui características específicas em razão do nível de letramento dos interlocutores e da bagagem cultural que carregam. Almeida (2018)1 ALMEIDA, Carla da Silva; FREIRE, Maíra; BENTO, Luiz; JARDIM, Gabriela; RAMALHO, Marina; DAHMOUCHE, Monica. Ciência e teatro: um estudo sobre as artes cênicas como estratégia de educação e divulgação da ciência em museus. Ciência & Educação (Bauru), v. 24, n. 2, p. 375-393, 2018. https://doi.org/10.1590/1516-731320180020008
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destaca que, na década de 1980 e início de 1990, houve o surgimento de diversas revistas de divulgação científica, a saber: Ciência Hoje (1982), Ilustrada (1982–1984), Ciência Hoje das Crianças (1986), Superinteressante (1987) e Galileu (1991). Entre essas revistas, destaca-se a Ciência Hoje das Crianças, que possui o propósito de atender especificamente o público infantojuvenil e é uma referência no Brasil.

Para além das revistas, é possível encontrar diversas outras formas de divulgar a ciência para as crianças: a animação (Santana et al., 202122 SANTANA, Bruno Reis; SILVA, Wagner Rodrigues; FREITAS, Mirella Oliveira. O Show da Luna como Gênero Mediador de Educação Científica. Ciência & Educação (Bauru), v. 27, e21003, 2021. https://doi.org/10.1590/1516-731320210003
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); os museus de ciências (Almeida et al., 20181 ALMEIDA, Carla da Silva; FREIRE, Maíra; BENTO, Luiz; JARDIM, Gabriela; RAMALHO, Marina; DAHMOUCHE, Monica. Ciência e teatro: um estudo sobre as artes cênicas como estratégia de educação e divulgação da ciência em museus. Ciência & Educação (Bauru), v. 24, n. 2, p. 375-393, 2018. https://doi.org/10.1590/1516-731320180020008
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; Carneiro et al., 20214 CARNEIRO, Jéssica Beck; MASSARANI, Luisa; ROCHA, Jessica Norberto; SILVEIRA, Fiorella Silveira; CAMBRE, Martha. Familias y museos de ciencia: un análisis de la visita a una exhibición para el público infantil de Espacio Ciencia, Uruguay. ACTIO: Docência em Ciências, v. 6, p. 1-24, 2021. https://doi.org/10.3895/actio.v6n3.14013
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); os teatros científicos (Moreira e Marandino, 201516 MOREIRA, Leonardo Maciel; MARANDINO, Martha. Teatro de temática científica: conceituação, conflitos, papel pedagógico e contexto brasileiro. Ciência & Educação, v. 21, n. 2, p. 511-523, 2015. https://doi.org/10.1590/1516-731320150020015
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; Almeida et al., 20181 ALMEIDA, Carla da Silva; FREIRE, Maíra; BENTO, Luiz; JARDIM, Gabriela; RAMALHO, Marina; DAHMOUCHE, Monica. Ciência e teatro: um estudo sobre as artes cênicas como estratégia de educação e divulgação da ciência em museus. Ciência & Educação (Bauru), v. 24, n. 2, p. 375-393, 2018. https://doi.org/10.1590/1516-731320180020008
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); a contação de histórias etc. Entendemos que todas essas modalidades de divulgar a ciência e a tecnologia agregam para a apropriação social da cultura científica e tecnológica e para a garantia do direito de acesso às crianças e adolescentes.

Neste trabalho, temos interesse particular na contação de histórias — uma prática consolidada pela humanidade que busca transmitir a cultura de geração para geração. A questão que nos colocamos é: se a ciência e a tecnologia também são práticas que incorporam a cultura humana, ao mesmo tempo que sua produção também se pauta em atividades imaginativas e criativas (Lima, Ramos e Piassi, 202012 LIMA, Guilherme da Silva; RAMOS, João Eduardo Fernandes; PIASSI, LUÍS Paulo de Carvalho. Ciência, poesia, filosofia: diálogos críticos da teoria à sala de aula. Educação em Revista, v. 36, p. 1-20, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-4698215986
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), por que não usar a contação de histórias visando à manutenção dessa faceta cultural?

Assim, o objetivo deste texto é analisar como a prática da contação de histórias pode contribuir para a divulgação científica, especialmente como ela pode contribuir para a produção de sentido aos conceitos científicos por crianças e adolescentes. Para isso, quatro desenhos foram analisados buscando compreender como a criação de três crianças e uma adolescente representou os elementos presentes na história chamada "Pernilongo tem coração?". A análise foi fundamentada nas contribuições da psicologia histórico-cultural que será abordada a seguir.

REFERENCIAL TEÓRICO

Para iniciar a abordagem do pensamento de Vigotski, é importante ressaltar o significado de atividade criativa para o autor: "chamamos atividade criativa a atividade humana criadora de algo novo, seja ela uma representação de um objeto do mundo exterior, seja uma construção na mente ou do sentimento característicos do ser humano" (2018, p. 01).

O autor ressalta que há dois tipos básicos de ação: reprodutora e criadora. As ações reprodutoras, também chamadas de reprodutivas, são fortemente determinadas pela memória. Elas são ações em que o sujeito repete comportamentos já criados e/ou relembra atitudes de situações vivenciadas. A essência dessa ação é que ela "não cria nada de novo, limitando-se fundamentalmente a repetir com maior ou menor precisão alguma coisa já existente" (Vigotski, 201827 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018., p. 01). Por sua vez, as ações criadoras, também chamadas de combinatórias, estão baseadas na reelaboração das experiências vivenciadas no sentido de engendrar o novo, inexistente até então. Vigotski (2018)27 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. esclarece que essa capacidade combinatória é compreendida pela psicologia como imaginação ou fantasia, diferentemente do senso comum que entende imaginação ou fantasia como designações daquilo que não corresponde à realidade. Para o autor a imaginação fundamenta toda atividade criadora da humanidade, seja ela cultural, seja ela científica ou técnica.

O fundamento da imaginação é a capacidade de elaborar, reelaborar e fazer combinações com base naquilo que é conhecido a fim de conceber algo que é novo, seja um objeto, seja processo ou situação (Vigotski, 201827 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.).

Ao explicar a imaginação, Vigotski (2018)27 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. ressalta a relação existente entre imaginação e realidade, que foi organizada em quatro leis básicas entre esses dois domínios. A primeira está fundamentada na determinação da imaginação pelo real. Sendo assim, a imaginação é gerada a partir das experiências vivenciadas. Mesmo a imaginação de criaturas míticas se baseia nisso, uma vez que a decomposição e recombinação de elementos reais precedem e acompanham o ato criativo. Vigotski (2018)27 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. salienta que esta é a primeira e mais importante lei sobre a imaginação, e sintetiza:

A atividade criadora da imaginação está relacionada diretamente com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, uma vez que essa experiência é a matéria-prima a partir da qual se elaboram as construções da fantasia. Quanto mais rica for a experiência humana, mais abundante será o material disponível para a imaginação. (p. 12)

Nesse sentido, o adulto pode ser considerado mais criativo e imaginador do que a criança, pois na maioria dos casos ele possui maior bagagem cultural e vivência. A ampliação das experiências das crianças, por sua vez, estimula sua atividade criativa de modo a ficar mais rica e diversa. Vigotski (201827 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018., p. 12-13) ressalta que a "conclusão pedagógica que podemos tirar daqui é a necessidade de ampliar a experiência da criança se quisermos proporcionar-lhe bases suficientemente sólidas para sua atividade criativa".

A segunda lei da atividade imaginativa afirma que ela é realizada entre o "produto final da fantasia e um fenômeno completo da realidade" (Vigotski, 201827 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018., p. 25). Ela estabelece a possibilidade de imaginar algo que existe na realidade, de modo que o produto da imaginação seja uma representação, em maior ou menor grau de precisão, de um fenômeno ou objeto existente. Por exemplo: o sujeito pode imaginar como é o deserto do Saara sem ter vivenciado a experiência de visitá-lo. Para isso, é essencial o compartilhamento da experiência alheia.

Assim, podemos entender que a correlação entre imaginação e experiência é dialética. Enquanto a experiência é um aspecto determinante para a produção imaginária, a produção imaginária pode expandir a própria experiência do sujeito. Evidentemente, para que ocorra a expansão da experiência por meio da imaginação, é necessário que o sujeito disponha de bagagem experiencial/cultural para que possa desenvolver ações de dissociação e associação para produzir uma nova experiência com a imaginação. Por exemplo: para imaginar o deserto do Saara é importante que o sujeito tenha acumulado experiências e significações sobre clima, temperatura, umidade, seca, solo etc. Assim, embora a relação entre imaginação e realidade seja dialética, é importante ficar claro que, ainda assim, a segunda lei está subordinada à primeira.

Vigotski esclarece que:

a imaginação adquire uma função muito importante no comportamento e desenvolvimento humanos, transforma-se em meio para ampliar a experiência do homem porque, desse modo, este poderá imaginar aquilo que nunca viu, poderá, a partir da descrição do outro, representar para si também a descrição daquilo que na sua própria experiência pessoal não existiu, o que não está limitado pelo círculo e fronteiras estritas da sua própria experiência, mas pode também ir além das suas fronteiras, assimilando, com a ajuda da imaginação, a experiência histórica e social de outros. Sob essa forma, a imaginação é a condição absolutamente necessária de quase toda a atividade intelectual do homem. (2018, p. 15)

A conjunção emocional é a terceira lei que determina o ato de imaginar. Segundo Vigotski (2018)27 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018., os pensamentos e as emoções são formados com base em imagens da realidade. Para o autor, emoção e imaginação relacionam-se dialeticamente, já que por um lado as emoções influenciam a imaginação e, por outro, a imaginação influencia os sentimentos. No primeiro caso, há a agregação de imagens e representações que provocam sentimentos comuns, mesmo quando as imagens não apresentam características internas ou externas semelhantes. Trata-se de uma agregação que tem como causa o sentimento comum causado por tais imagens ou representações, portanto a matiz afetiva é a responsável pelo agrupamento. Assim, a produção imaginária pode se desenvolver por meio de representações que não possuem fatores comuns além dos sentimentos que elas suscitam no sujeito. No segundo caso, a imaginação desencadeia emoções reais, ainda que essa imaginação seja baseada no fantasioso. Por exemplo: a sensação de medo é real quando uma criança imagina a presença de uma criatura mítica (bicho papão, fantasma, lobisomem, saci etc.).

A quarta e última relação entre imaginação e realidade explicada por Vigotski estabelece a possibilidade de criar algo novo. Com isso, a produção imaginativa, ainda que determinada pela experiência do sujeito, decorrente de sua memória ou da apropriação da experiência alheia, não está condenada à eterna reprodução.

A essência dessa última forma consiste em que a construção da fantasia pode representar algo essencialmente novo, não existente na experiência do homem, nem semelhante a nenhum objeto real; porém, ao assumir uma nova forma material, essa imagem ‘cristalizada’, convertida em objeto, começa a existir realmente no mundo e a influenciar outros objetos. (Vigotski, 201827 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018., p. 19)

Com base nessas considerações sobre imaginação e criatividade, este trabalho busca estudar, especialmente, desenhos produzidos por crianças e adolescentes. Vigotski (2003)25 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Psicologia pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003. afirma que a criatividade infantil possui alto valor pedagógico, apesar de pouco valor estético. O desenho infantil, por exemplo, pode ter papel relevante para a aprendizagem das crianças. Por ser visual, a imagem revela o que está sendo imaginado pelos/as autores/as e estimula a produção de sentidos daquilo que foi exposto. Assim, o papel pedagógico do desenho infantil está mais fundamentado na possibilidade de discernir o conteúdo do desenho do que na apreciação da sua forma — seus traços, contornos e cores (Vigotski, 200325 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Psicologia pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003.).

No bojo dessa discussão, Vigotski critica a ação de correção dos desenhos infantis feita pela intromissão de adultos, pois pode-se interromper um processo importante de associação do conhecimento, da criatividade e até gerar certa frustração na criança. Assim, o ideal é deixar que a imaginação seja passada para o papel de forma espontânea, promovendo a particularidade criativa de cada criança.

A criança cria sua fantasia com base em suas percepções e impressões da realidade, dissociando e associando conceitos e experiências. Vigotski (2018)27 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. diz que a dissociação é um processo importante para a imaginação criativa, podendo vir de estímulos internos ou externos. Ela separa traços individuais de um conjunto complexo. Assim, na dissociação, a criança separa experiências por comparação, guardando na memória o que convém. Na associação, por sua vez, o sujeito articula significações, experiências e emoções para produzir a imagem ou representação do objeto, fenômeno ou experiência compartilhada.

De acordo com Vigotski (2018)27 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018., a imaginação e a criação das crianças são diferentes daquelas produzidas por adolescentes. Comparando a imaginação da criança e do adolescente, sabemos que o fator tempo influencia no fator experiência, isto é, a idade influencia a bagagem experiencial/cultural do sujeito que imagina. Esse fato condiciona a imaginação da criança, que possui certo teor fantasioso — ligado ao exagero, pois, por sua bagagem experiencial/cultural, ela não está tão presa aos padrões da realidade do mundo natural. Por isso, a criança pode facilmente fazer associações exageradas e absurdas entre os fenômenos naturais, a existência de seres imaginários etc. Em essência, o exagero não é um problema, visto que ele é necessário em outras atividades humanas como a arte e a ciência (Vigotski, 201827 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.). O adolescente, por sua vez, é capaz de ter uma imaginação mais vasta e variada por conta do acúmulo de experiências, por isso mesmo o exagero fantasioso é reduzido à medida que a própria bagagem experiencial/cultural lhe impõe a impossibilidade de determinadas associações e produções fantasiosas.

Em síntese, a imaginação e a criatividade são determinadas pela experiência e afeto dos sujeitos. Contudo, é pertinente qualificar a experiência para que não nos limitemos ao nível empírico e perceptivo. A experiência é tão importante como a sua representação na mente daquele que a vivencia. Por isso, as formas de conceber o experienciado também são essenciais para a imaginação e a criatividade produzida.

Entendendo que o psiquismo humano é um sistema interfuncional, que produz uma imagem subjetiva do mundo objetivo (Martins, 201514 MARTINS, Lígia Márcia. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2015.), as formas como essa imagem é produzida determinarão a imaginação e a criatividade. Por isso, consideramos pertinente relacionar a imaginação e a criatividade às formas características do pensamento humano.

Ao elaborar o estudo experimental sobre o desenvolvimento dos conceitos no intelecto humano, Vigotski ressalta diversas características do pensamento e de sua formulação. Destacamos o pensamento sincrético, o pensamento por complexos e os conceitos.

Martins (2016)15 MARTINS, Lígia Márcia. Desenvolvimento do pensamento e educação escolar etapas de formação de conceitos à luz de Leontiev e Vigotski. Fórum Linguístico, v. 13, n. 4, p. 1572-1586, 2016. https://doi.org/10.5007/1984-8412.2016v13n4p1572
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destaca que o pensamento sincrético resulta da produção de uma imagem indiferenciada da realidade, que é fruto da inexistência de conexões objetivas dos fenômenos que o constituem. Ao não conseguir estabelecer conexões objetivas, a criança estabelece relações subjetivas que carecem de ordenamento lógico. Nesse sentido, o pensamento sincrético produz uma imagem subjetiva do mundo que pode ser considerada como mero agrupamento mental.

Na fase do pensamento por complexos, a criança começa a estabelecer relações concretas entre os objetos, o que implica a organização e sistematização da experiência. Uma das características essenciais do pensamento por complexos é que sua base está fundamentada no "vínculo concreto e factual entre elementos particulares que integram a sua composição" (Vigotski, 200926 VIGOTSKI, Liev Semionovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009., p. 180). Vigotski (2009)26 VIGOTSKI, Liev Semionovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. esclarece que:

as generalizações criadas por intermédio desse modo de pensamento representam, pela estrutura, complexos de objetos particulares concretos, não mais unificados à base de vínculos subjetivos que acabaram de surgir e foram estabelecidos nas impressões da criança, mas de vínculos objetivos que efetivamente existem entre tais objetos. (p. 178-179)

Os conceitos, por sua vez, são explicados em suas três modalidades: conceitos potenciais, conceitos espontâneos e conceitos científicos. Os conceitos potenciais são formulados a partir da abstração de atributos particulares que são isolados e lhes servem de base. A formulação dos conceitos potenciais não exige processos lógicos, sua base psicológica é o significado concreto e funcional que ele adquire (Vigotski, 200926 VIGOTSKI, Liev Semionovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.). Góes e Cruz (20169 GÓES, Maria Cecília Rafael; CRUZ, Maria Nazaré. Sentido, significado e conceito: notas sobre as contribuições de Lev Vigotski. Pro-Posições, v. 17, n. 2, p. 31-45, 2016. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643627. Acesso em: 25 jun. 2022.
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, p. 34) esclarecem que:

os conceitos potenciais encontram-se na origem da abstração, uma vez que, neste caso, a criança passa a reunir os objetos com base em um único atributo, mais estável e que não se perde facilmente entre os outros. É o domínio da abstração, em conjunto com o pensamento por complexos, que permite à criança desenvolver-se em direção aos conceitos verdadeiros.

Os conceitos espontâneos, por sua vez, são caracterizados como formulações feitas pelas crianças a partir da abstração de características dos objetos ou fenômenos que lhes dão origem e sua base é puramente empírica, portanto, está fundamentada na experiência imediata (Vigotski, 200926 VIGOTSKI, Liev Semionovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.). Apesar disso, os conceitos espontâneos não são usados pela criança arbitrariamente, fato que decorre da não conscientização desse tipo de conceitos.

Em seu turno, os conceitos científicos são estabelecidos por relações de codeterminação com outros conceitos, cuja base é lógico-abstrata (Araújo, Almeida e Lima, 20233 ARAÚJO, João Felipe Viana de; LIMA, Guilherme da Silva; ALMEIDA, Sheila Alves de A. A apresentação de conceitos em um livro de divulgação científica infantil: o caso Isaac no mundo das partículas. Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências, v. 25, p. 1-25, 2023. https://doi.org/10.1590/1983-21172022240136
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). De acordo com Martins (201615 MARTINS, Lígia Márcia. Desenvolvimento do pensamento e educação escolar etapas de formação de conceitos à luz de Leontiev e Vigotski. Fórum Linguístico, v. 13, n. 4, p. 1572-1586, 2016. https://doi.org/10.5007/1984-8412.2016v13n4p1572
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, p. 1584), os conceitos científicos "correspondem a um tipo superior de conceitos, tanto em relação ao plano teórico quanto em relação ao plano prático, formulando-se no pensamento por meio de tensões, de tarefas e problemas que exigem a atividade teórica do pensamento". Dada a sua estrutura, os conceitos científicos são aprendidos em situações educativas, predominantemente escolares.

Além de considerar os conceitos, faz-se necessário diferenciar significado e sentido, pois nem sempre eles são correspondentes. Os significados são produções sociais cristalizadas que representam a sistematização de determinado conteúdo, enquanto o sentido é uma produção individual que compõe a consciência e é produzido em meio à articulação com a emoção, percepção e outras funções psicológicas superiores. Vigotski esclarece que "o sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada" (2009, p. 465). O significado, por sua vez, "é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata" (Vigotski, 200926 VIGOTSKI, Liev Semionovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009., p. 465). É válido ressaltar que, para Vigotski (2009)26 VIGOTSKI, Liev Semionovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009., o sentido real de alguma palavra não é constante; em determinado contexto, a palavra pode ser um sentido, enquanto em outra situação pode possuir um sentido diferente. Podemos usar o exemplo da palavra casa para entender essa variação em duas situações: 1. Aquela casa é muito bonita; 2. Minha amiga se casa amanhã. É evidente que nas duas orações a palavra casa possui sentidos diferentes. Na primeira oração casa se refere ao objeto relativo à residência, que pode abrigar uma ou mais pessoas das intempéries do clima; enquanto na segunda oração a palavra casa é uma conjugação em terceira pessoa do singular do verbo casar, que se refere ao contrato social (civil ou religioso) de união entre pessoas que passam a constituir uma família.

Importante fazer essa observação acerca dos sentidos e significados, pois no processo educativo o educador pretende desenvolver atividades e criar situações em que o aprendiz possa produzir sentidos correspondentes aos significados cristalizados por determinado campo da atividade humana. Assim, quando o educador dispõe de meios para ensinar os conceitos relativos à classificação dos seres vivos, por exemplo, não o faz para que o educando produza quaisquer sentidos, mas para que sejam produzidos sentidos correspondentes aos conceitos científicos delimitados pelo campo da biologia.

Considerando-se que o pensamento sincrético, por complexos, e que os conceitos expressam formas de produzir a imagem subjetiva do mundo objetivo, entendemos que essas formas de pensar podem orientar a produção imaginária e criativa. Tal consideração promove uma abordagem relevante para a análise da produção imaginária e criativa da criança e do adolescente, que pode contribuir para o desenvolvimento e a avaliação de atividades educativas.

CONTAÇÃO DE HISTÓRIA COMO FORMA DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

A divulgação científica é uma prática recorrente na sociedade contemporânea que busca comunicar aspectos relativos às atividades científicas e tecnológicas para públicos amplos. Sua origem e necessidade estão relacionadas ao desenvolvimento científico que começou, ainda no iluminismo, a se consolidar por meio de ferramentas pouco acessíveis ao saber popular, como a matemática, a lógica e a rígida estrutura conceitual. Tal fato impôs uma condição de inacessibilidade aos saberes e práticas científicas e tecnológicas à população (Polino e Castelfachi, 201218 POLINO, Carmelo; CASTELFRACHI, Yurij. Comunicación pública de la ciencia. Historia, prácticas y modelos. In: AIBAR, Eduard; QUINTANILLA, Miguel Ángel. Enciclopedia Iberoamericana de Filosofía: ciencia, tecnología y sociedad. Madrid: Trotta, 2012. p. 351-357.), de modo que a divulgação científica, entre outras coisas, busca contribuir para que sujeitos possam compreender essa esfera de atividade humana.

O crescimento da atividade de divulgar a ciência e a tecnologia tem diversos motivos, dos quais Lima e Giordan (2021)11 LIMA, Guilherme da Silva; GIORDAN, Marcelo. Da reformulação discursiva a uma práxis da cultura científica: reflexões sobre a divulgação científica. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 28, p. 375-392, 2021. https://doi.org/10.1590/S0104-59702021000200003
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destacam especialmente dois: 1. a exigência de a sociedade saber cada vez mais dos avanços científicos e tecnológicos, até mesmo como meios de solucionar os problemas da sociedade contemporânea; 2. a busca por legitimidade social da comunidade científica, que visa prestar contas e ampliar a interlocução com a sociedade.

Ao longo do desenvolvimento das práticas de divulgação científica, diversas ferramentas comunicacionais foram incorporadas, de modo que hoje podemos facilmente encontrar produções expositivas, radiofônicas, jornalísticas e televisivas que abordam aspectos da ciência, da tecnologia e seus agentes.

A divulgação científica deve ser compreendida como uma atividade em meio a diversas esferas de criatividade ideológica que instituem disputas acerca dos objetos para os quais a DC está voltada, bem como regras de sua produção e circulação (Lima e Giordan, 202111 LIMA, Guilherme da Silva; GIORDAN, Marcelo. Da reformulação discursiva a uma práxis da cultura científica: reflexões sobre a divulgação científica. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 28, p. 375-392, 2021. https://doi.org/10.1590/S0104-59702021000200003
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). Apesar das variadas práticas de divulgar a ciência e a tecnologia, importa-nos neste trabalho a contação de história — atividade que nem sempre é associada à divulgação científica, mas pode contribuir para a prática de popularizar a cultura científica e tecnológica.

A contação de histórias é uma prática cuja origem atende à necessidade de expressar pensamentos ou de compartilhar saberes que são próprios do ser humano. O ato de contar histórias é milenar; segundo Coelho (2000)7 COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil, teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000., a transmissão da cultura humana ao longo das gerações foi realizada principalmente pela literatura, seja ela oral, seja ela escrita.

Assim, a contação de histórias é uma prática que objetiva a manutenção da cultura humana. A pesquisa acadêmica já indicou as contribuições que a contação de história pode dar nos ambientes escolares, especialmente ao desenvolvimento da alfabetização, leitura e criatividade (Lourenço, 201413 LOURENÇO, Adriana. Contando Histórias e Encantando nos Espaços de Leitura. Ciência e Informação em Revista, v. 1, n. 2, p. 28-31, 2014. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/cir/article/view/1442/1197. Acesso em: 9 mar. 2022.
https://www.seer.ufal.br/index.php/cir/a...
; Sales, Anjos e Rôças, 201921 SALES, Danielle; ANJOS, Maylta Brandão dos; RÔÇAS, Giselle. Quem conta um conto… Reconhecendo as potencialidades da contação de histórias para o ensino de ciências. Polyphoniêa, v. 30/1, p. 171-186, 2019. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/sv/article/download/60201/33619/261007. Acesso em: 23 mai. 2022.
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; Souza, 202124 SOUZA, Neide Figueiredo de. A contação de história como recurso para a formação de leitores: proposição de práticas leitoras para os anos iniciais do ensino fundamental. 88 f. 2021. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Frederico Westphalen, 2021.). Ressaltamos que, para além da escola, a contação também pode contribuir para a divulgação científica e a educação não formal.

De acordo com Sales, Anjos e Rôças (201921 SALES, Danielle; ANJOS, Maylta Brandão dos; RÔÇAS, Giselle. Quem conta um conto… Reconhecendo as potencialidades da contação de histórias para o ensino de ciências. Polyphoniêa, v. 30/1, p. 171-186, 2019. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/sv/article/download/60201/33619/261007. Acesso em: 23 mai. 2022.
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, p. 173), a contação de histórias permite que dimensões do ser e da sociedade sejam abordadas de forma lúdica. Para as autoras, ela "contribui para a constituição e difusão das culturas e modo de ser e pensar a humanidade no que tange ao processo de ensino e aprendizagem". As autoras também defendem que a contação de história permite uma abordagem interdisciplinar e estimula a aprendizagem, pois, além de fortalecer a leitura e a escrita, o conteúdo da história pode abordar fenômenos naturais e sociais, bem como valores e sentimentos.

Ao focarmos na prática da contação de histórias, adentramos também no universo da imaginação e da criatividade. A contação de histórias parte da técnica da narrativa popular, em que qualquer pessoa pode ser um contador de histórias. Nela, inicialmente, levamos em consideração o método utilizado, que é composto de interpretação, fala, corpo, encenação e recursos utilizados. Chamamos esse conjunto de fatores de performance, e até mesmo o ambiente escolhido pode influenciar na prática da contação de histórias. A contação pode ser mais ou menos atrativa para o seu público conforme a história, as estratégias e os recursos utilizados.

Sales, Anjos e Rôças (2019)21 SALES, Danielle; ANJOS, Maylta Brandão dos; RÔÇAS, Giselle. Quem conta um conto… Reconhecendo as potencialidades da contação de histórias para o ensino de ciências. Polyphoniêa, v. 30/1, p. 171-186, 2019. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/sv/article/download/60201/33619/261007. Acesso em: 23 mai. 2022.
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entendem que a contação de histórias constitui uma maneira de incentivar e seduzir o ouvinte em relação à curiosidade, imaginação e criatividade, além de permitir que haja o despertar de saberes oriundos de ressignificações. As autoras ressaltam que a contação de histórias trabalha com as dimensões cognitivas e afetivas, na medida em que busca produzir correspondências entre o conteúdo da história contada e as experiências vivenciadas pelos interlocutores.

Rodrigues (2005)20 RODRIGUES, Edvânia Braz Teixeira. Cultura, arte e contação de histórias. Goiânia: SEE/GO, 2005. acrescenta que:

A contação de histórias é atividade própria de incentivo à imaginação e o trânsito entre o fictício e o real. Ao preparar uma história para ser contada, tomamos a experiência do narrador e de cada personagem como nossa e ampliamos nossa experiência vivencial por meio da narrativa do autor. Os fatos, as cenas e os contextos são do plano do imaginário, mas os sentimentos e as emoções transcendem a ficção e se materializam na vida real. (p. 04)

Com base nessas concepções, compreendemos que a contação de histórias articula as relações entre imaginação e realidade destacadas por Vigotski. Com relação à primeira lei, a imaginação proporcionada pela história e pela atividade de contação é fruto das relações que o contador e o ouvinte têm com a realidade. Isso significa que os sentidos produzidos sobre a história contada estão fundamentados em sentidos produzidos com base nas experiências dos sujeitos. Além disso, a imaginação pode ampliar a experiência do sujeito a partir da experiência alheia e imaginar objetos, fenômenos e processos reais (2a lei). Essa ampliação da experiência mostra-se particularmente evidente quando associada a temáticas científicas, pois a cultura científica está presente de forma muito limitada na vida da criança — aliás, é esse é um dos motivos que sustentam a necessidade de divulgar ciência para esse público.

Em acréscimo, a atividade de contação de histórias mobiliza uma série de emoções e sentimentos, sejam eles provenientes da própria história ou de relações que os ouvintes fazem com outras experiências vivenciadas (3a lei). Por fim, ressaltamos que, a partir dos sentidos produzidos pelos ouvintes, estes podem desenvolver processos criativos desde que haja condições propícias para isso, como atividades de produção de texto, imagem ou mesmo de reconto da história — condições que podem promover a criação de algo novo (4a lei).

A partir das considerações de Vigotski, podemos entender que a contação de histórias, como ferramenta para a divulgação científica, permite a expansão da experiência da criança a partir da imaginação sobre temáticas científicas. Assim, a contação, ao propor uma atividade imaginativa, pode colocar a criança em contato com ideias, agentes e práticas que podem estar extremamente distantes de sua realidade cotidiana, além de promover momentos de lazer, diversão e transmitir aspectos da cultura científica e tecnológica.

Para Scalfi e Corrêa (2014)23 SCALFI, Graziele Aparecida Moraes; CORRÊA, André Micaldas. A arte de contar histórias como estratégia de divulgação da ciência para o público infantil. Revista de Educação, Ciência e Cultura, v. 19, n. 1, 2014. Disponível em: https://www.revistas.unilasalle.edu.br/index.php/Educacao. Acesso em: 23 mai. 2022.
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, a literatura infantil e a contação de história podem ser utilizadas como forma de divulgação científica com o intuito de dissertar sobre ciências de uma forma simplificada, permitindo que a curiosidade por parte das crianças seja instigada. Os autores defendem que a introdução das ciências na vida das crianças tem por objetivo a compreensão do mundo em que elas estão inseridas, bem como fomentar a investigação e o interesse pelo tema.

Sendo assim, é necessário buscar a inserção da ciência na vida cotidiana das crianças. Ter contato com temas científicos não é o bastante, uma vez que as crianças devem ter condições de reformulação, crítica e aplicação deles (Scalfi e Corrêa, 201423 SCALFI, Graziele Aparecida Moraes; CORRÊA, André Micaldas. A arte de contar histórias como estratégia de divulgação da ciência para o público infantil. Revista de Educação, Ciência e Cultura, v. 19, n. 1, 2014. Disponível em: https://www.revistas.unilasalle.edu.br/index.php/Educacao. Acesso em: 23 mai. 2022.
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). Assim, com a literatura infantil e a contação de história é possível que a criança crie gosto pelo mundo científico e se aproprie dos seus saberes.

Levando em consideração que a divulgação científica visa tornar acessível a cultura científica e tecnológica à população, consideramos que a contação de história é uma prática pertinente para a produção da divulgação científica. Quando essas duas atividades — contação de história e divulgação científica — são associadas, é possível que ocorra uma popularização do conteúdo de ciências, de forma lúdica e teatral, envolvendo a imaginação do sujeito com base em histórias com fundamento científico e pode contribuir especialmente para a popularização da ciência para crianças.

METODOLOGIA

Para analisar como a prática da contação de histórias na divulgação científica pode contribuir para a produção de sentido aos conceitos científicos por crianças e adolescentes, esta pesquisa acompanhou a live "Narrando e Ensinando Ciências" e analisou desenhos enviados por participantes. A live foi transmitida nas redes sociais em 11 de outubro de 2021 e apresentou duas histórias autorais: "Pernilongo tem coração?" e "Quem é o impostor?" (Nóbile, 202117 NÓBILE, Marina. Narrando e Ensinando Ciências. CIA BEM TE VI, 2021. 1 vídeo (50 min e 19 seg). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l_OZCAsy1SA. Acesso em: 10 nov 2022.
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). Ela pode ser acessada no link: https://www.youtube.com/watch?v=l_OZCAsy1SA.

A live foi transmitida pelo canal digital YouTube e do perfil no Facebook da "Cia Bem-te-vi", uma companhia de artes e espetáculos do município de Ouro Preto-MG, visando à diversidade do público e à abrangência da divulgação científica em diferentes canais. Ao final da live foi solicitado que as crianças que assistiram enviassem, por e-mail, desenhos feitos com base nas histórias contadas.

Neste trabalho apresentamos a análise de quatro desenhos baseados na história "Pernilongo tem coração?", buscando identificar como a imaginação e criatividade se manifestaram nas produções de três crianças e uma adolescente e contribuíram para a formulação de ideias e conceitos científicos.

A contação de história foi produzida com diversos recursos cenográficos, como figurino, maquiagem, desenhos, cenários e efeitos sonoplásticos. Vale ressaltar que a live até dia 26 de setembro de 2022 teve 247 visualizações e foi acompanhada de forma síncrona por aproximadamente 50 acessos. Após a live, foram recebidos 22 desenhos de crianças enviados pelos pais por e-mail junto com os termos de autorização para o desenvolvimento da pesquisa.

Optamos por selecionar desenhos com diferentes níveis de desenvolvimento para exemplificar as formas como os conceitos apresentados por meio da live se manifestaram na produção infantojuvenil.

O método da pesquisa pautou-se nas contribuições do materialismo histórico e dialético, especialmente na dialética entre o singular, o particular e o universal e na relação entre a parte e o todo, que foram usados para selecionar os desenhos analisados e estabelecer o procedimento analítico.

Entendemos que cada desenho se configura como uma particularidade composta de aspectos singulares e universais, portanto, ao mesmo tempo que contém características únicas que expressam o desenvolvimento e habilidade da criança, contém também características universais como a produção de sentido (toda contação de história suscita produção de sentidos pelos participantes). As análises focaram nas produções de sentidos para os conceitos científicos, mas também contemplaram outras facetas da história contada, uma vez que elas fomentaram criações relevantes no desenho das crianças.

A análise baseou-se nos significados presentes no desenho, de forma a articular as significações singulares e suas relações com a significação geral da imagem. Assim, entendemos que a base para a análise foi a relação entre a parte e o todo, de forma que o todo representa o desenho completo e as partes são os aspectos relativamente independentes que compõem a imagem. Cheptulin (1982)6 CHEPTULIN, Alexandre. A dialética materialista: categorias e leis da dialética. São Paulo: Alfa-Ômega, 1982. esclarece que:

A parte é o objeto (processo, fenômeno, relação) que entra na composição de um outro objeto (processo, fenômeno, relação) e que se manifesta na qualidade de momento de seu conteúdo. O todo representa o objeto (processo e fenômeno), incluindo em si, na qualidade de parte constitutiva, outros objetos organicamente ligados entre eles (fenômenos, processos, relações) e possuindo propriedades que não se reduzem às propriedades das partes que o constituem. (p. 270-271)

Para a análise das partes e do todo, as significações foram apreciadas visando compreender quais tipos de formação psicológica elas representam, isto é, entender que tipo de formulação do pensamento (pensamento sincrético, por complexo e conceitos) a imagem representa. Em acréscimo, as análises buscaram considerar as quatro formas de relação entre a imaginação e a realidade explicitadas por Vigotski.

Perante o desafio de analisar desenhos infantojuvenis, tentamos não extrapolar as informações presentes nos registros analisados e, quando acessível, contrapor as informações contidas no e-mail enviado com o desenho. Assim, a base para a análise da produção de sentido contrapôs as representações feitas na imagem e as significações presentes na história (Anexo 1). Tal base foi determinada, pois o conteúdo da história foi um dos aspectos determinantes para a produção do desenho, ao passo que a análise do desenho baseado na história nos permite aferir o grau de correspondência dos sentidos produzidos pelas crianças às significações dos conceitos científicos.

Acrescentamos que a análise empreendida por esse trabalho deve ser interpretada como uma análise do desenho e não como uma representação fidedigna do desenvolvimento intelectual da criança. Fazemos essa ressalva porque entendemos que o nível de desenvolvimento intelectual da criança ou do adolescente pode ser superior às formulações expressas no desenho. Contudo, o contrário não é verdadeiro; portanto, se o desenho expressa níveis mais complexos de elaboração da imaginação e da criatividade, isso significa que a criança já se encontra em determinado estágio de desenvolvimento.

"PERNILONGO TEM CORAÇÃO?": CONHECENDO A HISTÓRIA

A história "Pernilongo tem coração?" (anexa) foi contada com uma linguagem que remete à vida no campo do interior mineiro e suas características. O gênero da história é um conto, proveniente de narrativas populares, ou "causos", em que, segundo Cascudo (2006)5 CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2. ed. São Paulo: Global, 2006., "há processos descritivos, com alterações de voz e entonação de timbres, e que não só na narrativa, que é auxiliada pela gesticulação, mas há diversos ritmos com o uso da voz nos diferentes vocábulos" (p. 254).

A história tem como propósito divulgar aspectos da anatomia dos insetos, na área de estudo em zoologia, para promover o interesse das crianças. O título, aliás, suscita uma multiplicidade de sentidos uma vez que faz referência à anatomia do inseto, mas também pode ser interpretado com base na expressão popular que indica uma pessoa sem sentimentos ou malvada (que não tem coração). Do ponto de vista conceitual, objetivou-se mostrar que o sistema circulatório do pernilongo é aberto, bem simples e que não há um órgão específico responsável pela circulação da hemolinfa (fluido corporal circulante dos artrópodes), como o coração.

A composição da história contou com o uso de diversos recursos visuais, que foram usados conscientemente em determinados momento da contação. Esses recursos podem ser vistos na Figura 1.

Figura 1
Recurso visual em E.V.A de "Pernilongo tem coração?": Sol, nuvem, árvore e fruta; Casa e lagartixa; Pernilongo e desenho com representação do sistema circulatório do pernilongo*.

Os recursos visuais foram apresentados porque eles foram parte integrante da contação e, assim como qualquer outra palavra, podem ter influenciado os desenhos e a produção de sentidos do público.

RESULTADOS E ANÁLISES

A seguir, exibimos e analisamos quatro desenhos que, no nosso entendimento, expressam diferentes aspectos da produção criativa da criança e representam distintas fases de desenvolvimento. Abaixo apresentamos o desenho da criança 1.

Na Figura 2, a criança desenha os únicos animais presentes na história "Pernilongo tem coração?". O todo é composto de duas partes representadas pelo desenho e escrita da criança. O pernilongo expressa o personagem principal da história contada, enquanto a lagartixa é mencionada apenas uma vez na história, como um detalhe secundário usado para finalizar a história contada. É importante sublinhar que, na contação, a única passagem sobre a lagartixa é nas frases finais, que descrevemos a seguir: "Lá na roça do meu avô, quando a gente reclama muito, ele sempre diz: ‘Deixa que os pernilongos são comida para as lagartixas!’ Pelo menos essas não incomodam! Na verdade, servem até de brinquedo, mas isso é papo pra outra história!".

Figura 2
Desenho da criança 1 (7 anos).

Ambos os personagens são desenhados com base em características de sua aparência e, ainda assim, a imagem não incorpora fidedignamente as características desses animais, por exemplo: a lagartixa tem seis patas e o pernilongo não tem seus membros inferiores. Ressaltamos isso para ressaltar que a representação da criança não é fidedigna ao animal e aos saberes científicos sobre ele, portanto há uma divergência entre os sentidos expressos pelo desenho e as significações científicas.

Além disso, excetuando os humanos, o pernilongo e a lagartixa são os únicos animais presentes na história. Reconhecendo que a história foi composta de tantos outros elementos capazes de provocar emoções e suscitar experiências vividas pelas crianças, como a casa, a árvore, a maçã, a roça, a família etc., entendemos que o desenho provavelmente expressa um complexo estabelecido pela criança. Nesse complexo, a criança 1 agrupa dois seres presentes na história por suas características objetivas: ambos são animais. Vale lembrar que um "complexo é um agrupamento concreto de objetos ligados por uma conexão baseada em fatos, portanto todos os nexos existentes podem levar à formação de um complexo" (Dias et al., 20148 DIAS, Maria Sara de Lima; KAFROUNI, Roberta; BALTAZAR, Camilla Silva; Stocki, Juliana. A formação dos conceitos em Vigotski: replicando um experimento. Psicologia Escolar e Educacional, v. 18, n. 3, p. 493-500, 2014. https://doi.org/10.1590/2175-3539/2014/0183773
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, p. 496).

Do ponto de vista da criatividade, o desenho provavelmente representa o final da história, uma vez que contém no mesmo plano o pernilongo e a lagartixa, estando a língua da lagartixa próxima ao inseto — situação que pode indicar a alimentação da lagartixa, tal como expresso no final da contação.

Pela escassez de outros elementos que permitam o aprofundamento da análise do desenho, não é possível estabelecer outras relações substanciais acerca das emoções provocadas pela contação de história, quão menos sobre a expansão da experiência por meio da apropriação da experiência alheia. O que podemos frisar é que há indícios de que a criança gostou da contação, condição que propiciou emoções/sensações prazerosas, pelo simples fato de fazer o desenho e querer participar da pesquisa. Evidentemente, temos a expectativa de que a história tenha contribuído de alguma forma para o alargamento da experiência da criança com aspectos da cultura científica. Assim, podemos entender que a expressão da criança representa quase que exclusivamente a representação de um complexo elaborado por ela, no qual ela agrupa os animais presentes na história na mesma imagem.

A seguir apresentamos o desenho da criança 2 (Figura 3). No desenho foi incluído um retângulo branco para ocultar a identidade da criança, ressaltando-se que além do nome não havia nenhuma outra expressão que completava o desenho infantil.

Figura 3
Desenho da criança 2 (7 anos).

Nesse desenho, é possível observar as partes que compõem o todo da imagem: uma casa com telhados e porta marrom, parede em laranja, duas janelas; um gramado verde à frente da casa; à direita, uma pessoa segurando três linhas azuis que, na ponta, possuem rostos expressivos (se assemelhando com balões); três linhas com três rostos expressivos também aparecem do lado esquerdo da casa; um pernilongo; e uma aranha vermelha. O responsável da criança 2, no e-mail enviado com o desenho, descreveu que a criança explicou que foi desenhada uma pessoa segurando balões de gás hélio, e que essa pessoa seria a contadora de histórias.

Por meio da identificação das partes é possível ver que o todo do desenho (Figura 3) é composto da articulação de aspectos presentes na história com aspectos presentes na memória da criança. Por isso, é evidente que o desenho, como representação da imaginação da criança 2, foi feito tendo como base a junção de ao menos duas experiências diferentes vivenciadas por ela, sendo uma delas a contação. Podemos entender que o real determinou a produção imaginária (1a lei) ao mesmo tempo que a imaginação propiciada pela história ampliou a experiência da criança, que representou aspectos da história de forma autônoma.

Além disso, podemos observar uma confluência emocional na imagem, uma vez que o desenho indicia o estabelecimento de sensações prazerosas entre experiências diferentes. Ao associarmos a representação de rostos felizes no desenho feito, podemos entender que a criança teve momentos alegres durante a atividade de divulgação científica, pois as próprias representações dos rostos indicam isso. Além disso, é importante destacar que a presença de balões de gás hélio geralmente está relacionada a situações festivas ou de lazer, que por sua vez geram, frequentemente, sentimentos e emoções de satisfação, alegria, bem-estar etc. Podemos associar essa observação à experiência vivida pela criança, que pode ter tido contato com balões recentemente e os adicionou ao desenho.

Algo similar aconteceu quando notamos que a mesma criança desenhou uma aranha no gramado, um animal que não foi mencionado nas histórias. Essas indicações mostram a primeira da lei da atividade imaginativa de Vigotski (2018)27 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018., que defende que a imaginação e a atividade criativa são produções determinadas pelas experiências vividas pelas crianças.

Além disso, a criança 2 desenhou os elementos da história a seu modo, como o pernilongo e o cenário onde aconteceu a história. Nota-se que próximo à cabeça do pernilongo foram desenhados traços paralelos que provavelmente indicam o barulho feito pelo inseto, efeito audiovisual presente na performance e no conteúdo, visto que foi explicado o motivo do barulho.

É importante ressaltar que o desenho não apresenta de forma explícita elementos que possamos associar com segurança a determinada elaboração conceitual. Contudo, é evidente a capacidade da criança de criar algo novo com base em processos de dissociação e associação de experiências que ela já vivenciou — isso é explícito na articulação de elementos presentes e ausentes da história que compuseram o desenho.

A presença da confluência emocional indicada pelo desenho corrobora a interpretação de que a divulgação científica por meio de contação de histórias pode contribuir para o desenvolvimento da curiosidade e a apreciação de temáticas científicas e tecnológicas.

Neste desenho da criança 3, constatamos que ela quis desenhar o protagonista da história "Pernilongo tem coração?". Observam-se traços mais simples que, segundo (Vigotski, 201827 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.), em suas definições de imaginação criativa, determinam que ela está no estágio do esquema. Esse estágio revela que a criança começou a representar o desenho de forma esquemática. Ela limita-se a desenhar apenas o que considera necessário, como cabeça, corpo, antenas, olhos, asas; todos estes em traços simples.

Outra característica observada nesta fase evolutiva dos desenhos é a representação em "raio X", que é a fase em que a criança já desenha imaginando o que não é evidente, mas sabe que existe. No caso deste desenho podemos identificar, por exemplo, dentro do corpo do pernilongo os traços em vermelho para representar a hemolinfa, conceito explicado durante a contação da história.

Acrescentamos que a imagem feita pela criança foi composta exclusivamente de elementos que compuseram a contação de história. Isso não significa que a criança não tenha estabelecido relações com outras experiências vivenciadas com pernilongos, mas que a produção criativa se limitou à experiência da contação. Seu desenho possui relação com o desenho usado como recurso visual na contação apresentado na Figura 1, até mesmo com a representação da hemolinfa como de cor vermelha. Assim, o desenho foi realizado por meio de um processo de dissociação e associação de aspectos presentes na história contada.

Podemos identificar no desenho da Figura 4 o que Vigotski denomina de conceitos potenciais. Na imagem há o isolamento de um atributo como parte do todo, que é o traço vermelho representando a hemolinfa. Essa representação expressa uma abstração desenvolvida pela criança, fundamentada tanto no desenho de algo aparentemente não visível (representação em raio X) quanto no estabelecimento de um sentido mais estável, concreto e funcional — características típicas dos conceitos potenciais.

Figura 4
Desenho da criança 3 (5 anos).

Vigotski esclarece que os conceitos potenciais são assim definidos,

em primeiro lugar, por sua referência prática a um determinado círculo de objetos e, em segundo, pelo processo de abstração isoladora que lhe serve de base. Eles são conceitos dentro de uma possibilidade e ainda não realizaram essa possibilidade. Não é um conceito mas alguma coisa que pode vir a sê-lo. (Vigotski, 200926 VIGOTSKI, Liev Semionovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009., p. 223)

Esclarecemos que consideramos a representação da hemolinfa como conceito potencial em razão da escassez de relações lógico-abstratas presentes na imagem. A presença da hemolinfa no interior do pernilongo representa uma relação concreta e funcional, já que ela não teria sentido se desenhada fora do pernilongo.

O fato de a contação de história ter promovido a elaboração de um conceito potencial é muito relevante para fortalecer o uso da contação de histórias como ferramenta para a divulgação científica e para a educação em ciências, visto que os conceitos potenciais

desenvolvem papel muito importante na evolução dos conceitos infantis. Esse papel consiste em que, pela primeira vez, abstraindo determinados atributos, a criança destrói a situação concreta, o vínculo concreto dos atributos e, assim, cria a premissa indispensável para uma nova combinação desses atributos em nova base. Só o domínio do processo de abstração, acompanhado do desenvolvimento do pensamento por complexos, pode levar a criança a formar conceitos de verdade. Esta formação constitui a quarta e última fase na evolução do pensamento infantil. (Vigotski, 200926 VIGOTSKI, Liev Semionovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009., p. 226)

Assim, o desenvolvimento de conceitos potenciais a partir da contação de histórias atesta que essa atividade pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento infantil em direção à elaboração dos conceitos científicos.

Por fim, apresentamos o desenho 4 (Figura 5).

Figura 5
Desenho da adolescente 1 (13 anos).

Na composição desse desenho são articuladas diversas partes, expressas tanto pela representação imagética quanto pela expressão verbal. O desenho da adolescente representou todos os conceitos científicos (do campo da biologia) apresentados na história. Esses conceitos foram interligados por setas que indicam relações lógico-abstratas entre eles.

Entre as partes, foram desenhados dois insetos para representar o macho e a fêmea dos pernilongos, com características próprias. A fêmea, por exemplo, com a hemolinfa; e o macho de cabelo e com grãos de pólen — provavelmente presos ao corpo —, pois foi contado na história que os machos se alimentam do néctar de plantas. Em outra parte do desenho a adolescente ilustrou a fêmea do pernilongo picando, provavelmente, a pele de uma pessoa. Os desenhos foram acompanhados por notas explicativas que revelam o domínio do pensamento verbal.

É importante destacar que as partes desse desenho não foram compostas exclusivamente pela experiência da contação de história. No desenho, há uma breve síntese sobre algumas características do mosquito Aedes aegypti, porém essa espécie não foi mencionada na história. Isso revela a associação de diferentes experiências para a produção do desenho. Essa associação fundamentou-se na correlação entre conceitos científicos que a criança dominava e foi capaz de relacionar durante a história.

Nesse sentido, podemos notar que o desenvolvimento lógico-abstrato dos conceitos científicos presentes no desenho foi além dos conceitos explicitados na contação de histórias da live. A história contada tem como personagem principal um pernilongo, não um Aedes aegypti, mas claramente a adolescente possui experiência e desenvolvimento que a permitiu associar essa espécie, uma vez que ela desenha o inseto com suas características específicas. O grau de desenvolvimento da adolescente ilustra o que Vigotski (201827 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018., p. 99) elucida: "a criança, gradualmente, desenvolve a necessidade de não apenas nomear características concretas do objeto descrito, mas também refletir relações de forma entre as partes dos objetos".

Podemos também compreender que a adolescente apresenta no desenho uma projeção hierárquica de conceitos aprendidos anteriormente, uma vez que faz relações com outro inseto além do pernilongo. Ainda que haja uma relação hierárquica ao relacionar o pernilongo ao Aedes aegypti, a frase escrita na parte superior central da página apresenta uma relação mais ampla: ela escreve "O grilo tem coração?". Essa troca de inseto — pernilongo por grilo — provavelmente não foi um ato falho, e sim a associação consciente que a criança fez com outros conceitos já conhecidos por ela.

Em nenhuma outra parte do desenho há qualquer indício de equívoco terminológico ou conceitual, fato que nos impulsiona a entender que a frase "O grilo tem coração?" é uma pergunta genuína da criança. Essa pergunta, em vez de representar o todo do desenho, extrapola as relações lógico-abstratas elaboradas pela adolescente sobre o pernilongo. Ao questionar "O grilo tem coração?", ela busca compreender se o sistema circulatório desse inseto é similar ao sistema circulatório do pernilongo. Assim, essa elaboração indica um vínculo hierárquico, lógico-abstrato, que ao estabelecer a significação do sistema circulatório do pernilongo tenta relacioná-lo à outra família de animais da mesma classe dos artrópodes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo analisar como a contação de história pode contribuir para a divulgação científica, especialmente com a produção de sentidos aos conceitos científicos. Para isso, analisamos desenhos produzidos por três crianças e uma adolescente que participaram de uma sessão remota de contação de história cujo propósito era divulgar a ciência. A análise foi fundamentada pela psicologia histórico-cultural, particularmente sobre as considerações sobre imaginação, criatividade e desenvolvimento do pensamento infantil formuladas por Vigotski.

Os resultados apresentaram diversas características da produção criativa das crianças, seja pelo estabelecimento de relações entre experiências vivenciadas, seja pela elaboração de formulações de pensamento que representam conceitos científicos e expressaram diferentes níveis de desenvolvimento.

Nas análises das Figuras 3 e 5, ficou evidente o relacionamento entre experiências das crianças que articularam a vivência da contação de história com outra vivência, visto que o desenho foi composto de partes que não correspondem a nenhum momento da contação. Enquanto na Figura 3 a aproximação das experiências ocorreu por meio da confluência emocional, na Figura 5 a aproximação entre experiência se baseou em produções de sentido com base lógico-abstrata, isto é, os conceitos científicos foram os elementos que aproximaram as experiências e articularam as partes na produção da imagem.

Considerando-se que, para Vigotski, "no momento em que a criança toma conhecimento pela primeira vez do significado de uma nova palavra, o processo de desenvolvimento dos conceitos não termina mas está apenas começando" (2009, p. 250), podemos notar que a contação de história contribuiu para a produção de sentidos e o desenvolvimento de conceitos em diferentes estágios de desenvolvimento das crianças.

Por um lado, os resultados mostraram a elaboração de pensamentos por complexos (Figura 2) e de um conceito potencial (Figura 4 — características que foram encontradas em outros desenhos que não analisamos neste artigo), que indicam formulações mais concretas e funcionais acerca do objeto representado. Por outro, a análise da figura 5 evidenciou a possibilidade de desenvolvimento de conceitos científicos, de modo que a contação de histórias proporcionou um aprofundamento no domínio conceitual e na imagem subjetiva produzida pelo interlocutor da atividade.

As análises apresentadas neste trabalho expressam características universais da produção de sentidos aos conceitos científicos, visto que a elaboração de complexos, conceitos potenciais e conceitos científicos pode ocorrer em outras situações similares. Os principais fatos determinantes para a recorrência dessas elaborações são a qualidade da história, a performance da contação e o nível de desenvolvimento dos participantes.

Evidentemente que as relações concretas estabelecidas em função da formulação de complexos, as relações funcionais baseadas no isolamento de determinado atributo pelo conceito potencial e as relações lógico-abstratas presentes nos conceitos científicos não serão idênticas para as diferentes crianças nas diferentes situações. Contudo, estamos certos de que as relações existirão e que a contação de histórias pode contribuir para a divulgação científica, seja em níveis mais elementares, seja em níveis mais complexos de compreensão conceitual.

Ressaltamos a necessidade de investigações mais detalhadas sobre a aproximação entre a contação de histórias e a educação em ciências, visto que a compreensão dos fatores que influenciam a confluência emocional, a vivência ou o estabelecimento de relações lógico-abstratas poderá contribuir para o desenvolvimento de práticas na divulgação científica e possivelmente expandidas para a educação formal em ciências naturais.

Como a contação de história pode abordar como conteúdo as mais diversas manifestações da cultura humana, seja da faceta científica ou não, a abordagem teórico-metodológica e os resultados podem fomentar a ampliação da pesquisa sobre esse tema e o desenvolvimento de práticas educativas, quer na educação formal, quer na não formal.

  • 1
    A pesquisa seguiu os procedimentos de ética em pesquisa e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), número do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) n° 45291521.0.0000.5150.
  • Financiamento:

    O estudo não recebeu financiamento.

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Anexo 1 Pernilongo tem coração?

Hoje vou te contar uma história muito legal de uma descoberta que eu fiz!!!

Neste final de semana fomos visitar meu avô lá na roça! A família quando se reúne é bom demais! Meu avô adora! Conta causos de assombração, dá risada em volta da fogueira, canta, dança, e o melhor de tudo, comemos fruta do pé!

Lá na roça passa um rio, de água morna e cristalina, ele passa bem no quintal da casa do vô, a correnteza é tranquila que dá até pra boiar, parece que estamos nas nuvens, de dia a gente pesca e até nada, mas de noite são outros que se divertem: os danados dos pernilongos! Ô, inseto danado!

Eles gostam de lugares quentes e úmidos, e como lá na roça é assim, faz um baita calor, eles ficam zanzando e incomodando a gente noite o tempo todo!

Como que pode, né? Um inseto tão pequeno fazer um barulho tão irritante, dar uma picadinha e atormentar tanto! Só de lembrar, eu já começo a coçar!

Será que um bichinho desse tamanho tem coração? Ah, se ele soubesse o quanto irrita!

Mas tá aí, uma boa questão: será que pernilongo tem coração? Então, lá na roça mesmo, comecei a pensar: ele não vive de sangue? Então? Será que ele vive só com o sangue da gente?

Disse meu avô pra eu não ficar incomodada tanto assim, porque se os pernilongos fazem isso, eles têm uma razão! E aí o meu avô me explicou que os pernilongos que sugam o nosso sangue são só as fêmeas, acredita? E que os machos só sugam o néctar e a seiva de plantas.

As fêmeas sugam nosso sangue para irrigar os seus ovários que produzem até 200 minúsculos ovinhos de uma vez! Haja sangue, né? E se deixar ela fica sugando seu sangue por até 10 minutos! Meu Deus! Por isso que quando acertei um uma vez ele estava até gordinho de sangue! A barriga deles suporta até 3x o próprio peso do inseto!

Mas afinal, o pernilongo tem coração ou não?

Não falo de coração: "Ah, esse inseto é terrível, maldoso, nos faz sofrer, não tem coração!", ou "Ah, tadinho do pernilongo, que não tem coração", não!

Falo de coração mesmo, sabe, tipo o nosso? Que bombeia sangue e nos faz viver? Então…

Nesse dia eu fiquei pensando a tarde toda nessa questão, e sabe o que descobri? O pernilongo é um inseto muito pequenininho, não ia caber um coração tipo o nosso dentro dele! E sabe como isso é resolvido?

O sangue do pernilongo é diferente e se chama hemolinfa, ele circula livremente por todo o corpo dele, como se suas veias fossem abertas! Eles têm um canalzinho bem fininho do tórax ao abdômen, que se divide em minúsculas câmaras que bombeiam essa hemolinfa fazendo-a circular! Interessante, né?

Mas cuidado, fique atento se algum pernilongo te picar de dia, não é tão comum! Os danadinhos que incomodam têm hábito noturno, então é só você apagar a luz que a festa do zumbido começa! Porque lá na roça é assim…

Mas você sabia que esse zumbido chato vem do barulho das asas? Isso mesmo! Elas batem 300 vezes por segundo! É muito rápido!

Lá na roça do meu avô, quando a gente reclama muito, ele sempre diz: "Deixa que os pernilongos são comida para as lagartixas!".

Pelo menos essas não incomodam! Na verdade servem até de brinquedo, mas isso é papo pra outra história!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2022
  • Revisado
    07 Jul 2023
  • Aceito
    11 Jul 2023
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